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Piauí Poço Dantas: uma comunidade exilada pela mineração

Moradores da localidade no Vale do Jequitinhonha vivem cercados por montanhas de rejeitos que afetam suas vidas

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Ana, Jéssica, Rochael, Maura, Rosa, Chico, Valquíria, Paloma, José, dona Mocinha. Vidas distintas seladas por um mesmo destino: encurraladas pela mineração. Na comunidade de Piauí Poço Dantas, em Itinga (Vale do Jequitinhonha), 68 famílias viram sua rotina totalmente alterada nos últimos três anos. Aos pés de montanhas de rejeitos do lítio, que cercam as propriedades, sofrem no físico e na alma e carregam o medo e a insegurança.

Em visita à localidade nesta sexta-feira (12/9/25), a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) constatou o horror do cotidiano da comunidade e ouviu relatos emocionados e revoltados dos atingidos pela atividade. Um sofrimento que lhes parece interminável e insolúvel desde que a Sigma Lithium os empurra com o avanço da exploração.

Muitas construções estão a poucos metros e abaixo de pilhas de pó compactados após a lapidação das rochas com o mineral. A Escola Municipal Nuno Murta, de educação básica, onde foi realizado o primeiro encontro da comissão com a comunidade, fica a cerca de 500 metros de uma dessas montanhas do lixo mineral, um cenário que assusta quem chega por ali.

“Estivemos aqui em março mas a paisagem não estava como hoje, foi muito rápido. Como a gente vai conseguir conviver dessa maneira”?, questionou o prefeito João Bosco Versiani Gusmão, o Bosquinho, (PSD), que participou da reunião de escuta dos moradores.

Em função do agravamento de saúde de sua mãe, que se recupera de um AVC, a deputada Beatriz Cerqueira não pôde participar de toda a visita, mas deixou sua impressão já pelo trajeto que percorreu na comunidade e pelo que ouviu na véspera, de moradores da Área de Preservação Ambiental (APA) Chapada do Lagoão, em Araçuaí. “Onde a mineradora se instala, ela faz um falso discurso de progresso. O lucro é para poucos, o progresso também é para poucos, e os problemas gigantescos são vividos cotidianamente pela comunidade”, observou.

A deputada, autora do requerimento para a atividade, ressaltou que a insegurança, o medo das comunidades, o sentimento de estarem desassistidas, isoladas, sozinhas, foram demandas comuns dos dois dias de visita à região. 

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O deputado Doutor Jean Freire (PT), que conduziu todos os encontros, registrou as queixas comuns sobre impacto na saúde das pessoas, com problemas respiratórios, doenças de pele, hipertensão, ansiedade e depressão, entre outros males, além de contaminação das águas do Ribeirão Piauí, afluente do Rio Jequitinhonha. O deputado visitou casas com rachaduras provocadas pelas constantes explosões nas minas, com iminente risco de desmoronamento.

“Estamos aqui para defender nosso povo, nossa terra, nossa água”, comprometeu-se o parlamentar. Ele defendeu que as riquezas extraídas de todo o Vale do Jequitinhonha sejam revertidas e permaneçam na região como conhecimento, tecnologia e saúde para todos. “Essa riqueza não fica aqui, essa riqueza vai para fora, e não simplesmente para fora do Jequitinhonha, vai para fora de Minas, para fora do Brasil”, criticou.

Bosquinho defendeu uma composição de interesses na qual a mineração atue responsavelmente respeitando os povos originários que já estavam nas localidades antes da chegada das empresas. “Vamos caminhar juntos para encontrar a melhor solução”, propôs.

Da calma, ao caos

Todos os moradores que relataram seus casos lamentaram a mudança na então pacata comunidade, que hoje vive num caos doentio. Explosões rotineiras que provocam muito barulho, tremores, desorientam pessoas e animais; uma poeira constante que afeta a saúde das pessoas e impregna nos móveis e casas; movimentações diuturnas de caminhões carregando os rejeitos, amontoando-os e esguichando água nas vias, numa tentativa ineficaz de reduzir os efeitos.

“É movimentação 24 horas. Não temos descanso”, reclama a presidente da Associação dos Pequenos Produtores da Comunidade Piauí Poço Dantas, Ana Cláudia Gomes de Souza. Os impactos são sentidos por todos. Muitos relatos de doenças respiratórias especialmente em crianças e idosos, como o de Jéssica Pereira Santos, que sofre com seus 4 filhos que apresentam sintomas gripais crônicos. O caçula, nascido sob a égide da mineração, tem graves problemas respiratórios e não consegue dormir sem roncar, afetando ainda mais sua saúde.

