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Ambientalistas cobram revisão de decreto que regulamenta caução ambiental na mineração

Participantes de audiência apontam falhas no cálculo e alcance de mecanismo para assegurar recuperação socioambiental em caso de acidentes e no processo de desativação de barragens.

07/03/2024 - 21:04
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Falta de discussão prévia e subdimensionamento de valores, resultante de cálculos feito sem embasamento técnico mais amplo. Esses seriam alguns dos problemas do Decreto 48.747, que trata da caução ambiental para empreendimentos minerários, de acordo com participantes da audiência da Comissão de Administração Pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), realizada na tarde desta quinta-feira (7/3/24).

O debate atendeu a requerimento da deputada Beatriz Cerqueira (PT), que comandou a audiência.

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Editado pelo Executivo, em 29 de dezembro de 2023, o decreto regulamentou a chamada caução ambiental, espécie de seguro para garantir a reparação ambiental e social em caso de tragédias com barragens de rejeitos - como as ocorridas em Mariana (Central), em 2015, e Brumadinho (RMBH), em 2019 - ou ainda para a chamada descaracterização (desativação e recuperação) dos empreendimentos atuais ou futuros.

O decreto faz parte da regulamentação prevista na Política Estadual de Segurança de Barragens, instituída pela Lei 23.291, de 2019, mais conhecida como Lei Mar de Lama Nunca Mais, legislação aprovada logo após a tragédia em Brumadinho. Em linhas gerais, ele aponta quatro modalidades de garantia para instituir a caução ambiental: depósito em dinheiro; Certificado de Depósito Bancário (CDB); fiança bancária ou seguro-garantia.

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A audiência chegou a ser interrompida por alguns minutos pelos gritos de manifestantes nas galerias do Plenarinho II que, como os ambientalistas que fizeram críticas na reunião, também se opõe ao decreto, mas sob o argumento de que ele atrapalha investimentos e a geração de empregos.

Neste cenário, tanto Beatriz Cerqueira quanto a deputada Bella Gonçalves (Psol) e o deputado Tito Torres (PSD) defenderam a revisão dos termos do decreto após uma discussão mais ampla intermediada pela ALMG. “Por que o governo demorou tanto para editar esse decreto e o fez sem ouvir ninguém? Foram cinco anos de espera. A sociedade civil precisa ter voz nessa discussão”, afirmou Beatriz Cerqueira.

A parlamentar denunciou que o tumulto na reunião foi patrocinado pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) e lembrou que os representantes do Executivo puderam dar suas explicações em defesa do decreto sem serem interrompidos.

Às 18h42, a deputada Beatriz Cerqueira solicitou imagens das galerias vazias e voltou a criticar a Fiemg. “O barulho da Fiemg foi para que fizesse composição de mesa. Não vieram para a audiência, ou ainda estariam aqui. Vieram fazer lobby para não pagar caução nenhuma", ironizou.

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Tito Torres também criticou a interrupção do debate e propôs a continuidade dele com a participação da Comissão de Desenvolvimento Econômico. “Pelo que eu entendi aqui, tanto a Fiemg como os ambientalistas são contra o decreto e todo mundo está contra o Executivo. Sei da seriedade com que foi feito o decreto, mas ele pode ser melhorado”, apontou.

Bella Gonçalves destacou que a Lei Mar de Lama Nunca Mais é uma referência internacional que não pode ser comprometida pelo decreto e lembrou ainda as recentes ameaças sofridas pela secretária de Estado de Meio Ambiente, já em investigação pela Polícia Civil.

“Não é democrático interromper uma audiência aos gritos, ainda mais quando uma mulher está falando. Para evitar isso bastava o governo ter chamado a sociedade para debater o assunto antes de fazer o decreto”, criticou.

Fórmula de cálculo teria sido copiada de dissertação de 2010

O presidente do Instituto Fórum Permanente do São Francisco, o engenheiro Euler de Carvalho Cruz, resumiu, em sua apresentação na audiência, os principais problemas do decreto. A entidade reuniu especialistas para analisar o texto e isso resultou em um estudo de 40 páginas referendando a necessidade de revisão do decreto.

Entre os inúmeros problemas, o mais grave, segundo ele, seria a fórmula de cálculo da caução, que consta de um anexo, pois ela teria se baseado apenas em uma tese de mestrado elaborada ainda em 2010 que, além de desatualizada, teria utilizado apenas projetos preliminares de fechamento de barragens e sequer revela quais foram utilizadas como referência. Também seria falha por priorizar a área das barragens sem levar em conta o tipo de rejeito e os impactos dos empreendimentos minerários atuais.

De acordo com Euler, a própria dissertação admite que a fórmula levou em conta apenas os chamados rejeitos inertes, enquanto o tratamento dos chamados rejeitos sulfetados podem custar até nove vezes mais. “Esses são rejeitos que contém ácido sulfúrico, como em Paracatu (Noroeste), que tem as maiores barragens do Brasil. E ainda temos as barragens com rejeitos radioativo, que são muito mais caras ainda”, explica.

