Trem vai de símbolo da mineiridade a ameaça contra agricultura familiar na RMBH
Comissão de Meio Ambiente visita novamente a rota dos trilhos do futuro Ramal Serra Azul, que pode deixar rastro de seca e fome na zona rural de Mateus Leme.
O mesmo trem, modal de transporte que forjou a identidade do mineiro, tanto que virou expressão multiuso no vocabulário do Estado, pode ser fonte de injustiça, medo e indignação para centenas de pequenos agricultores familiares de Mateus Leme (RMBH).
O alerta veio de agricultores participantes da visita técnica da Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), realizada ao longo de sexta-feira (27/6/25) a mais um trecho que será cortado pelos trilhos do futuro Ramal Serra Azul. A atividade atendeu a requerimento da deputada Beatriz Cerqueira (PT) e contou com a participação da deputada Bella Gonçalves (Psol).
Com aproximadamente 32 quilômetros de trilhos, o Ramal Serra Azul, projeto da Cedro Participações, também impactaria os Municípios de Igarapé e São Joaquim de Bicas, na RMBH, já visitados pela comissão no início do mês, e ainda Mário Campos (RMBH) e Itaúna (Central), onde a população também terá futuramente a oportunidade de relatar sua apreensão em novas visitas e audiências, conforme prometeu Beatriz Cerqueira.
Conectado à Malha Regional Sudeste, o ramal atenderia a um fluxo anual estimado de 25 milhões de toneladas de minério de ferro para exportação pelo Porto de Itaguaí (RJ), hoje concentrado no tráfego de caminhões pela BR-381.
O começo das obras está previsto para novembro de 2029 e a conclusão para novembro de 2033, com início da operação em novembro de 2034.
O projeto já obteve um Decreto de Utilidade Pública da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o que autoriza os levantamentos necessários para desapropriação e indenização das áreas afetadas.
Podem ser atingidas, segundo a ANTT, faixas do terreno que vão de 20 a 150 metros de cada lado dos trilhos. Mas o traçado definitivo ainda é um mistério, o que tem tirado o sono de quem se surpreende com a visita de funcionários de empresas contratadas pela Cedro.
Durante a visita de sexta-feira (27), alguns moradores voltaram a denunciar invasão de propriedade, sobrevoos inesperados de drones, prospecções dos terrenos e pressão para que forneçam informações pessoais e documentos.
Serra símbolo da região já está descaracterizada
Segundo o apurado até o momento, o traçado vai acompanhar um dos lados da Serra de Igarapé, uma das extensões da Serra do Espinhaço, já bastante afetada pela atividade minerária. Para se ter uma ideia disso, a Pedra Grande, símbolo geológico tombado da região, um dia já foi conhecida como Pedra do Cristo Deitado.
Mas hoje só sobrou o “rosto” desse monumento natural, pois as "pernas" foram totalmente escavadas para retirada de milhões de toneladas de minério. Agora, quase não se vê sequer o “peito” do tal Cristo Deitado, em ritmo acelerado de descaracterização.
Não bastasse, em breve, no pé da serra, famílias que habitam a região há gerações podem ter que deixar o local ou conviver com o vai e vem de composições ferroviárias e o rastro de poluição, com consequente desvalorização das propriedades.
A principal preocupação relacionada ao Ramal Serra Azul é mesmo com a segurança hídrica de boa parte da capital e da RMBH, já que o Sistema Serra Azul é alimentado pelas mesmas nascentes e cursos d’água que podem ser impactados pelas intervenções necessárias para instalar os trilhos.
Sem água, mesmo os agricultores que quiserem manter seu modo de vida, não teriam mais como garantir a sobrevivência. “Eu não quero indenização, quero continuar com a minha vida, trabalhando no que sempre fiz”, sintetiza Márcio Júlio Ferreira, proprietário do Sítio Santa Rosa, que colhe diariamente milhares de espécies de flores, de cores variadas, que vão para floriculturas da capital e até para o Mercado Central.
A propriedade está situada no Alto do Boa Vista, zona rural de Mateus Leme, onde fica a maior parte dos locais visitados pela Comissão de Meio Ambiente. Lá, os trilhos devem passar sobre duas linhas paralelas de estufas de flores e sobre a casa onde ele mora há 15 anos com a família.
Segundo o agricultor, Mateus Leme, Carmópolis (Centro-Oeste) e Barbacena são os principais pontos desse tipo de produção no Estado. Márcio também deixa claro que a beleza delicada das flores definitivamente não combina com falta d’água e a poeira do transporte de minério.
Árvores, nascentes e plantações marcadas para morrer
A concentração para o início da visita da Comissão de Meio Ambiente foi na Igreja Nossa Senhora do Rosário, também no Alto do Boa Vista. Por sorte, diferentemente da Tenda de Maria, capela do Centro de Vida Madre Clarice, da congregação católica das Irmãzinhas de Imaculada Conceição, na vizinha Igarapé, essa igreja na zona rural de Mateus Leme deve sobreviver ao Ramal Serra Azul.