Rochael Souza lembra do mau cheiro insuportável exalado pelos explosivos. Desesperançoso, lamenta sobre as heranças que podem ser deixadas pela atividade na localidade. “Se ela (a mineradora) for embora, vai deixar muita gente doente”

Indignada, Maura Ribeiro dos Santos relata que convive com depressão, principalmente após perder a mãe, ano passado, com uma pneumonia adquirida pela aspiração do pó que desaba sobre a localidade.

Ela também se preocupa com a irmã, Maria de Fátima de Matos dos Santos, que vive com o marido José Gonçalves dos Santos, de 91 anos, em uma casa com alto risco de desabar. Todas as paredes de todos os cômodos estão rachadas em função das detonações. “A porta grita, a janela grita”, relata Fátima ao contar como são as explosões.

“Meu sobrinho sofre com sangramentos no nariz. Toda minha família sofre. Até quando vamos ter que conviver com isso?”, questiona Maura.

Impactos também no ambiente e para os animais

Os efeitos da exploração em Piauí Poço Dantas perpassam muitos aspectos. Rosa Maria dos Santos Soares acrescenta às queixas comuns a mortandade provocada de peixes no ribeirão pela contaminação da água. “Não podemos mais ter criação”, lamentou.

A própria empresa reconhece que a água do riacho é imprópria para o uso e, por isso, transporta água potável para cada morador, com apoio da Prefeitura local. A medida pode beneficiar as famílias, mas não impede, por exemplo, que as plantações sejam contaminadas com a água utilizada para irrigação ou os animais afetados por também utilizar o líquido, sem que consigam ser controlados, como destacou Valquíria Gomes dos Santos.

Funcionária da Sigma, ela fez um dos relatos mais contundentes do encontro. Perdeu um bebê com cinco meses de gestação e convive com problemas gripais da filha que não têm cura. Durante a gravidez, passou mal durante uma detonação que soltou uma fumaça densa e muito mau cheiro. Pouco depois, o bebê apresentou uma cardiopatia congênita e houve o aborto espontâneo.

Em seu desabafo, adverte para uma “tragédia anunciada” pois acredita que desastres certamente vão ocorrer mais cedo ou mais tarde. Valquíria recebeu apoio de todos os políticos que acompanhavam a reunião e o compromisso de que não poderá sofrer retaliação da empresa por seu relato.

Um dos casos que mais chamou atenção pela violação de direitos fundamentais é o de quatro famílias que vivem isoladas dentro da área da mineração, que fechou a estrada de acesso às moradias. Para receberem pessoas, elas precisam se deslocar até a portaria instalada pela mineradora e seguirem com o convidado e a escolta de algum funcionário da empresa até sua própria casa.

“É igual morar em um presídio”, conta Antônio Luiz Souza que mora com a filha Paloma numa dessas propriedades. Além da liberdade de transitar, Antônio perdeu toda a capacidade de produção de hortaliças que manteve por toda a vida e hoje presta serviço num bananal próximo.

E os efeitos da mineração do lítio não se restringem à Itinga. Além de boa parte das montanhas de rejeito estarem em áreas de Araçuaí, os barulhos e tremores são sentidos também no município. Cleonice Pankararu, que mora na Aldeia Cinta Vermelha-Jundiba, a cerca de dez quilômetros de distância contou que a poeira já provoca problemas de saúde especialmente nas crianças e que os barulhos também atormentam a comunidade.

Como outros moradores que se mostraram desesperançados de uma solução viável, José Uelton Gomes, o Chico, acredita que só a saída do local pode ainda salvar as pessoas. “Muita gente já morreu por doenças provocadas pela poluição. Triste saber que temos só mais pouco tempo de vida por causa de uma mineradora”, queixou-se.

“Cuidar do nosso Vale do Jequitinhonha é uma tarefa nossa, coletiva. Todos os nossos biomas são muito importantes e a segurança de todas as pessoas também. Isso tem que ser tarefa de toda Minas Gerais”. 
Beatriz Cerqueira
Dep. Beatriz Cerqueira
Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável - visita à região da Comunidade Piauí Poço Dantas, em Itinga

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