As batalhas das mulheres na busca por seus direitos constituem, ao longo dos anos, um mosaico de conquistas, mas também de desafios a serem superados
Segundo Marlise Matos, há uma disposição das mulheres para desconstruir o patriarcado
Ato público do movimento Quem Ama não Mata
Em 1928, Luíza Alzira foi eleita a primeira prefeita da América Latina, no município de Lajes, Rio Grande do Norte
Marta Monteiro (à esquerda) foi uma das duas primeiras mulheres a ocupar uma vaga na ALMG, em 1963
Em fevereiro, a bancada feminina fez um pronunciamento coletivo inédito no Plenário - Arquivo ALMG
Apesar das conquistas, Miriam Chrystus diz que a violência permanece uma realidade

Lutas, dimensões e tensões: o caleidoscópio feminista

Participação política e combate à violência já alcançaram conquistas, mas pautas permanecem na agenda.

Por Elaine Moraes
25/03/2019 - 14:37

O Dicionário de Política, da Universidade de Brasília, de autoria de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, traz, no verbete Feminismo, citações aos primeiros textos de que se tem notícia sobre as formas de opressão às quais as mulheres eram submetidas.

Conforme registram os autores, em 1600, a italiana Modesta de Pozzo di Forzi, cujo pseudônimo era Moderata Fonte, escreveu a obra “Il merito delle donne” (O mérito das mulheres). No ato singular para o período histórico, ela reflete sobre a situação das mulheres de sua geração. 

Conforme Modesta, sem acesso à educação ou a meios de obter sua própria renda, a mulher se sentia em poder do homem, e estava privada de quaisquer liberdades. O destino dela era entregue ao marido, se a família lhe conseguisse um casamento, ou aos pais e irmãos, que a deixavam findar os dias “servindo os sobrinhos”.

Semelhante situação de sujeição encontra-se inscrita na literatura brasileira mais de 480 anos depois. A contista Nélida Piñon, em I love my husband (Eu amo meu marido), publicado originalmente em 1980, retrata assim o "encarceramento social" da mulher:

“Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e ainda por cima reclamo da vida. (…) A mim me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o País progredir. E é por isso que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. (...) Filho meu tem quer ser só meu, ele confessou aos amigos no sábado. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela". 

Na busca pelo enfrentamento dessas e de outras situações de dominação, o feminismo se organizou como luta política pela emancipação, autonomia e igualdade de direitos.“É a ideia radical de que somos seres humanos”, ressalta a professora e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marlise Matos.

A pesquisadora esclarece que as lutas das mulheres, ao longo da história, estão repletas de tensões. As conquistas obtidas, como o direito à participação política, o lugar nos espaços de poder e o exercício regulamentado do trabalho se concretizaram em tempos e dimensões diferentes nos diversos países, mas ainda hoje essas demandas estão na agenda dos movimentos ou retornam a ela.

Sabe-se, é certo, que as desigualdades de gênero não foram superadas e que há mulheres que reproduzem a lógica sexista; afinal, os valores da sociedade também as afetam. Contudo, existe uma transformação em curso. Conforme a docente, há também, atualmente, nítida disposição para se dar continuidade ao processo de desconstrução do patriarcado (sistema social cuja centralidade das relações está pautada nos homens; eles predominam nas instâncias de poder político e de controle das propriedades).

Lutas e conquistas das mulheres no Brasil

Ondas feministas: principais marcos do movimento

Marlise Matos afirma que a teoria feminista tem se referido aos marcos do movimento como “ondas”. Ela, no entanto, se diz incomodada com a metáfora. O termo pode sugerir uma visão equivocada, configurando a ideia de que o movimento seja sequencial e progressivo. E, na verdade, é processual, dinâmico e histórico, conforme explica.

De fato, ao traçar o panorama do feminismo, do século XIX aos dias atuais, tem-se a impressão, de que não se está diante de uma narrativa linear. Mas de uma realidade vista por meio de um caleidoscópio, na qual as múltiplas imagens vão se sobrepondo, se transformando ou se repetindo conforme o movimento de deslocamento feito sobre o próprio objeto.

Como, porém, as expressões já estão consagradas pelo cânone, a pesquisadora também lança mão dessa explicação.

Ondas

Características

1ª Onda

Século XIX

 

Pautas: O direito ao voto e à participação política, e a condições dignas de trabalho.

 

Com a ascensão do novo modelo econômico, as mulheres (sobretudo as provenientes de famílias mais pobres) foram recrutadas pelas fábricas. Um primeiro enfrentamento, então, diz respeito à precariedade das condições de trabalho na sociedade capitalista. As trabalhadoras eram violentadas de todas as formas, inclusive sexualmente, recebiam salários bem menores que os homens e eram obrigadas até a cumprir jornadas maiores. Elas se organizaram e se mobilizaram, promovendo greves e protestos.

 

Outra agenda de caráter mais liberal foi construída por mulheres, em geral, de maior escolaridade, brancas e com mais recursos financeiros. Elas reivindicavam o direito ao voto e à igualdade política e jurídica.

