Casos de tortura e abusos sexuais fortalecem campanha contra comunidades terapêuticas
Deputada, militantes da assistência psicossocial e defensores dos direitos humanos cobram aprovação de disque denúncia contra comunidades terapêuticas.
Durante o mês de setembro, cinco comunidades terapêuticas, entidades privadas que prometem tratar usuários de drogas e pessoas com problemas mentais, foram fechadas em uma operação conjunta entre a Polícia Militar (PM), Vigilância Sanitária, Assistência Social e representantes da Prefeitura de Juatuba. Nesta quarta-feira (15/10/25), uma das profissionais envolvidas na operação fez um relato chocante, durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
Sildézia Francisco de Andrade é coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial (Caps I) de Juatuba, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Ela contou que foram resgatadas 60 pessoas das comunidades, embora alguns tenham sido retirados antes das inspeções. Essas pessoas relataram condições insalubres, alimentação ruim, trabalho forçado, agressões físicas, cárcere privado e ausência de assistência médica adequada. Medicamentos eram misturados em bebidas apelidadas pelos funcionários de “danoninho” e usados para manter os pacientes sedados.
“Quem se recusava a tomar, era pisoteado. Houve um paciente que pisavam no pescoço dele para obrigá-lo a abrir a boca”, afirmou Sildézia. “Quando eles estavam sedados, eles sofriam os abusos. Não preciso descrever esses abusos”, completou a servidora municipal. Para quem duvida da veracidade dos relatos, ela conta que algumas pessoas tinham ferimentos graves. “Uma pessoa sem a pele na área das costelas e dos ombros por causa de golpes de mangueirada”, relatou Sildézia.
Apesar de cinco entidades terem sido interditadas, outras ainda funcionam e algumas das pessoas resgatadas foram reinternadas pela própria família. “É revoltante. Um usuário estava aqui sendo bem tratado e veio uma ordem judicial, que a família conseguiu, para interná-lo em outra comunidade terapêutica”, contou a servidora.
Apesar de a maioria dos internados serem usuários de drogas, há casos de pessoas que simplesmente eram rejeitadas pelas famílias em função de problemas de saúde. “Há uma garota de 23 anos que é muda e autista. A família queria sossego e colocou ela lá”, lamentou Sildézia.
Ela conta que Juatuba tem uma extensa área rural, ideal para pessoas que buscam um local isolado para a prática de crimes. “Essas pessoas buscam lugares escondidos para praticar crimes, pois são criminosos, não há outro nome”, relatou. De acordo com Sildézia, há uma rede de 12 comunidades terapêuticas no município, com ligações com políticos e apoio dos familiares das vítimas internadas.
Campanha nacional quer o fim das comunidades terapêuticas
Casos como os de Juatuba motivaram a criação de uma campanha nacional contra as comunidades terapêuticas, lançada em 10 de outubro. Membro da Frente Mineira Drogas e Direitos Humanos, Geovanna Carazza argumentou durante a audiência pública que casos de abusos extremos como os ocorridos em Juatuba não são exceções.
Entre os casos que ela relatou, está uma diligência do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais em 2020, na Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim, em Itamonte (Sul de Minas), onde foi verificado abuso sexual e até um homicídio envolvendo adolescentes internados.
Militante da Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas (Asussam) e ex-interno de uma comunidade terapêutica, Anísio Martins fez uma defesa enfática da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do Estado. “Eu vivi e sei a diferença. A comunidade terapêutica é clínica sem médico e terapia sem terapeuta. É uma coisa privada sem eficácia nenhuma. Naquela onde vivi, não vou mentir, não tinha tortura física, mas tortura psicológica existe em todas elas. Não ajuda em nada”, declarou.
Projeto que propõe disque denúncia aguarda análise em comissão
Autora do requerimento para realização da audiência pública e presidenta da Comissão de Direitos Humanos, a deputada Bella Gonçalves (Psol) defendeu a aprovação de um projeto de sua autoria para ajudar a reprimir os crimes cometidos em comunidades terapêuticas.
O Projeto de Lei (PL) 2.049/24 institui o serviço Disque Denúncia Comunidades Terapêuticas, Clínicas de Reabilitação e Congêneres, e aguarda desde abril a análise da Comissão de Constituição e Justiça da ALMG. A atual relatora é a deputada Maria Clara Marra (PSDB).
“Está sendo muito difícil tirar o projeto da Comissão de Constituição e Justiça porque há deputados que defendem as comunidades”, afirmou Bella Gonçalves. Para ela, o disque denúncia seria uma ferramenta para compensar a falta de fiscalização em muitos municípios. “Hoje o Estado de Minas Gerais está infestado desses espaços em que não há qualquer tipo de fiscalização”, declarou a deputada.
Militante do Fórum Mineiro de Saúde Mental, Camila Augusta dos Santos disse que Minas Gerais é um polo de comunidades terapêuticas e que as denúncias têm chegado cada vez mais. “O disque denúncia é uma ferramenta de proteção. É inaceitável que qualquer centavo de dinheiro público continue sustentando esse tipo de prática que viola a dignidade humana e os direitos constituídos”, criticou Camila, engajada na campanha contra as comunidades terapêuticas.
A assessora de Relações Institucionais da Secretaria de Estado de Saúde, Camila Miller D'Assumpção, explicou que os recursos encaminhados pelo Estado para as comunidades terapêuticas não compõem a política da Rede de Atenção Psicossocial. “É uma política do governo”, disse.
Apesar da dificuldade em aprovar seu projeto, Bella Gonçalves afirmou que algumas vitórias já foram alcançadas. Um exemplo foi a derrota do Governo do Estado que tinha a intenção de destinar recursos do Fundo de Erradicação da Miséria para as comunidades terapêuticas. Bella Gonçalves também afirmou que pode recorrer à Justiça contra a possível aprovação de projetos na Câmara Municipal de Belo Horizonte para permitir a internação involuntária de pessoas em situação de rua.