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O estudo elaborado pelo Fórum denuncia ainda que, seguindo a fórmula do decreto, a caução da barragem que se rompeu em Mariana deveria ser de aproximadamente R$ 62,8 milhões, enquanto o valor estimado pela Advocacia-Geral da União (AGU) para recuperação da área atingida é de R$ 126 bilhões, o que é 2.006 vezes menor.

Essa discrepância é ainda maior no caso da barragem que se rompeu em Brumadinho. Enquanto a fórmula do decreto apontaria, se isso tivesse sido levado em conta na época de instalação do empreendimento, uma caução de R$ 14,3 milhões, o acordo de reparação já celebrado pelo Executivo é de R$ 37,7 bilhões; ou seja,  2.889 vezes menor.

“Essa dissertação ainda fala em fechamento de barragem e isso é diferente de descaracterização pois não inclui recuperação das áreas circunvizinhas. Você pode contratar uma empresa de engenharia para estudar o custo específico de descaracterização de cada barragem, em vez de só aplicar uma fórmula”, aponta, por fim, o especialista.

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Dia 29 termina prazo para caução de empreendimentos atuais

As críticas ao decreto foram referendadas por outros participantes da audiência. Júlio César Dutra Grillo, ex-superintendente Regional do Ibama, lembrou que por ocasião das discussões da Lei Mar de Lama, colocou a caução no texto e lutou para mantê-la.

“Em reunião com a Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam), expliquei como fazer o cálculo para o regulamento. Mas não fui mais chamado”, criticou. Para ele, o decreto não é um equívoco, e, sim, proposital. “É uma evidência muito grande de beneficiamento das mineradoras. Eu gostaria que isso fosse investigado”, emendou.

O especialista ainda defendeu nova regulamentação antes do próximo dia 29, quando as mineradoras farão suas cauções dos empreendimentos já em operação.

Jeanine Renato Souza Oliveira, do Projeto Manuelzão e do Movimento “Mexeu com a Serra do Curral Mexeu Comigo”, deixou claro que, pelo histórico do governo com relação à mineração, o decreto não deve ser revisto. “A vida do ativista ambiental é prever acidentes e vê-los acontecer”, lamentou.

“Esse decreto faz um passa moleque na lei que ele deveria cumprir”, completou Joceli Jaison José Andrioli, dirigente nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens.

“Em vez de chamar sociedade para discutir algo tão delicado, o governo toma decisões que somente interessam a essas corporações. No caso de Brumadinho, o dinheiro ainda foi transferido direto aos cofres do Estado e usado de formas espúrias. Por tudo isso esse decreto precisa cair”, reivindicou Daniel da Mota Neri, da Frente Mineira de Luta dos Atingidos pela Mineração.

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Recuperação ainda é obrigação legal, independentemente da caução

Na outra ponta, os representantes do Executivo presentes na audiência defenderam o decreto. A chefe de gabinete da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), Letícia Campos, negou que o decreto vá contra ou em paralelo à lei. “O decreto prezou pelo equilíbrio, tanto que vimos aqui a manifestação”, afirmou.

“A caução está limitado ao momento do sinistro e será necessário em todos os processos de licenciamento ambiental, aqueles já em curso no prazo de 90 dias e para os novos já é exigido”, afirmou Letícia. Segundo ela, a recuperação ainda é uma obrigação legal, independentemente da caução.

Essa posição foi reforçada pelo diretor da Feam, Roberto Júnior Gomes. “O decreto reitera isso e não transfere a responsabilidade para o Executivo”, aponta.

O superintendente financeiro da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico (Sede), Leonardo Delbis de Lacerda, destacou que, no caso da modalidade CDB, isso poderá ser feito em parceria com o Banco de Desenvolvimento do Estado de Minas Gerais (BDMG), o que deve dar mais segurança às operações. “Mas a prioridade do Executivo continua sendo as ações de prevenção”, lembrou.

Segundo o superintendente de Política Minerária, Energética e Logística da Sede, Pedro Oliveira de Sena Batista, o modelo adotado de caução prioriza a liquidez.

Comissão de Administração Pública - debate sobre a regulamentação da caução ambiental prevista na Lei Mar de Lama Nunca Mais

Alguns parlamentares avaliam que os valores da caução são muito baixos, mas este não seria o único problema do decreto. TV Assembleia
Comissão de Administração Pública - debate sobre a regulamentação da caução ambiental prevista na Lei Mar de Lama Nunca Mais
“Essa audiência não é para ouvir o poder econômico. A Fiemg inclusive judicializou a Lei Mar de Lama Nunca Mais. Essa chantagem de defesa do emprego não cola mais. Em Brumadinho a mineradora matou seus funcionários quando eles estavam almoçando, foram 272 assassinatos. Estamos atuando em defesa da vida de todos os funcionários dessas empresas”.
Beatriz Cerqueira
Dep. Beatriz Cerqueira
“A recuperação ambiental não é estática no tempo, ainda mais neste cenário de aquecimento global em que as chuvas estão cada mais intensas. Temos que garantir o dinheiro para acompanhar essas barragens de 100 a 200 anos. Quem vai pagar por isso?"
Euler Cruz
Presidente do Instituto Fórum Permanente do São Francisco

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