Apesar de muitas leis, garantia de direitos para pessoa com deficiência ainda é desafio
Cenário debatido em audiência da Comissão de Assuntos Municipais é ainda mais complicado no interior do Estado. Participantes reivindicam prioridade no orçamento público.
De um lado, uma das legislações mais avançadas do mundo. Do outro, o desafio diário das pessoas com as chamadas deficiências do neurodesenvolvimento e seus familiares em fazer com que os direitos mais básicos sejam cumpridos, sobretudo no âmbito dos municípios.
Esse foi o panorama preocupante relatado na tarde desta segunda-feira (17/4/23) na audiência pública da Comissão de Assuntos Municipais e Regionalização da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), que atendeu a requerimento do presidente da comissão, deputado Cristiano Silveira (PT).
O objetivo do debate era justamente avaliar o papel dos municípios na inclusão de pessoa com deficiências do neurodesenvolvimento, em especial na garantia da acessibilidade às pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). E as alternativas para isso, segundo os participantes, vão desde a mudança cultural da sociedade na sua relação com a pessoa com deficiência até, consequentemente, a prioridade para o tema na elaboração dos orçamentos públicos.
Pai de um menino de 10 anos com autismo, o titular da Coordenadoria Estadual da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência da Defensoria Pública de Minas Gerais, Luis Renato Braga Arêas, ilustra bem o tamanho desse abismo entre legislação e realidade. Ele conta que até mesmo para o filho dele a boa vontade para cumprir o que já diz a lei somente aparece quando ficam sabendo que o pai é defensor público.
“O direito tem que chegar até esses indivíduos, não são suas famílias que têm buscá-lo”, sentencia Luis Arêas. “Sei bem como é frustrante ter a legislação debaixo do braço, saber que se tem direito legal, mas eles são negados sem qualquer justificativa. Eu já passei por inúmeros casos com meu filho e sei como é difícil implementar certas culturas para assegurar o cumprimento da legislação”, completa.
Nova rede de proteção de direitos e mudanças na legislação federal
A audiência reuniu dezenas de convidados, em sua maioria pessoas com deficiências do neurodesenvolvimento e seus familiares, mas também especialistas, militantes da causa e gestores estaduais, que reforçaram a importância do encontro para reforçar a mobilização e articular novas estratégias de ação.
O Auditório José de Alencar ficou lotado e participantes também foram acomodados no Espaço Democrático José Aparecido de Oliveira, bem ao lado, de onde assistiram a discussão por meio de um telão.
E uma das novidades apresentadas foi justamente uma nova articulação encabeçada pela Defensoria Pública de Minas Gerais com a participação de várias instâncias do poder público e da sociedade civil para criar uma rede de proteção atuante em cada um dos 853 municípios mineiros.
Segundo o defensor, o termo de cooperação foi assinado em setembro do ano passado e a intenção é priorizar uma mudança institucional profunda que, em vez de mais litígios, promova soluções concretas.
Outra conclusão da audiência foi a entrega ao deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) de um “pacote” de sugestões de melhorias na legislação federal sobre o assunto, como na Lei Berenice Viana (Lei Federal 12.764, de 2012), que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, e no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei Federal 13.146, de 2015).
O parlamentar é um dos vice-líderes do Governo no Congresso Nacional. Entre as sugestões está por exemplo a mudança na primeira palavra do termo “acompanhante especializado” para “professor especializado”, brecha legal que estaria sendo sido utilizada pelo poder público para sonegar ou disponibilizar um atendimento inferior às pessoas com deficiência quando o tema é a educação inclusiva.
Também pai de uma criança autista, Cristiano Silveira lembrou a importância da atuação integrada nos três níveis de governo para que a melhoria no atendimento a pessoa com deficiência seja de fato uma prioridade das políticas públicas.
Na avaliação do parlamentar, muitos sequer sabem dos seus direitos para que possam lutar por eles, motivo pelo qual ele elaborou a Cartilha Autismo Consciente, que já está na terceira edição.
A iniciativa mereceu elogios de outros parlamentares presentes no debate, como os deputados Leleco Pimentel, vice-presidente da Comissão, e Luizinho, ambos do PT, e ainda Grego da Fundação (PMN), que é vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência e pai de um menino com Síndrome de Down.
Associação atua no vácuo deixado pelo poder público
Entre os relatos apaixonados em mais de cinco horas de reunião, o da presidente da Associação Amigas e Mães de Autistas da Região Amar Barreiro, em Belo Horizonte, Carla Nonaka, emocionou os presentes e ela foi aplaudida de pé.
Segundo ela, a entidade sem fins lucrativos foi criada justamente para tentar oferecer um apoio mínimo às mães de pessoas com deficiência diante da ineficiência do poder público. “Somos seis mães de autistas que se mobilizaram, porque a intervenção multidisciplinar que nossos filhos recebem, todos os filhos de outras mães também merecem receber”, apontou.
Uma rede de mobilização para disponibilizar profissionais a preços mais acessíveis já é responsável por cerca de 300 atendimentos especializados semanais. Ela também relatou inúmeros problemas no atendimento a pessoas com deficiências do neurodesenvolvimento, sobretudo na rede pública de educação.
Na direção de uma entidade com atuação semelhante, a presidente da Associação Pró-Autistas de São João del-Rei (Aspas), Daniele Márcia Muffato, lamentou sobretudo a demora no diagnóstico e, consequentemente, na intervenção precoce das crianças com deficiência, com impactos decisivos na vida adulta desses indivíduos.
Segundo ela, na média, pelo SUS, na sua região, são apenas 30 minutos semanais de atendimento em várias especialidades, obviamente insuficientes para qualquer impacto positivo nesses pacientes. Ainda de acordo com ela, o diagnóstico “precoce” para bebês levaria de oito a dez meses e, ainda pior, após os dez anos de idade essas crianças já seriam alijadas desse tipo de atendimento.
Recursos limitados e muitos gargalos
Em linhas gerais, os representantes do Executivo estadual presentes na audiência destacaram iniciativas em suas áreas mas reconheceram que, em um cenário de recursos limitados, ainda há muitos gargalos a serem superados.
A diretora de Ações Temáticas e Estratégicas da Subsecretaria de Políticas e Atenção à Saúde da Secretaria de Estado de Saúde (SES), Gabriela Cintra Januário, lembrou a atuação multidisciplinar dos Centros Especializados em Reabilitação (CERs) presentes em 168 municípios mineiros. E ainda o repasse anual de aproximadamente de R$ 200 milhões para entidades como as Apaes que atuam de forma semelhante.
Já a coordenadora estadual de Articulação e Atenção à Pessoa com Deficiência da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), Ana Lúcia de Oliveira, lembrou a importância da emissão da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea) como estratégia de dimensionar melhor esse público e garantir melhor seus direitos.
E a coordenadora de Educação Especial e Inclusiva da Secretaria de Estado de Educação (SEE), Suéllen Cristina Ferreira Gomes Fernandes Coelho, defendeu a atuação do profissional de apoio nas salas de aula, que seria especializado e atuaria em conjunto com o professor regente dentro de uma realidade possível no ensino público do Estado.


