Júlia Elisa se apoderou de uma realidade que parecia não lhe pertencer: no âmbito acadêmico, criou o projeto Preta Poeta e transformou a poesia em ato político e humanizador
Marlise Matos falou da institucionalização das pautas feministas pelo Estado
O feminismo negro no Brasil é apontado por pesquisadora como agente transformador - Arquivo ALMG
Greve de professores por melhores salários, na década de 70. Cerca de 40 anos depois, pautas da igualdade salarial e de oportunidades de trabalho se mantêm atuais
Assembleia de professores na ALMG durante movimento grevista de 1979
Rosaura Pereira foi a primeira mulher a presidir o Sind-UTE. Para ela, ocupar espaços de poder requer muito das mulheres

Feminismos se conectam e (re)criam outras formas de resistência

Movimentos de mulheres buscam práticas políticas mais descentralizadas, embora compartilhem pautas de lutas.

Por Elaine Moraes
29/03/2019 - 11:22

As mulheres ganharam as ruas pelo mundo. As marchas das vadias, das margaridas, além dos protestos que, anualmente, marcam o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, mobilizam, no Brasil, contingentes cada vez maiores de participantes interessadas na reinvenção das práticas políticas e do ativismo feminista e nas inovações democráticas como a implementação dos mandatos coletivos.

A professora e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marlise Matos, diz que, hoje, é preciso falar em feminismos no plural.

Ela afirma, no entanto, que existe ampla conexão entre os movimentos e há pautas compartilhadas como o enfrentamento ao assédio, a descriminalização do aborto, o acesso aos direitos reprodutivos. 

Contudo, a pesquisadora é enfática ao dizer que esses movimentos vêm se transformando desde o surgimento do que ela considera ser a 4ª onda feminista. Marlise explica que, a partir de 2000, temos a institucionalização das pautas feministas pelo Estado. “Se nos anos 1990 é a sociedade civil que mais se apropria dessas demandas, agora elas se encontram materializadas em políticas públicas bem específicas”, aponta.

A professora conta que, nos anos de 2006 e 2010, a UFMG promoveu pesquisa em 18 países da América Latina para analisar a representação das mulheres nesses territórios. Foram entrevistadas representantes de organismos internacionais de direitos humanos como ONU Mulheres, de entidades civis, de partidos e ocupantes de cargos eletivos; ao todo, foram realizadas 250 entrevistas.

Segundo ela, todos os países instituíram ministérios ou secretarias de políticas para as mulheres e também contavam com planos nacionais destinados a implementar serviços para essa parcela da população, independentemente do espectro ideológico dos governos. 

Marlise Matos chama a atenção para a existência de grupos que têm dado maior especificidade aos movimentos na América Latina. As feministas de Abya Yala agregam, em especial, mulheres indígenas que tecem uma leitura crítica dos processos de colonização. “Elas possuem matrizes indígena e negra, questionam o desenvolvimento predatório do agronegócio e a exploração de recursos como o petróleo, pensando alternativas econômicas”, explica a docente.

Feminismo negro – Antes mesmo do surgimento desses movimentos na América Latina, as mulheres negras denunciam, há décadas, a limitação de teorias e movimentos que viam o feminismo como universal, desconsiderando as questões e problemas que as afetam para além do sexismo.

No livro "Quem tem medo do feminismo negro?", a filósofa Djamila Ribeiro reforça essa noção: “Ao pensar o debate de raça, classe e gênero de modo indissociável, as feministas negras estão afirmando que não é possível lutar contra uma opressão e alimentar outra, porque a mesma estrutura seria reforçada. Nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mulheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ataques, a humanidade toda corre perigo”.

Para Marlise Matos, hoje, “o feminismo negro no Brasil é o agente da transformação, o protagonista da luta”. Ela explica que existem tensões dentro dos próprios movimentos, mas que, agora, a construção é, de fato, coletiva.

Conforme a pesquisadora, a socialização do feminismo está se dando dentro das escolas e nas redes sociais. Marlise acrescenta ainda que os movimentos têm se pautado na espontaneidade, não havendo uma liderança centralizadora.

Grupos de mulheres têm reinventado esse lugar na política com os protestos de rua e com exemplos como a Gabinetona, mandato coletivo construído por quatro parlamentares em três esferas do Legislativo: Cida Falabella e Bella Gonçalves, na Câmara Municipal de Belo Horizonte; Andréia de Jesus, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG); e Áurea Carolina, na Câmara dos Deputados. Todas são filiadas ao Partido Socialismo e Liberdade (Psol).

Parlamento mineiro – Na Assembleia de Minas, desde a criação da Comissão Extraordinária de Defesa dos Direitos da Mulher em 2015, transformada em permanente em 2018, as pautas relacionadas ao tema têm se ampliado e pluralizado.

