Artistas apontam racismo de projetos apelidados de leis anti-Oruam
Proposições estão tramitando em várias casas legislativas do País, incluindo na Câmara Municipal de Belo Horizonte e na ALMG.
Projetos de lei (PLs) popularizados como “leis anti-Oruam”, que estão se espalhando por várias casas legislativas do Brasil, são inconstitucionais e racistas e têm como objetivo criminalizar expressões culturais de povos periféricos, na opinião unânime de participantes da audiência pública realizada na quinta-feira (25/9/25), pela Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
As proposições tentam proibir o financiamento público de shows e eventos que supostamente promovam apologia ao crime e uso de drogas. A referência usada é Oruam, o rapper Mauro Davi dos Santos, filho de Marcinho VP, líder do Comando Vermelho em São Paulo. Ele está preso há mais de dois meses e é acusado de fazer letras que normalizariam o crime.
Em Minas Gerais, todos os projetos são de autoria de parlamentares do PL. Na Câmara Municipal de Belo Horizonte, o PL 25/25, do vereador Vile Santos recebeu pareceres favoráveis das comissões e deve ser analisado pelo Plenário em outubro, como informou o vereador Pedro Rousseff (PT). Pedro sugeriu mobilização da sociedade para impedir a aprovação da proposição. “É a oportunidade de pressionar a não votar essa lei racista, criminosa e que não agrega nada”.
Na Assembleia de Minas, o PL 3.254/25, da deputada Amanda Teixeira Dias, recebeu parecer pela legalidade do relator Thiago Cota (PV), mas recebeu teve pedido de vistas do deputado Leleco Pimentel (PT). Os PLs 3.262/25 e 3.263/25, respectivamente dos deputados Eduardo Azevedo e Bruno Engler, foram recebidos pelo Plenário e encaminhados para as comissões para análise, mas ainda não começaram a tramitar.
Para a deputada Andréia de Jesus (PT), autora do requerimento para realização da audiência, os argumentos utilizados pelos autores são falaciosos e têm por objetivo discriminar culturas populares e expressões artísticas e culturais das periferias urbanas, como o "rap", o "funk", o "trap", os bailes e as batalhas de MCs .
“Esse debate de tentar proibir juventude que produz cultura é uma narrativa que precisamos combater”. A deputada destaca que a produção da cultura movimenta a economia, a comunidade, salva vidas e garante os vínculos comunitários. “Queremos a salvaguarda, a proteção, o tombamento e a preservação de uma cultura extremamente elaborada”, reivindica.
Constitucionalidade e motivação dos projetos são questionados
Um dos questionamentos feitos por participantes da audiência foi sobre os critérios que seriam utilizados para definir o termo apologia e quem faria o julgamento. “Quem analisaria, qual critério técnico, qual instância faria esse juízo de valor, quais garantias, vai ter contraditório, ampla defesa”?, indaga o advogado e cantor Marco Túlio Dias, o Negro Mar, do Coletivo Negro do Vale do Aço.
O artista também citou artigos da Constituição Federal que atestam a inconstitucionalidade das proposições. Além do artigo 5º, que assegura a liberdade de quaisquer manifestações culturais, Negro Mar apontou outros dispositivos que determinam prerrogativa da União de legislar sobre licitações e sobre o direito penal. “Ao condicionar inexistência de conteúdos (nas licitações) usurpa essa competência”, explicou ao acrescentar que nem o município e nem o Estado podem criar regras.
Lucas Luiz de Souza Cruz, administrador do movimento Beagá Vai Virar Baile, observou que, no ordenamento jurídico, já existem leis que proíbem a apologia ao crime, à sexualização infantil e ao uso de drogas, o que não justifica a iniciativa dos parlamentares. Em sua opinião, os projetos acabam por retirar dos jovens periféricos a oportunidade trazida pela cultura que impede de recorrer ao crime. “Em vez de criar lei que censura, deviam fortalecer programas de prevenção à criminalidade”.
Participantes exaltam vantagens da cultura da periferia
Ao longo da reunião foram muitos os relatos exaltando a importância, especialmente do funk e do hip hop, para as comunidades da periferia e para os negros.
A professora e pesquisadora da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) e articuladora da Frente Nacional de Mulheres do Funk, Maíra Neiva Gomes, afirmou que o funk é a expressão da periferia mais inclusiva, que recepciona sons considerados brancos como a música eletrônica e a clássica. Por outro lado, preserva a tradição quilombola e aceita todos os estilos culturais.
“A gente vive processo de criminalização da cultura negra, que é estrutural do Estado brasileiro”, explicou. Ela lembrou que outras expressões, como o samba e a capoeira, também já foram proibidos no passado. “O que estão propondo é uma afronta aos direitos humanos e à memória afrodescendente no Brasil”, criticou.
Todos que se manifestaram lembraram que essas manifestações mobilizam artistas, produtores e toda uma cadeia que movimenta a economia. A proibição dos eventos colocaria em risco a própria sobrevivência dessas pessoas. Saúva MC, mobilizador e produtor cultural revelou que já foi encarcerado e que o hip hop o tirou da vida de crime. “Mudou minha vida e o jeito de ver a vida, me deu outra perspectiva”, disse ele.
Indignada com as iniciativas, a produtora Bel Bertinelli alfinetou os parlamentares favoráveis aos projetos. “Ninguém aqui tá pedindo PEC da blindagem não. Não somos bandido”. Ela afirmou que preferia discutir sobre como “levar dinheiro para a favela e não como tirar”.
A gerente de Patrimônio Cultural Imaterial do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Ipham), Steffane Pereira Santos, revelou que o instituto está disponibilizando um cadastro de expressões de cultura popular. Segundo ela, 56 municípios já se manifestaram para o hip hop.
Estudiosa do estilo, Steffane defendeu um cadastramento como forma de dar visibilidade a essas culturas e uma importante ferramenta que pode ser usada para a formulação de políticas públicas voltadas para seu fortalecimento. “É uma forma de proteção legal também”, afirmou ao explicar a importância do registro de cada uma dessas formas culturais.