PL PROJETO DE LEI 4247/2017

Parecer para o 1º Turno do Projeto de Lei Nº 4.247/2017

Comissão de Direitos Humanos

Relatório

De autoria do deputado Léo Portela, o projeto de lei em epígrafe institui, no âmbito do sistema estadual de ensino de Minas Gerais, o programa Escola sem Partido, tendo sido distribuído às Comissões de Constituição e Justiça, de Educação, Ciência e Tecnologia, de Direitos Humanos e de Trabalho, Previdência e Assistência Social.

A Comissão de Constituição e Justiça perdeu o prazo para emissão de seu parecer, pelo que a matéria foi remetida à Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia, nos termos do art. 140 do Regimento Interno, a qual opinou pela rejeição do projeto.

Arquivada ao final da legislatura passada conforme o art. 180 do Regimento Interno, a proposição foi desarquivada a pedido da deputada Alê Portela. Cabe agora a esta comissão emitir parecer quanto ao mérito da proposta, nos termos do art. 180-A, combinado com os arts. 188 e 102, V, do instrumento regimental.

Fundamentação

A proposição sob análise visa instituir, no âmbito do sistema estadual de ensino, programa denominado Escola sem Partido, com fundamento em princípios elencados no art. 1º do projeto, cujo rol inclui, entre outros, a neutralidade política, ideológica e religiosa. O art. 2º prevê que o poder público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer o desenvolvimento de sua personalidade em harmonia com a identidade biológica de sexo, vedando-se a aplicação de postulados da teoria ou ideologia de gênero. O art. 3º imputa aos professores uma relação de condutas e o art. 4º, por sua vez, estabelece que o conteúdo da futura lei deverá constar de cartazes a serem afixados em instituições de educação básica e infantil. Por último, o art. 5º autoriza escolas particulares a promoverem conteúdos de cunho religioso, moral e ideológico assentidos contratualmente pelos pais ou responsáveis.

A Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia, primeira comissão temática a manifestar-se acerca da proposição, consolidou em seu parecer um minucioso exame da matéria, que culminou em sua conclusão pela rejeição do projeto. Neste momento, para a análise de mérito que nos cabe proceder, consideramos imprescindível examinar as razões apresentadas pela comissão que nos antecedeu, já que relevantes e pertinentes também sob a ótica da defesa e da promoção dos direitos humanos. É o que passamos a fazer.

De início, a referida comissão reportou-se ao conceito e às pressuposições defendidas pelo chamado Movimento Escola sem Partido, em torno da eventual existência de “um proselitismo docente propagando ideologias esquerdistas, contrárias a diversos valores sociais, como a família tradicional e o livre mercado, os valores cristãos e a própria ordem capitalista”, explicando, assim, o nexo existente entre esse movimento e o projeto de lei em tela.

Apontou, em seguida, que a proposta afronta tanto premissas da Constituição da República, quanto princípios consagrados pela Lei Federal nº 9.394, de 20/12/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional – LDB. Assinalou, nesse sentido, a competência constitucional privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação, nos termos do art. 22, XXIV, da Constituição da República, e lembrou que a suplementação pelos estados é possível desde que respeitado o caráter local e regional, que justificaria a atuação legislativa, situação não verificada na proposição sob estudo. Indicou também a ocorrência de usurpação de competência do Poder Executivo e a inobservância do princípio da separação dos Poderes, já que a instituição de um programa governamental – tarefa tipicamente administrativa – não se insere nas hipóteses de iniciativa legislativa parlamentar. Em contrapartida, questionou a pretensão de interferência do Poder Legislativo nos currículos escolares estruturados pelo Poder Executivo, tendo em vista a autonomia das instituições de ensino, garantida pela legislação em vigor.



Manifestando-se sobre o mérito do projeto de lei, a comissão ressaltou, entre outras várias questões, o caráter cerceador à conduta dos professores, claramente impresso nas vedações impostas no art. 3º da proposição. Tais dispositivos, reforçou, ferem os princípios firmados pelo art. 206 da Carta Cidadã de 1988, por meio do qual é garantido a todos um ensino alicerçado na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Defendeu, bem assim, a autonomia didático-pedagógica dos estabelecimentos de ensino, nos termos estabelecidos pelo art. 12 da LDB.

Também foi mencionada a aplicabilidade de normativas internacionais das quais o Brasil é signatário, a exemplo do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador”, que reconhecem o direito à educação visando ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, ao respeito pelos direitos humanos e às liberdades fundamentais e à capacitação de todas as pessoas para participar de uma sociedade livre. Nesse campo, a comissão também frisou que “a própria liberdade dos pais de escolher a educação religiosa e moral dos seus filhos de acordo com suas convicções, prevista no art. 12, item 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica –, estaria limitada pelos princípios e objetivos da educação, dispostos no art. 13, item 1, do tratado, e pelos padrões mínimos de ensino aprovados e prescritos pelo Estado e pelos princípios constitucionais que conformam o direito fundamental”.