Hoje, com 10 deputadas, o Parlamento mineiro tem buscado debater demandas como a violência contra a mulher e a maior participação feminina na política, promovendo discussões em constante parceria com a sociedade civil. A série de matérias especiais sobre as lutas e conquistas das mulheres se insere nesse contexto de iniciativas que buscam colocar a temática no foco do poder público.

Jovens encontram na poesia formas de resistir

“Fazer poesia sobre si, sobre nossas histórias e as mulheres que vieram antes de nós é um ato político”, declara Júlia Elisa Rodrigues dos Santos, idealizadora do projeto Preta Poeta: a produção poética de mulheres negras enquanto um mecanismo de resistência.

A iniciativa nasceu da inquietação de Júlia, na época com apenas 17 anos, frente ao universo acadêmico que parecia não lhe acolher. “Eu não me reconhecia naquele lugar”, afirmou a mestranda em Comunicação Social pela UFMG. Ela explica que não havia pessoas negras no corpo docente e, entre os alunos, eram minoria. Em contrapartida, segundo ela, as trabalhadoras da limpeza eram, em geral, negras.

Ela decidiu, assim, transformar sua experiência. A então estudante do curso de Ciências Sociais se inscreveu em projetos de pesquisa sobre alunos cotistas e ações afirmativas, ingressou em um intercâmbio para Cabo Verde, na África, e, finalmente, em 2017, o projeto Preta Poeta foi aprovado em edital da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis, da UFMG.

A primeira edição do projeto reuniu, em sua maioria, jovens alunas da universidade. Júlia conta que o primeiro disparador da escrita foi uma carta que elas deveriam escrever para si. “Percebi que elas tiveram dificuldades de encontrar referências positivas nelas mesmas”, relata a estudante, que atribui o fato à “história única” que se conta sobre os negros no Brasil, geralmente relacionando-os às condições de escravo.

Escrevivência – Para ela, a escrita e a leitura de mulheres negras é um processo humanizador. “Se eu tivesse conhecido escritoras como Carolina de Jesus, Conceição Evaristo e Maria Firmina dos Reis, no início da adolescência, meu processo de reconhecimento enquanto mulher negra teria sido mais potente e precoce", enfatiza Júlia.

Júlia explica que o projeto foi pensado, dentre outras referências, a partir do conceito de Conceição Evaristo de “escrevivência”, a escrita assentada nas lembranças e experiências de vida de quem escreve e que revelam ainda as condições do afrodescendente no Brasil.

Em 2018, a segunda edição do projeto, realizada a convite da Biblioteca Pública Estadual, reuniu a produção das participantes na publicação "Preta Poeta: escrevivência, resistência e liberdade"

Aos 25 anos, com uma pesquisa de mestrado pela frente, que vai abordar a autorrepresentação da mulher negra no cinema e em outras narrativas visuais, Júlia Elisa pretende dar continuidade ao Preta Poeta. No próximo dia 27 de abril, realizará atividade no Muquifu (Museu de Quilombos e Favelas Urbanos – Rua Santo Antônio dos Montes, 708, bairro Santo Antônio, BH/divisa com o Morro do Papagaio), a partir das 11 horas.

Gira, poesia de Júlia Elisa

Sou o sonho mais insubmisso dos meus ancestrais

Envergo, não quebro

Não arrego, não arredo o pé

Titubeio mas não caio

E se caio, caio em pé.

Ginga necessária pra aprender um corpo capoeira feminino

Num mundo feito pra interferir no caminho mulher

 

Se que sou eu

Maior Deusa Preta desse legado

Escuta

Escuta o chamado

É esse corpo pra revolução convocado.

Sei que a paz do mundo é insustentável

Mas escuta comigo o chamado!

Nesse corpo encruzilhada

Muitos são os caminhos

Na memória do que só sinto, escuto:

Honre seus mortos, siga em frente e permaneça vivo!

 

Pois dos buracos da máscara de Anastácia

Ressoam as mesmas vozes mulheres desejos de liberdade

Pois o meu corpo mulher também enverga

Mas se cai, outras mil nascerão de pé.

E na memória de outras vidas

Uma só palavra de mensagem:

Coragem, vai, coragem!

Feminismo e trabalho: lutas que se atravessam

Estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), realizada no quarto trimestre de 2018, revela que as mulheres ainda ganham, em média, 20,5% menos que os homens.

O levantamento também apontou que as mulheres dedicaram 18 horas semanais a cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, 73% mais tempo do que os homens (10,5 horas), e que, por isso, ainda procuram ocupações em tempo parcial, como forma de conciliar as atividades.