Além de dezenas de agricultores familiares apreensivos, a visita a partir de lá contou, entre outras autoridades, com a participação do prefeito de Mateus Leme, Doutor Renilton Ribeiro, do promotor da cidade, Diego Rafael Dutra do Vale, e o coordenador de Fiscalização Ferroviária da ANTT, Aurélio Braga.
Logo na primeira parada, em uma fazenda próxima, a instalação de mais um pátio de carregamento – outro ficaria bem próximo de um hospital em Igarapé, construído com recursos da indenização pelo rompimento da barragem em Brumadinho (RMBH) - pode acabar com dois açudes e soterrar dezenas de nascentes ao pé da Serra de Igarapé que alimentam a represa de Serra Azul.
Ao lado da sede da fazenda, uma empresa contratada pela Cedro já deixou grande quantidade de equipamentos de sondagem para perfuração do terreno, próximo de um curral. Curiosamente, no momento da visita, não havia sequer um funcionário para explicar o que está sendo feito ali e as consequências da segurança hídrica da região.
Na sequência, em outra fazenda ainda no Alto da Boa Vista, o cenário é o mesmo, com amplas plantações de hortifrutigranjeiros ameaçadas, já que sobrevivem graças a pequenos filetes de água cristalina que descem diretamente da serra.
Lá, duas mangueiras centenárias marcadas com tarjas de plástico fincadas em seus troncos com os códigos 15.770 e 15.771 não deixam dúvidas sobre o que pode acontecer e dão a dimensão da vegetação que será suprimida para a passagem dos trilhos do Ramal Serra Azul, na casa dos milhares.
Na parada seguinte, a Fazenda 3M, Matheus Rezende e a esposa Izabella levaram as deputadas para conhecer uma pequena mata preservada na propriedade que guarda o maior tesouro deles e de outros moradores da região. Caixas d´água coletam a água cristalina de cerca de 20 nascentes que descem diretamente da serra para abastecer em torno de 40 famílias.
Com as intervenções para instalação dos trilhos, de uma vez só, toda essa água pode ser comprometida para consumo humano local, para pequenas plantações familiares e, em último caso, para o Sistema Serra Azul, que abastece a Capital e maior parte da RMBH. Além da água para beber, o casal precisa da água para a produção de milho, leite e flores.
Se no Sítio Santa Rosa o que impressiona os visitantes é a variedade multicolorida de flores, no Sítio 12 Limão, parada seguinte no roteiro da visita da Comissão de Meio Ambiente, chamam a atenção os pomares com cerca de 30 variedades de frutas, em especial as cítricas, que vão na maior parte para o Ceasa, para depois serem consumidas em várias regiões do Estado. Ele fica situado na Comunidade de Varginha, ainda na zona rural de Mateus Leme, quase na divisa com Igarapé.
Ao proprietário Paulo Alves da Fonseca, que segue os passos do bisavô na fruticultura no mesmo local, supostos emissários da Cedro sentenciaram que o pomar de limões dará lugar a uma vala de cerca de 30 metros de profundidade para a passagem dos trens de minério.
“Meu terreno tem o formato de um quadrado e será cortado exatamente ao meio, restando dois triângulos isolados. O que eu vou fazer com isso, ainda mais se ficar sem água? Vai ficar tudo perdido dos dois lados. Em praticamente um ano desde a ameaça, a empresa nunca nos procurou diretamente para dar explicações. Só mandam gente que não sabe nada para fazer perfurações e chipar árvores, com drones voando por cima”, afirmou o morador, sem esconder a indignação.
No terreno dele a linha do trem deve passar em cima ainda da sua casa e de um armazém. Outros dois irmãos com propriedades vizinhas podem perder a plantação de banana. Na casa da sua mãe, Dolores Alves da Silva, de 97 anos, também nas imediações, o perigo é comprometer a Mina do Tiaquim, nascente bem ao lado da residência.
Lá, ele e os familiares montaram uma mesa com amostras da variedade de produtos oriundos da região para sensibilizar os participantes da visita.
Agricultores familiares cobram mais informações
A parada final da visita técnica foi na sede da Cooperativa Metropolitana de Agricultores Familiares de Mateus Leme (Comale), um mini Ceasa que concentra o recebimento e distribuição de 320 produtores de 15 municípios da região.
O presidente, Henrique Saraiva, fez coro com a preocupação dos cooperados, a de que nada de bom pode sair do futuro Ramal Serra Azul.
“O impacto será, com certeza, muito ruim, mas ainda temos esperança de que, com a ajuda da Assembleia, esse problema seja resolvido da melhor maneira possível”, afirmou. Na roda de conversa que se formou ali, os produtores exigiram mais informações sobre o projeto até para que possam se posicionar e negociar com mais transparência.