Outro ponto levantado, de crucial importância para a análise da temática, refere-se à decisão proferida no ano de 2020 pelo Supremo Tribunal Federal quando da análise da ADI nº 5537, que tinha como objeto a Lei nº 7.800, de 2016, do Estado de Alagoas. A lei, que criava o programa Escola Livre – de conteúdo similar ao da proposição em comento –, restou declarada integralmente inconstitucional pela Suprema Corte. Aliás, haja vista a propriedade e a relevância desse precedente judicial para o exame do projeto de lei em comento, reescrevemos em seguida os chamados vícios formais e as inconstitucionalidades materiais assinalados no voto do ministro relator e descritos na ementa do julgado, que corroboram as razões até aqui descritas. In verbis1:

I – Vícios formais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:

1 – Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art. 22, XXIV): a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias são princípios e diretrizes do sistema (CF, art. 206, II e III);

2 – Afronta a dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: usurpação da competência da União para estabelecer normas gerais sobre o tema (CF, art. 24, IX e § 1º);

3 – Violação à competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22, I): a lei impugnada prevê normas contratuais a serem observadas pelas escolas confessionais;

4 – Violação à iniciativa privativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo (CF, art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I): não é possível, mediante projeto de lei de iniciativa parlamentar, promover a alteração do regime jurídico aplicável aos professores da rede escolar pública, a alteração de atribuições de órgão do Poder Executivo e prever obrigação de oferta de curso que implica aumento de gastos.

II – Inconstitucionalidades materiais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:

5 – Violação do direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Supressão de domínios inteiros do saber do universo escolar. Incompatibilidade entre o suposto dever de neutralidade, previsto na lei, e os princípios constitucionais da liberdade de ensinar, de aprender e do pluralismo de ideias (CF/1988, arts. 205, 206 e 214).

6 – Vedações genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a doutrinação de alunos, podem gerar a perseguição de professores que não compartilhem das visões dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei, para fins persecutórios. Violação ao princípio da proporcionalidade (CF/1988, art. 5º, LIV, c/c art. 1º).

Importa também observar, do bojo do parecer da comissão que nos precedeu, uma relação de manifestações oficiais sobre a matéria, como notas técnicas e recomendações exaradas por instâncias do Ministério Público (federal e dos estados), bem como resolução emanada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, todas expressando posicionamento contrário a medidas como as pretendidas na proposição em comento.

Pois bem. Cumpre-nos esclarecer que os argumentos lançados pela Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia foram aqui rememorados não somente por sua absoluta conformidade e pertinência, mas com vistas a expressar nossa irrestrita anuência a cada fundamento levantado.

A propósito, esta Comissão de Direitos Humanos tem defendido e mantido posicionamento convergente quando ouvida em relação a matérias afetas à educação, em trâmite nesta Casa. Consideramos então oportuno acrescentar nossa percepção quanto à aplicação de normativas e dispositivos garantidores do direito fundamental à educação, estejam tais previsões contidas no ordenamento jurídico pátrio ou no plano internacional.

O direito à educação foi alçado a direito fundamental no âmbito da Constituição da República de 1988, passando a compor o rol dos direitos de natureza social descritos em seu art. 6º. Para além dessa premissa – disposta já nos primeiros ditames constitucionais –, a justa percepção da real dimensão desse direito requer sua compreensão à luz dos princípios norteadores do ensino, nos termos do art. 206 da Carta Maior, incluídos, entre outros, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; a valorização dos profissionais da educação escolar; a gestão democrática do ensino público; e a garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida.

Sob essa égide foi concebida a LDB de 1996, o marco normativo que espelhou, e evidenciou, as premissas da Carta Cidadã de 1988. Oito anos depois, essa lei acrescentou outros pressupostos orientadores do ensino no País, como o respeito à liberdade e o apreço à tolerância; a valorização da experiência extraescolar; a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais; e a consideração com a diversidade étnico-racial.

À parte da concepção estatal interna, reiteramos a importância de atentarmos para as responsabilidades assumidas pelo Brasil a partir da subscrição de pactos ou normativas internacionais. Vale lembrar, nessa seara, os compromissos constantes da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, composta por 17 objetivos a serem alcançados pelos países-membros das Nações Unidas. Nesse rol de compromissos assumidos também pelo Brasil em 2015, a Educação de Qualidade é reconhecida, entre outras dimensões, como aspecto essencial para o desenvolvimento das populações ao redor do planeta. Anotamos que uma das metas apresentadas no escopo desse objetivo refere-se ao compromisso de os Estados garantirem “que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável2”.

Aliás, sobre o êxito (ou o fracasso) da educação para o desenvolvimento humano e social de uma nação, imprescindível lembrar uma pequena passagem, perene no entanto, e que reflete parte dos ensinamentos ofertados aos brasileiros pelo educador Paulo Freire, em sua dialética acerca da concepção bancária da educação como instrumento da opressão3:

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta destorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.

(...)

Não é de estranhar, pois, que nesta visão “bancária” da educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos. Quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos depósitos recebidos.