2ª Onda

Pós Segunda Guerra Mundial (1945)

 

Pautas: Direito ao corpo; direitos reprodutivos, liberdade sexual; combate à violência e a discriminações relativas à raça e orientação sexual.

 

A agenda feminista se pluraliza. O combate à violência, a opressão sexual das mulheres lésbicas, o racismo sofrido pelas mulheres negras passam a ser denunciados dentro dos movimentos, que são obrigados a problematizar a discriminação presente nas próprias pautas. Incorpora-se a ideia de que as experiências pessoais têm raízes em problemas estruturais.

 

O feminismo se consolida como perspectiva filosófica e política. O marco, nesse sentido, foi a publicação de “O segundo sexo”, da escritora e filósofa Simone de Beauvoir. Ela desvela a situação de opressão das mulheres e a condição de secundarização delas. A escritora critica, assim, a visão (um processo de construção social) de que a mulher seria naturalmente inferior ao homem, o que a coloca em permanente condição de desvalorização e de objeto.

3ª Onda

A partir de 1990

 

Pautas: Problematização das questões de gênero e sexualidade, igualdade material, com a valorização social e econômica, revisão crítica do próprio movimento.

 

Há, com maior abrangência, a institucionalização das pautas feministas. São criadas ONGs feministas e grandes movimentos a partir de 1995, como a Conferência Internacional da Mulher, que teve essa única edição. Aumenta-se a disputa nos partidos, legislativos e maior inserção de mulheres no Executivo.

Marlise Matos faz ainda menção à possibilidade de conformação de uma 4ª onda, que será explicada na próxima reportagem desta série, que retrata as lutas e violências sofridas pelas mulheres, bem como suas conquistas.

A Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), envolvida com a temática, também realizou no dia 8 de março, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher, o evento Sempre Vivas: mulheres contra a violência, no centro da Capital mineira.

A participação política das mulheres no Brasil

Também no Brasil, os argumentos para se negar o direito ao voto às mulheres estavam assentados na noção, construída historicamente, de inferioridade do sexo feminino; no receio de que a medida representasse a “dissolução da família” e no caráter considerado anárquico da proposta.

A luta das mulheres pelo direito à participação política, no País, é atravessada por fatos considerados pontuais, mas que tornaram possível o exercício da cidadania para todas.

Um deles foi a eleição da primeira prefeita da América Latina em 1928, quando as brasileiras sequer podiam votar. Conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luíza Alzira Soriano Teixeira tomou posse no cargo em 1º de janeiro de 1929, aos 32 anos. Ela disputou a Prefeitura de Lajes (RN), pelo Partido Republicano, vencendo o pleito com 60% dos votos.

A Constituição de 1891 definiu como eleitores “os cidadãos maiores de 21 anos”, que se alistassem na forma da lei. Embora a questão do voto feminino tenha sido pauta de acirradas discussões durante a elaboração do texto, as emendas apresentadas, que previam explicitamente a possibilidade de grupos de mulheres votarem, não foram incorporadas.

No entanto, como não havia comando explícito que proibisse o voto das mulheres, a legislação eleitoral do estado nordestino foi alterada com a inclusão de um dispositivo que propiciou não só a eleição de Alzira Soriano como também o alistamento da primeira eleitora brasileira: uma professora do município de Mossoró, Celina Guimarães Viana.

Embora a prefeita potiguar não tenha concluído o mandato (exerceu-o por apenas sete meses), a sua eleição ainda é considerada um marco no País. Em 1930, ao não concordar com o governo de Getúlio Vargas, que havia impedido a posse do candidato eleito Júlio Prestes, e assumido a presidência da República por força de movimento armado, Alzira perdeu o cargo. E as quinze mulheres que votaram no ano de 1928 tiveram os seus votos invalidados em âmbito federal.

Deve-se ressaltar que Alzira Soriano foi indicada como candidata pela advogada Bertha Lutz, uma das pioneiras do feminismo no Brasil. 

Voto feminino - Após intensa campanha nacional, no dia 24 de fevereiro de 1932, o Código Eleitoral é modificado pelo Decreto 21.076, durante o Governo Vargas, dando às mulheres o direito ao voto. Mas, somente dois anos depois, o direito de votar e ser votada foi assegurado em bases constitucionais.

Já no pleito de 1933, foi eleita a primeira deputada brasileira, a médica Carlota Pereira de Queiroz. Ela era a única integrante do sexo feminino entre os 253 parlamentares da Assembleia Nacional Constituinte. É dela o primeiro projeto de lei sobre a criação de serviços sociais no País.

Representatividade: as primeiras mulheres do Parlamento mineiro

O ano de 1963, 31 anos depois da conquista do voto feminino no Brasil, marcou o ingresso, na Assembleia de Minas, de suas primeiras deputadas: Maria Pena (PTB) e Marta Nair Monteiro (PDC). O Diário Oficial de Minas Gerais de 8 de fevereiro daquele ano, traz o discurso inaugural de uma mulher no Parlamento mineiro.

