Audiência discute racismo estrutural na linguagem
Reunião busca discutir a necessidade de enfrentamento desse tipo de racismo por meio da valorização da cultura negra.
Mulata, denegrir, criado-mudo. À primeira vista, essas palavras podem parecer corriqueiras e inofensivas, mas carregam sentidos sócio-históricos que demonstram o chamado racismo estrutural na linguagem.
O assunto será debatido durante audiência pública da Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), na próxima terça-feira (18/11/25), à partir das 16 horas, no Plenarinho III, e contará com a presença de diversos especialistas.
Solicitada pela vice-presidenta da comissão, Andréia de Jesus (PT), a reunião pretende discutir os efeitos desse tipo de racismo, bem como a necessidade de enfrentá-lo por meio de ações como a valorização da cultura negra.
A deputada lembra que a história do Brasil foi construída sobre as marcas profundas da colonização, sinais que moldaram as desigualdades econômicas, sociais, culturais e também linguísticas.
Andréia acrescenta que Minas carrega a riqueza dos vissungos em Diamantina e no Serro, a língua da Tabatinga em Bom Despacho, as línguas bantu e iorubá que ecoam nos candomblés e nas umbandas. Messmo assim, na opinião da deputada, num país tão plural como o Brasil, o racismo linguístico segue estruturando exclusão.
Entre os convidados para a audiência estão Nathália Gomes Benfica, professora e pesquisadora na interface educação, raça e letramentos, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Tamiris de Souza, gestora jurídica da Associação Sociocultural do Movimento Negro de São Gonçalo e Vanessa Sena Tomaz, professora da formação intercultural de educadores indígenas, da UFMG.
Ciência da linguagem
De acordo com Neide de Almeida, socióloga e pesquisadora do tema, o discurso constitui o ser humano, e uma das formas mais poderosas de sustentação e manutenção do racismo é a pretensa neutralidade da linguagem e da história.
"Em boa parte, é por meio da linguagem que o racismo se mantém e se perpetua de modo aparentemente 'invisível'. Para evitar confrontos, é comum a tentativa de amenizar ou mesmo negar manifestações racistas, sobretudo aquelas que se dão de formas veladas, como, por exemplo, no modo de pronunciar uma expressão, na ironia, num falso e perigoso jogo de palavras", explica a pesquisadora no artigo intitulado "Letramento racial: um desafio para todos nós", referenciado pela própria Academia Brasileira de Letras no curso letramento racial.
Retomando os termos que abriram este texto, com base em estudos atuais, "mulata" é muitas vezes usado para designar filha que nasceu da união entre uma pessoa branca e uma negra, mas carrega um lastro da referência ao filhote oriundo do cruzamento de cavalo com jumenta ou de jumento com égua.
Muitas vezes, a carga pejorativa é aumentada quando destaca a sensualidade de uma mulher, tratando-a de forma objetificada. O termo deve ser evitado, podendo-se substituí-lo por termos como mulher, menina, moça ou outros que se adequem melhor ao contexto.
O mesmo acontece quando alguém diz que algo "denegriu a sua imagem". Muitas vezes a expressão é usada como sinônimo de difamar, mas como o termo possui raiz no significado de “tornar negro”, como algo negativo e ofensivo, “manchando” uma suposta reputação que antes era “limpa” ou "branca", deve ser evitado. No lugar, pode-se usar "macular".
Já "criado-mudo" é usado para se referir a pequeno móvel que geralmente fica ao lado da cama e também remonta aos tempos do Brasil Colônia. O termo evoca um dos papéis desempenhados por pessoas escravizadas dentro da casa dos senhores. Essa função visava segurar as coisas para seus “donos” sempre que eles precisassem, devendo para isso ser um empregado sempre a postos, silencioso o suficiente para não atrapalhar os moradores da casa grande. Para substituir essa expressão, sugere-se usar o termo mesa-de-cabeceira.
Ainda sobre a colonização, muitas transformações estão em curso na medida em que os estudos de linguagens avançam. Por anos, os livros de história traziam a expressão "descobrimento do Brasil", apresentando uma perspectiva na ótica do colonizador europeu.
Atualmente, o termo "colonização" dá conta dos sentidos históricos a partir do que foi vivido por quem foi colonizado, os brasileiros. A mesma lógica pode ser usada para falar das pessoas cativas. Como elas não nasceram escravas, mas passaram por um processo de violência que resultou nessa condição, a forma "pessoas escravizadas", constitui sentido a partir do processo vivenciado.
A língua é viva
As línguas são vivas e estão em transformação o tempo todo, por isso possibilitam mudanças, assim como outras ciências. Isso permitiu que, em 2024, o racismo linguístico fosse usado para promover uma grande mudança na área da botânica em terras europeias. Pela primeira vez na história, nomes científicos de mais de 200 espécies de plantas foram alterados por fazer referência a um termo racista.
O Congresso Botânico Internacional que aconteceu em Madri, alterou a palavra "caffra", que acompanhava o nome de plantas vindas da África, para "affra". Inicialmente os pesquisadores explicaram que a mudança se devia a um "erro de grafia", mas depois elucidaram que, em árabe, a palavra significa "descrente" e, originalmente, era usada para falar de não muçulmanos, depois foi usada na referência a pessoas africanas escravizadas.
No sul da África, o termo é considerado calúnia racial extremamente ofensiva, inclusive sob pena de prisão.
Com a mudança, o nome científico da árvore coral da costa, por exemplo, deixará de ser Erythrina caffra e passará a ser Erythrina affra. A mudança começará a valer em 2026.
