PL PROJETO DE LEI 4247/2017

Parecer para o 1º Turno do Projeto de Lei Nº 4.247/2017

Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia

Relatório

De autoria do deputado Leo Portela, o projeto de lei em análise institui, no âmbito do sistema estadual de ensino de Minas Gerais, o Programa Escola sem Partido.

Publicada no Diário do Legislativo de 11/5/2017, a proposição foi distribuída às Comissões de Constituição e Justiça, de Educação, Cultura e Esporte, de Direitos Humanos e do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social. A Comissão de Constituição e Justiça perdeu o prazo para a emissão de seu parecer sobre a matéria, que foi remetida à análise da comissão seguinte, em atendimento ao Requerimento nº 3.021/2017, de autoria do deputado Léo Portela, nos termos do art. 140 do Regimento Interno.

Vem agora o projeto a esta comissão para receber parecer quanto ao mérito, nos termos do art. 188, c/c com o art. 102, VI, “c”, do Regimento Interno, em razão da perda de prazo da comissão antecessora.

Fundamentação

O projeto de lei em exame objetiva instituir o Programa Escola sem Partido, em consonância com princípios como neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; liberdade de aprender e de ensinar; e direito dos pais sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos, assegurado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, nos termos do art. 1º da proposição em análise.

O projeto de lei ressalta que o poder público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos; estabelece vedações de conduta ao professor no exercício de suas funções; define a necessidade de divulgação do conteúdo da lei por meio de cartazes nas instituições de educação básica e, finalmente, somente permite a promoção de conteúdos de cunho religioso, moral e ideológico por escolas particulares com orientação confessional e ideológica específicas e desde que autorizadas contratualmente pelos pais ou responsáveis.

O autor da proposição justifica a apresentação do projeto de lei sob o argumento de que professores e autores de livros didáticos utilizam suas aulas e suas obras para promover a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas e a padrões de julgamento e de conduta moral, especialmente sexual, incompatíveis com o conteúdo ensinado por seus pais ou responsáveis. O autor argumenta, ainda, que se trata de práticas ilícitas, violadoras de direitos e liberdades fundamentais dos estudantes e de seus pais ou responsáveis, realçando a necessidade urgente de se adotarem “medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.

O projeto de lei em análise alinha-se ao Movimento Escola sem Partido, conceituado como “associação informal, independente, sem fins lucrativos e sem qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária”, fundado em razão do “grau de contaminação político-ideológica” das escolas no Brasil, públicas e privadas, da educação básica à educação superior, devido à doutrinação por parte dos professores. Em agosto de 2020, o movimento foi oficialmente encerrado por seu idealizador, o advogado Miguel Nagib. Segundo pressupostos do movimento, “haveria um proselitismo docente propagando ideologias esquerdistas, contrárias a diversos valores sociais, como a família tradicional e o livre mercado, os valores cristãos e a própria ordem capitalista’, com apropriação de direitos parentais relacionados ao ensino de preceitos morais conformes às convicções de cada família” (BRITTO, Tatiana Feitosa de. O que os professores (não) podem dizer? A experiência canadense e a Escola sem Partido. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Outubro/2018 – Texto para Discussão nº 252).

Entendemos que a proposição em epígrafe afronta princípios consagrados pela Lei nº 9.394, de 20/12/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional – LDB –, e premissas constitucionais consolidadas. Não obstante seja a análise desta comissão atinente ao mérito, faz-se necessário identificar obstáculos jurídicos intransponíveis na proposição ora apreciada, que acabam por inviabilizá-la, prejudicando irremediavelmente a análise dos critérios de conveniência e oportunidade que balizam a apreciação do mérito, considerando, ainda, que a comissão competente para emitir juízo sobre a juridicidade, constitucionalidade e legalidade da matéria perdeu prazo para emitir seu parecer.

O Projeto de Lei nº 4.247/2017, ao instituir um programa administrativo, usurpa iniciativa típica do Poder Executivo, possuidor da competência constitucional para realização da tarefa. O Supremo Tribunal Federal já decidiu, com amparo no art. 2º da Constituição da República de 1988, pela reafirmação do princípio da separação dos Poderes em Questão de Ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 224 (ADIQO 224/RJ), quando definiu não ser pertinente a edição de lei específica que crie programa, ressalvados os casos expressamente previstos na Constituição, conforme o disposto nos arts. 48, IV, e 165, §§ 1º e 4º.

A interferência do Poder Legislativo nos currículos escolares estruturados pelo Poder Executivo é ainda mais questionável, considerada a autonomia das instituições de ensino, garantida pela legislação em vigor, bem como a competência constitucional privativa atribuída à União para legislar sobre diretrizes e bases da educação, nos termos do art. 22, inciso XXIV da Constituição da República de 1988. No âmbito da competência concorrente, cabe à União fixar as normas gerais sobre a matéria e, no gozo dessa prerrogativa, editou a Lei nº 9.394, de 1996, a LDB, que estabelece, no art. 26, a obrigatoriedade de alinhamento dos currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio a uma base nacional comum, “a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”.

