Pessoas não binárias têm dificuldade para retificar nome e gênero em documentos
Conclusão de audiência é que, apesar de normas federais já preverem esse direito, há diferenças na aplicação da medida entre os estados.
13/04/2023 - 19:25Mesmo com resoluções do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que garantem às pessoas transgênero o direito à retificação de nome e gênero em seus documentos, pessoas não binárias enfrentam dificuldades para fazer valer essa conquista.
Em reunião na Comissão de Direitos Humanos, nesta quinta-feira (13/4/23), esses segmentos debateram, entre outros pontos, formas de garantir que o registro civil respeite sua dignidade.
Também participaram da audiência na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) operadores do Direito que lidam com a questão e apoiam a causa. O coordenador de Combate ao Racismo e outras formas de discriminação, promotor de justiça Allender Barreto, enfatizou que as medidas do STF e do CNJ só foram emitidas por pressão dos movimentos sociais formados pelo público LGBTQIAPN+.
E lembrou que, em 2017, a Suprema Corte emitiu norma prevendo que a retificação de prenome e gênero poderia ser requerida pela pessoa trans maior de 18 anos sem necessidade de laudo médico ou de autorização judicial. Em 2018, continuou, o CNJ emitiu o Provimento 73, que regulamentou a medida do Supremo.
Na avaliação do promotor, apesar de os documentos só citarem as pessoas transgênero, “obviamente, eles também são aplicáveis às não binárias”. A finalidade das normas, segundo ele, foi garantir que esses segmentos tenham respeitado o seu direito de registrarem sua identidade autopercebida.
Certidão gratuita para LGBTs na Bahia
Mesmo com as normas expedidas, há diferenças na aplicação delas entre os estados brasileiros. Um dos exemplos bem-sucedidos é o da Bahia, onde o público LGBT pode fazer a alteração de nome e gênero em qualquer cartório do estado de forma gratuita. A defensora pública baiana Lívia Almeida compartilhou sua experiência.
Ela rememorou que após as duas normativas, a Defensoria Pública estadual promoveu vários mutirões de adequação de nome e gênero, mas a certidão com a mudança tinha que ser paga. Por isso, os defensores procuraram os cartórios, o Ministério Público e a Corregedoria do Tribunal de Justiça para reivindicar que o processo fosse gratuito.
“Em 2019, conseguimos que a Corregedoria emitisse norma garantindo a gratuidade”, comemorou ela, ressalvando que nos cartórios de protesto ainda é cobrada a certidão. A defensora ressaltou que as dificuldades são maiores quando o requerente não é nascido na Bahia e os cartórios acabam cobrando taxas.
Cobrança de registro em Minas
Já Vladimir Rodrigues, defensor público de Minas Gerais, disse que tentaram seguir o mesmo caminho dos colegas baianos. “Fizemos mutirões, mas os cartórios barraram a gratuidade, afirmando que a legislação não previa isso”, historiou. Do mesmo modo, a Corregedoria de Justiça do TJMG entendeu que não caberia a gratuidade de forma administrativa.
Na avaliação dele, para se obter a gratuidade do registro para todo o segmento LGBTQIAPN+, o melhor caminho seria o Legislativo. Mas enquanto não se aprova uma lei nesse sentido, a Defensoria de Minas continuará fazendo seus mutirões de retificação de nome e gênero, garantiu. O defensor adiantou que, nos próximos, não haverá limitação de vagas.
Especificamente sobre as pessoas não binárias, informou que a Defensoria vai entrar com ação na Justiça para 200 que procuraram o órgão. Segundo ele, já há decisões favoráveis em outros estados para constar "não binário" no campo “sexo” (em vez de masculino ou feminino). No entanto, ele disse que o Instituto de Identificação de Minas Gerais ainda precisa se adequar à mudança.
Também presentes, os juízes da Corregedoria do TJMG Luis Benfatti e Simone Abras afirmaram que a instância está sensível à questão e vai fazer estudos para tentar viabilizar a gratuidade.
Não binários reclamam da invisibilidade imposta
Várias lideranças das pessoas não binárias reclamaram da invisibilidade imposta pela sociedade heteronormativa, em que brancos, heteros e cisgenêros ditam os padrões comportamentais. Por outro lado, valorizaram o fato de a reunião ter sido a primeira tratando de questões envolvendo o segmento.
Milô Nascimento, do Coletivo Não Binário de Minas Gerais, explicou que os não binários não se identificam nem como homens ou mulheres, porque isso não condiz com sua autopercepção. De modo semelhante, as pessoas trans não se reconhecem naquele gênero que foi determinado quando nasceram.
Diante disso, os dois segmentos podem procurar os cartórios para colocar em seus documentos a forma como querem ser reconhecidos socialmente.
Ainda de acordo com Milô, a visão heteronormativa leva à discriminação desses segmentos em várias situações, como em banheiros, os quais são desencorajados a utilizar, tanto os masculinos quanto os femininos. “A visão cartesiana e engessada acarreta problemas na nossa saúde física e mental, pois não há sensibilidade para compreender nossas vivências”, criticou.
Vulnerabilidade
Já Tuty Guimarães, do Movimento Coletivo Trans Não-Binárie, alertou para os discursos que tornam invisível esse grupo social.
Na sua avaliação, a omissão do poder público em reconhecê-los como pessoas de direito combina com o aumento de mortes e adoecimento entre eles.
Ursula Brevilheri, da Articulação Brasileira Não-Binárie de Londrina, declarou que o direito à dignidade humana é resguardado pela Constituição Federal e por vários pactos internacionais assumidos pelo Brasil. Ela destacou que, conforme pesquisa da Universiadde de São Paulo (USP), 1,2% da população do País é não binária. E que não se trata mais de discutir se esse grupo tem o direito de alterar seu nome e gênero, mas de que forma isso será feito.
Para Gabi Moreira, conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Minas, as categorias de gênero são produzidas dentro das relações sociais e são mutáveis com o passar do tempo. Ela afirmou que defendia uma transformação epistemológica, de modo que a sociedade deixasse de tratar as trans-identidades como patologias.
Semana dos não binários
Ao final da reunião, a deputada Bella Gonçalves (Psol) conclamou os presentes para irem com ela à Assessoria de Plenário para protocolar um projeto de lei que cria a semana das pessoas não binárias. Ela valorizou o fato de “20 deputades terem sido eleites na Câmara Federal”, apesar de considerar o número proporcionalmente baixo.
A deputada Lohanna (PV) disse que uma situação que a deixa “de cabelo em pé” é o fato de a equivalência do crime de racismo com a transfobia ter sido deliberada não por norma do Legislativo, mas por ação do STF. “Que bom que aconteceu, mas não é função do Judiciário legislar”, pontuou.