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Uso medicinal da cannabis apontaria resultados promissores em pacientes com autismo, segundo médicos

País tem quase 90 mil pessoas em tratamentos com a planta e médicos defendem ampliação do acesso, diante das evidências positivas em várias áreas da saúde.

26/04/2024 - 16:36
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Associações de pacientes de cannabis medicinal no Brasil tratam 86.776 pessoas, com idades entre seis meses e 102 anos e com uso de mais de 205 mil frascos/ano. A maioria (58,3%) são mulheres. Entre as enfermidades, os transtornos mentais e comportamentais aparecem em primeiro lugar, com 16,7% dos pacientes. Essas mesmas associações têm quase 3.500 médicos prescritores.

Os dados são do mês de abril e foram apresentados pelo médico Leandro Cruz Ramires da Silva no debate público “Cannabis e ciência: evidências sobre o uso terapêutico e seus meios de acesso”. O evento está sendo realizado pela Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) ao longo desta sexta-feira (26/4/24).

Leandro Silva é diretor médico científico da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (Amame) e, desde 2014, receita cannabis medicinal e cultiva com salvo-conduto para seu filho. “A vida dele mudou. Ele tinha várias convulsões ao dia, hoje fica até três meses sem crise. E nunca mais internou. Três anos depois, já não tomava nenhum alopático”, relatou.

Na Mesa 1, que debateu “a importância e os avanços no uso terapêutico e medicinal da cannabis”, ele afirmou que a experiência em casa o tornou uma referência e, inclusive, coautor de estudo que confirma o benefício da cannabis em pacientes com autismo. Nesse público, houve melhora do deficit de atenção e hiperatividade e nas crises convulsivas. Outros estudos, ligados à fibromialgia e ao câncer, também foram citados.

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Legislação teria falhas e contradições

Leandro Silva criticou a legislação brasileira por impor restrições à compra interna da cannabis, mesmo aquela com baixo THC, a sustância ativa mais conhecida da planta. No mundo, segundo ele, o produto com baixo THC sequer precisa de receita, desde que a Organização Mundial da Saúde retirou a cannabis da lista de opioides graves, em 2020.

Outros pontos destacados pelo médico foram o crescimento das importações e da judicialização do acesso ao chamado canabidiol. Ele citou o caso de São Paulo, que gastou R$ 25 milhões para atender 843 pacientes. “Se esse montante fosse usado nas associações, todas sem fins lucrativos, poderíamos atender 25 vezes mais pessoas”, comparou.

O médico ainda deixou sugestões para o Legislativo, como a inclusão da cannabis medicinal na lista de medicamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) no Estado, o envolvimento da Fundação Ezequiel Dias (Funed) e da Universidade de Minas Gerais (Uemg) nas pesquisas e fomento à produção por parte do Banco de Desenvolvimento do Estado (BDMG).

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A necessidade de mais estudos foi destacada também por outra expositora, a médica hematologista Cláudia de Bessa Solmucci. Ela passou a pesquisar a cannabis há poucos anos e se espantou ao descobrir receptores para o produto também no sistema imunológico, que ela tratou a vida toda. 

Cláudia Solmucci listou várias áreas da medicina que já contabilizam resultados promissores nos tratamentos com cannabis, como a ginecologia, a odontologia e até o tratamento da dependência química. Ela ainda citou o lúpus, que tem tratamento caríssimo com a alopatia. “Certamente vamos lidar com o lobby da indústria farmacêutica”, salientou.

Entre os debatedores, o psicólogo Anderson Nazareno Matos avaliou que os principais efeitos colaterais da cannabis – sonolência, tonteira, tosse e visão turva – são de menor importância diante de situações debilitantes e de agonia. Ele defendeu mudanças na legislação que garantam o diagnóstico correto das doenças e o acesso ao tratamento com a cannabis.

Já a médica Daniela Arruda de Barros, também pesquisadora em cannabis medicinal, destacou, entre outros temas, o potencial econômico da planta. Segundo ela, o cânhamo, uma subespécie da Cannabis sativa, é ótima opção para melhorar a terra nas monoculturas de milho e soja. 

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Mãe relata luta por direito a tratamento

A mesa 1 foi encerrada com o relato emocionado de Cleuza Lendário, mãe de Samuca, paciente tratado com cannabis medicinal e referência nacional em cultivo e produção de óleo de cannabis.

Ela comoveu todos os presentes com seu testemunho sobre sua luta e a do marido para garantir o óleo para o tratamento do filho Samuel, criança atípica que, segundo ela, teve o cérebro comprometido por uma encefalite viral por herpes contraída aos dois anos de idade e, mais à frente, foi diagnosticado com autismo.

Após a encefalite, que deixou Samuca em coma por 45 dias, o menino passou a ter até 60 convulsões e tomar 18 medicamentos num só dia, até que dona Cleuza teve acesso a mensagens sobre o uso do óleo de canabidiol e foi atrás de informações.