Maria Pena abriu seu pronunciamento com as seguintes palavras: “Senhor presidente, senhores deputados, bem podeis avaliar a emoção que me domina neste instante, ao subir pela primeira vez a esta tribuna. Na história do nosso glorioso Estado, (...) jamais se inseriu a notícia de que uma mulher, como legítima representante do povo mineiro, viesse a esta tribuna falar aos seus pares, em nome desse mesmo povo”.

Defesa da educação - Martha Nair Monteiro ficou conhecida por deflagrar, em 1959, como presidente da Associação de Professores Públicos de Minas Gerais (APP-MG), a primeira greve de professores primários no País. 

De acordo com a obra “Mulheres de Minas: lutas e conquistas”, ela liderou a bancada do PDC até a extinção dos partidos pelo regime militar instaurado em 1964. Deixou o Legislativo, mas deu continuidade à atuação sindical mesmo nos períodos de recrudescimento da censura e restrição das liberdades civis. Voltou a exercer cargo eletivo, como vereadora de Belo Horizonte, em 1993.

Na Assembleia, dedicou-se justamente às pautas da educação, atuando como membro da respectiva comissão. 

Uma proposição de sua autoria, transformada na Lei 3.042, de 1963, buscou assegurar às professoras primárias com mais de 60 anos o direito a participar de, ao menos, processo seletivo, uma vez que a legislação vigente não permitia que elas se inscrevessem em concurso público devido à idade.

Comissão da Mulher – A representação feminina nesta 19ª Legislatura é de 10 deputadas. Na legislatura anterior, a Assembleia de Minas contava com apenas seis parlamentares do sexo feminino. O aumento da representatividade chegou assim a 13% dos mandatos. O Parlamento mineiro é composto por 77 membros.

Em 2018, foi instalada a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, depois de ter sido criada em caráter extraordinário em 2015. Ao longo dos quase quatro anos, a ALMG tratou das demandas específicas dessa parcela da população, contribuindo para ampliar a participação na política e obter recursos no Orçamento do Estado para promoção de políticas públicas que assegurem os seus direitos.

Representação – A professora Marlise Matos pondera que, apesar das mulheres conformarem 52% do eleitorado brasileiro, a presença feminina no Legislativo não só em Minas, mas no País, ainda é considerada baixa. Segundo ela, o Brasil acumula, historicamente, posições pouco significativas nos rankings internacionais sobre a representatividade das mulheres nesses espaços de poder.

Entre os legislativos de 193 países monitorados pela União Parlamentar, a Câmara dos Deputados do Brasil, com 513 parlamentares, está na posição nº 134 com relação à quantidade de mulheres que compõem a referida casa legislativa, ocupando assim a penúltima colocação na América Latina. O último país é o Paraguai, com a posição nº 135. 

Hoje, a Câmara conta com 15% de mulheres, o número passou de 51 para 77 deputadas após o pleito de 2018. O número no Senado permanece o mesmo, sete senadoras, que correspondem a 13% do total de membros.

Mulheres se levantam contra a violência em Minas

Em 1980, um grupo de estudantes, professoras e jornalistas mineiras se mobilizaram para denunciar a violência cometida contra as mulheres e a omissão das instituições brasileiras frente ao fenômeno. De acordo com a professora aposentada da UFMG e jornalista Miriam Chrystus, uma das fundadoras do Movimento Quem Ama Não Mata, os acusados de matarem barbaramente suas companheiras recebiam penas brandas ou eram até mesmo absolvidos com a alegação de terem agido em “legítima defesa da honra”.

O adro da Igreja São José, em Belo Horizonte, foi palco do primeiro ato público do movimento, que se reconheceu feminista desde sua fundação. Miriam conta que a ação foi antecipada por iniciativas internacionais como a instituição do Ano Internacional da Mulher, em 1975, pela Organização das Nações Unidas – ONU.

Movimentos como esse já existiam, mas se multiplicaram pelo País, reivindicando inovações legislativas para coibir a violência de gênero e a adoção de medidas práticas pelo Estado como o levantamento dos casos de violência contra a mulher, a criação de uma rede de assistência às vítimas desses crimes, que, muitas vezes, se viam “presas” aos agressores por não terem equipamentos sociais que as amparassem.

De lá para cá, Miriam afirma que há muitas conquistas a serem contabilizadas: criação de centros de apoio, delegacias especializadas, as leis Maria da Penha (Lei Federal 11.340, de 2006) e do Feminicídio (Lei Federal 13.104, de 2015), dentre outras. “Mas a violência persiste como uma realidade”, lamenta a jornalista.

Segundo levantamento feito pelo Datafolha, a pedido da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), nos últimos 12 meses, 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil, enquanto 22 milhões (37,1%) sofreram assédio de alguma natureza. Entre os casos de violência, 42% ocorreram no ambiente doméstico. Cerca de 50% dessas mulheres não denunciaram o agressor ou procuraram ajuda.

A última matéria da série especial será publica na sexta-feira (29) e vai tratar das novas configurações do feminismo e das lutas das mulheres.