É justamente sob o abrigo dessas reflexões que retornamos ao escopo do projeto e reforçamos nosso convencimento sobre sua impropriedade, já que dele decorrem claramente – ainda que sob a alegação da “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado” – cerceamentos e restrições na conduta dos professores no exercício das suas funções, nos debates próprios do espaço acadêmico e no processo ensino-aprendizagem.

Nessa mesma direção, conforme informação constante do site Agência Brasil1, relatorias especiais do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, por meio de comunicado publicado ainda no ano de 2017, recomendaram que o governo brasileiro tomasse as atitudes necessárias para conduzir uma revisão dos projetos de lei que tratavam da Escola sem Partido. Verifica-se também, no mesmo site, que:

Segundo as relatorias, as autoridades brasileiras devem assegurar a conformidade desses projetos com a base dos direitos humanos internacionais e a Constituição Federal de 1988. A legislação protege o direito à opinião, sem interferências, e o direito a buscar, receber e partilhar informações e ideias de todos os tipos, independentemente de fronteiras ou meios, o que, segundo o documento, não está claro nos PLs. (…)

De acordo com o comunicado, por não definir o que é doutrinação política e ideológica, propaganda político-partidária e educação moral, a proposição permite “alegar que um professor está violando as regras pelo fato de autoridades ou pais subjetivamente considerarem a prática como propaganda político-partidária”. Além disso, o Escola sem Partido poderá retirar das salas de aula “discussões de tópicos considerados controversos ou sensíveis, como discussões de diversidade e direitos de minorias”.

Internamente, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos também se posicionou, por meio da Resolução nº 7, de 23/8/20174, manifestando seu repúdio “a quaisquer iniciativas, públicas ou particulares, que tenham como objetivo restringir a liberdade de comunicação em ambiente escolar, no que se refere a assuntos ou temas da vida política local, nacional ou internacional ou cercear o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, previsto na Constituição”. Do mesmo modo, foi declarado o repúdio “a quaisquer iniciativas, públicas ou privadas, que tenham por objetivo impedir a referência a gênero e sexualidade em ambiente escolar, bem como impedir programas voltados à promoção da igualdade e ao combate à discriminação em tais assuntos, respeitados, evidentemente, as necessidades e o conteúdo apropriado para cada idade”.

Tendo por base todo o arrazoado acima, avaliamos que a proposição, para além de incongruências e vícios de ordem formal e jurídica, é também manifestamente inoportuna em relação ao mérito. Para finalizar, cumpre enfatizarmos algumas das conclusões alcançadas pela comissão que nos precedeu:

A tentativa de tornar a escola mera reprodutora moral do que ocorre dentro das casas seria totalmente fracassada. A escola nunca seria capaz de se referenciar pela opinião dos pais ou responsáveis sobre assuntos que devem ser tratados acadêmica e cientificamente, ainda que tivesse esse propósito. Além de impossível (pais e responsáveis têm opiniões diversas – qual opinião, de qual responsável seria a referência?), tal propósito provocaria uma “guerra” entre pais, alunos e professores, que ficariam se digladiando para impor cada um suas verdades e visões de mundo.

A escola é o espaço do acesso amplo ao conhecimento científico acumulado, e é nesse conhecimento que ela deve se referenciar. Professores investem tempo, recursos e dedicação para conhecer determinado campo e possibilitar o acesso dos alunos a esse conhecimento teórico e aplicado.

Pelo exposto, temos que a proposição é impertinente e deve ser afastada. Estamos convictos de que qualquer pretensão normativa que vise ao aprimoramento da qualidade da educação em escolas públicas regulares não poderá conjecturar a intimidação ou a perseguição de professores ou vincular-se a expedientes dos quais decorram renúncia ou alguma forma de limitação dos princípios da formação pedagógica pluralista e livre e da gestão democrática do ensino, expressamente assegurados pela Carta Federal de 1988 e ratificados pela LDB e por outros instrumentos, a exemplo dos Planos Nacional e Estadual de Educação.

Em contrapartida, importante reforçar a responsabilidade deste Parlamento de primar e distinguir-se pela produção legislativa amoldada ao princípio do não retrocesso social e pela busca do real alinhamento do ordenamento jurídico estadual com os preceitos constitucionais, particularmente no que toca à proteção dos direitos individuais e coletivos.

Conclusão

Em face do exposto, opinamos pela rejeição do Projeto de Lei nº 4.247/2017.

Sala das Comissões, 26 de abril de 2023.

Andréia de Jesus, presidenta e relatora – Bella Gonçalves – Betão – Bruno Engler (voto contrário) – Caporezzo (voto contrário).

1Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753837203>. Consulta em: 3 abr. 2023.

2Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/4>. Consulta em: 3 abr. 2023.

3Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/espanhol/pdf/pedagogia_do_oprimido.pdf>. Consulta em: 3 abr. 2023.

4Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2017-04/onu-alerta-para-impactos-do-projeto-escola-sem-partido-na-educac ao>. Consulta em: 3 abr. 2023.

5Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/old/cndh/resolucoes/Resoluon07escolasempartido_AP ROVADA.pdf>. Consulta em: 3 abr. 2023.

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