Mesmo depois de mais de um século dos protestos e movimentos reivindicatórios promovidos pelas mulheres que foram para as fábricas, recrutadas pela indústria em desenvolvimento no Brasil, a desigualdade no trabalho ainda é uma realidade, apesar dos direitos já conquistados.

A primeira greve geral do País, em junho 1917, teve como estopim a paralisação das trabalhadoras da fábrica têxtil Cotonifício Crespi, situada em São Paulo. De acordo com a obra “Breve história do feminismo no Brasil”, de Maria Amélia de Almeida Teles, a situação das mulheres era ainda mais precária que a dos homens.

Ela conta que, em 1906, os tecelões da fábrica São Bento, também em São Paulo, entraram em greve por melhores salários e redução de jornada. “A vitória dos homens foi completa: oito horas. As mulheres ficaram com nove horas e meia. Nas categorias profissionais que concentravam o trabalho feminino, manteve-se uma carga diária maior, como no caso das costureiras”, relata.

Congresso - Em fevereiro de 1978, durante o primeiro Congresso da Mulher Metalúrgica, foram apresentadas demandas que já foram contempladas na legislação trabalhista, como a estabilidade para a mulher gestante, direito a ter períodos de amamentação durante a jornada de trabalho e a proibição de controlar o tempo para ir ao banheiro.

Mas há pautas que, 40 anos depois, se mantêm atuais: salários iguais para a mesma atividade desenvolvida, iguais oportunidades de trabalho, oferta de creches e berçários nas fábricas, ampliação da participação da mulher nos âmbitos político e sindical, dentre outras.

Mulheres se transformam ao defenderem direitos

Quando Rosaura de Magalhães Pereira, aos 22 anos, participou da organização da greve de professores da rede pública em Minas, no ano de 1979, ela não se considerava feminista ou mesmo se ocupava de questões relacionadas especificamente às mulheres. No entanto, hoje, aos 63 anos, tece uma leitura crítica e histórica sobre a situação de desprestígio da categoria.

Para ela, o fato de a grande maioria dos professores das escolas municipais e estaduais serem do sexo feminino e terem uma das menores remunerações do setor público não pode ser encarado como coincidência. “Há uma clara desvalorização do trabalho feminino aí. E isso é grave. Afinal, a independência econômica é fator relevante no processo de emancipação da mulher”, ressalta.

Após 43 dias de paralisação, diversas demandas foram atendidas como o reajuste (não exatamente no montante pretendido) e a criação de critérios objetivos para a contratação dos docentes. Segundo a professora de Física, a experiência propiciou a criação da União dos Trabalhadores do Ensino de Minas Gerais (UTE-MG) no mesmo ano.

“A história de muitas mulheres mudou depois de participar dessa mobilização e da criação da UTE. Elas buscaram sua emancipação e se envolveram nas questões políticas da sociedade como a elaboração da Constituição de 88 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, conta Rosaura, que, nove anos mais tarde, foi a primeira mulher a presidir a UTE-MG. “Meu adversário era um homem, não entramos em atrito, mas houve acirrada disputa interna. Eu estava insegura, não pensava que podia disputar aquele espaço. Mas o grupo de mulheres que apoiava a minha candidatura se mobilizou de forma aguerrida e acabei encontrando coragem”, relata a docente.

No entanto, segundo ela, se tornar “presidente de direito e de fato" não foi fácil. Rosaura diz que, no início de sua gestão, os jornais não entravam em contato com ela para apurar o posicionamento oficial do sindicato a respeito das decisões da categoria. Um colega da direção era sempre procurado para falar e a imprensa atribuía a ele o cargo de presidente. 

Em 1990, as diversas entidades dos profissionais da educação no Estado, inclusive a UTE-MG, decidiram se unificar, fundando então o Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE-MG). No congresso de unificação, o nome dela para a presidência da nova instituição foi escolhido de forma consensual. 

Respeito - Com o tempo, Rosaura Magalhães se afirmou como liderança e, ao final, conquistou o respeito dos pares e também da imprensa, recebendo o prêmio de Melhor Sindicalista do Ano, dado pelo Jornal Estado de Minas, em 1991.

Ela lembra, contudo, que ocupar espaços de gestão e de poder requer muito das mulheres. “Os homens que alcançam esses postos podem até ser apenas razoáveis, nós não”, pontua.

A sindicalista lembra, por fim, que a participação das mulheres em sindicatos, organizações da sociedade civil ou movimentos sociais, dentre outros, exige certas condições como a oferta de creches. "A sociedade precisa se dar conta de que a democratização dos espaços e das discussões políticas passa pela viabilização da participação da mulher", conclui.