Inicialmente, ela chegou a pagar R$ 1.200,00 por uma seringa de óleo oriundo de uma plantação nacional, há dez anos. Mas os recursos da família não davam para bancar a terapia e dona Cleuza começou a plantar cannabis no quintal de cada para fins medicinais.

Ela chegou a conseguir um habeas corpus para garantir o plantio, mas um mandado de busca e apreensão, em setembro do ano passado, em Planura (Triângulo Mineiro), resultou na destruição da plantação. 

O marido chegou a ser preso, ela responde a processo e houve ameaça de Samuca ser levado ao Conselho Tutelar. Três meses à frente, em 2 de fevereiro deste ano, Samuel morreu, aos 17 anos.

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Minas Gerais está atrasada na disponibilização dos medicamentos

Se, por um lado, há grandes potencialidades e alguma vanguarda na ciência mineira, no campo jurídico, o Estado estaria atrasado. De acordo com Lourdes Machado, representante do Conselho Estadual de Saúde, vários estados já aprovaram legislações para oferta dos medicamentos a base de cannabbis pelo SUS, mas Minas Gerais ainda não avançou no tema.

Nesse sentido, a deputada Beatriz Cerqueira, autora do requerimento que deu origem ao debate público, salientou que já está em tramitação o Projeto de Lei (PL) 3.274/21, que torna obrigatório o fornecimento desses remédios para condições médicas debilitantes. Para a parlamentar, pretende-se, com o debate público, abrir espaço para que a matéria seja apreciada de forma célere e efetiva na Casa.

Enquanto isso não acontece, o remédio só está disponível para quem consegue pagar por ele. De acordo com Lourdes Machado, o custo fica em torno de R$ 2 ou R$ 3 mil mensais. Outro caminho é a judicialização das demandas. O promotor Luciano Moreira de Oliveira, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde (CAO-Saúde), explicou que têm chegado ao Ministério Público demandas tanto para liberação de produção domiciliar quanto de receituário para tratamento de autismo.

O presidente da Associação pelo uso de Cannabbis Medicinal de Belo Horizonte, Matheus Candini Soares, deu seu depoimento nesse sentido. Segundo ele, sua família se beneficiou do medicamento no tratamento de Alzheimer nos avós paternos e maternos, com resultados melhores do que os oferecidos nos tratamentos tradicionais. 

Também o deputado Roberto Andrade (Patriota) e a deputada Ione Pinheiro (União) estiveram presentes na mesa de abertura. Eles são coautores do requerimento que solicitou o debate público e ressaltaram a importância de se vencer os preconceitos para uma discussão baseada em evidências científicas. Andréia de Jesus (PT) também esteve no evento.

Tópicos: Saúde Pública
Debate público - Cannabis e ciência: evidências sobre o uso terapêutico e seus meios de acesso (Abertura)
Debate público - Cannabis e ciência: evidências sobre o uso terapêutico e seus meios de acesso (Mesa 1)
"Engasgou, broncoaspirou e por segundos morreu nos meus pés, por falta de recursos do Estado e do único remédio que controlava meu filho. Venci o preconceito de uma igreja e de uma sociedade, e tinha um direito por lei, que me foi tirado. Podemos ser presos, mas o pior foi ter perdido meu filho."
Cleuza Lendário
Mãe de paciente autista tratado com cannabis medicinal

Emília Alcântara Moreira, biomédica e membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cannabis, alertou que os avanços no uso terapêutico passam também pela capacitação. "Se os produtos à base de cannabidiol estiverem no SUS, os profissionais estarão capacitados para prescrever?", provocou ela ao frisar que a terapia com produtos de canabis precisam de paciência e acompanhamento.

No mesmo sentido, a médica de família e comunidade Sâmara Bragança Bastos Guimarães trouxe ao debate público o Mapa de Evidências - Cannabis Medicinal, que segundo ela foi um dos destaques do maior congresso na área realizado em 2023.

O estudo foi construído a partir da análise de 194 artigos científicos, dos quais 55 são oriunodos dos Estados Unidos e 32 do Reino Unido. Do total, 88 artigos analisados focaram nos efeitos colaterais, avaliados como leves e toleráveis. Ao passo que foram múltiplos os efeitos positivos do uso em vários cenários e problemas de saúde.

Durante a mesa de abertura do debate, a potencialidade do parque científico de Minas Gerais para contribuir para o avanço do conhecimento sobre o uso medicinal da cannabbis foi defendida por representantes das universidades presentes.

Segundo Demetrius Davi da Silva, reitor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), a instituição criou o primeiro banco de germoplasma de cannabbis no Hemisfério Sul. Assim, pode-se conhecer melhor a planta, suas especifidades e suas potencialidades. Já a Universidade Federal de Lavras, de acordo com a professora Vanessa Stein, fundou em 2023 o centro biotecnológico de plantas psicoativas.

A pró-reitora de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jaqueline Takahashi, ressaltou que há muita pesquisa a ser feita e as universidades estão prontas para contribuir.

Já a coordenadora de pesquisa, inovação e pós graduação do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), Glaucia Xavier, frisou que é preciso que o senso comum e o preconceito não sejam o centro dos debates.

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