Na seara da possibilidade de complementação, reside a competência legislativa suplementar dos estados federados, desde que respeitado o caráter local e regional que justifique a atuação legislativa estadual, o que não é o caso da proposição ora apreciada. Além disso, a autonomia didático-pedagógica dos estabelecimentos de ensino deve ser garantida, como estabelece o art. 12 da mesma lei, por deterem a incumbência de elaborar e executar sua proposta pedagógica.

Em análise de mérito, igualmente, a proposição apresenta conteúdo que merece ser sopesado à luz da LDB e do texto constitucional brasileiro. As vedações impostas pelo projeto de lei à conduta do professor no exercício de suas funções ferem a Constituição da República de 1988, que garante, em seu art. 206, um ensino ministrado com base no princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Há que se frisar que o papel do professor não se limita a transmitir conteúdo. O docente propicia a formação de cidadãos que respeitam a existência de diferentes subjetividades. Assim, a função precípua das instituições de ensino e dos docentes, por excelência, é propiciar aos alunos uma visão plural, cidadã, contextualizada e amparada na diversidade e no pluralismo, mostrando-se cerceadoras as vedações impostas pela proposição em análise, no art. 3º, ao docente em sala de aula:

Art. 3º – No exercício de suas funções, o professor:

I – não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias;

II – não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;

III – não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;

IV – ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;

V – respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções;

VI – não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula.

Acresce-se à consolidada previsão constitucional acima mencionada o fato de que o Brasil é signatário do “Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” e do “Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” – Protocolo de São Salvador –, nos termos, respectivamente, do Decreto nº 591, de 6/7/1992, e do Decreto nº 3.321, de 30/12/1999, que estabelecem como objetivos de uma educação democrática o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade; o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais; e a capacitação de todas as pessoas para participar de uma sociedade livre.

A própria liberdade dos pais de escolher a educação religiosa e moral dos seus filhos de acordo com suas convicções, prevista no art. 12, item 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto nº 678, de 6/11/1992 –, estaria limitada pelos princípios e objetivos da educação, dispostos no art. 13, item 1, do tratado, e pelos padrões mínimos de ensino aprovados e prescritos pelo Estado e pelos princípios constitucionais que conformam o direito fundamental. Note-se que a LDB, em seu art. 33, disciplina que o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

De grande relevância para a discussão da matéria é a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 5537, cujo acórdão foi publicado em agosto de 2020. O STF julgou inconstitucional a integralidade da Lei nº 7.800/2016 do Estado de Alagoas, que havia criado, no âmbito do sistema estadual de ensino, o Programa “Escola Livre”, de teor semelhante ao da proposição em análise. No voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, acompanhado pela maioria dos ministros, foram constatados:

1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases: competência para dispor sobre a liberdade de ensinar e sobre a promoção humanística do país (CF, art. 22, XXIV);

2. Violação à competência legislativa concorrente entre União e Estados para legislar sobre educação: competência da União para estabelecer normas gerais (CF, art. 24, IX § 1º);

3. Desrespeito ao direito à educação, com o alcance que lhe confere a Constituição de 1988.

Do teor do voto infere-se que a instituição de ensino deve ser um ambiente de esclarecimento e de tratamento igualitário de questões como a desigualdade de gênero, de cor e de religião, em viés plural e democrático. Inibir o debate inerente ao espaço acadêmico frustra a própria finalidade do ensino garantida pela legislação brasileira.

O primeiro contato com a educação e o desenvolvimento social que uma pessoa tem é em casa, com a família, e não se nega esse papel preponderante para sua formação moral, religiosa e de caráter. Destacado o papel inegável das famílias, os indivíduos, dotados de direitos, necessitam ampliar o conhecimento para além do lar. As escolas são instituições criadas com o objetivo de cuidar da educação formal, acadêmica, científica e preparar para a convivência, o respeito à diversidade e o mercado de trabalho.

A tentativa de tornar a escola mera reprodutora moral do que ocorre dentro das casas seria totalmente fracassada. A escola nunca seria capaz de se referenciar pela opinião dos pais ou responsáveis sobre assuntos que devem ser tratados acadêmica e cientificamente, ainda que tivesse esse propósito. Além de impossível (pais e responsáveis têm opiniões diversas – qual opinião, de qual responsável seria a referência?), tal propósito provocaria uma “guerra” entre pais, alunos e professores, que ficariam se digladiando para impor cada um suas verdades e visões de mundo.

A escola é o espaço do acesso amplo ao conhecimento científico acumulado, e é nesse conhecimento que ela deve se referenciar. Professores investem tempo, recursos e dedicação para conhecer determinado campo e possibilitar o acesso dos alunos a esse conhecimento teórico e aplicado.

Em nosso entendimento, o projeto de lei em exame pretende aniquilar, com base em opiniões ou posicionamentos ideológicos anticientíficos, pensadores mundialmente reconhecidos como referências em suas áreas de conhecimento, a exemplo do brasileiro Paulo Freire, educador, pedagogo e filósofo brasileiro, considerado um dos pensadores mais notáveis da história da pedagogia. Julgamos pertinente e desejável discordar de ideias, argumentos e autores, mas parece-nos inadmissível partir de um posicionamento ideológico para excluir o conhecimento científico já adquirido ou opiniões contrárias à que se defende.

Além disso, o projeto em estudo parte de premissas extremamente preocupantes: o ódio, a desconfiança, a perseguição e a consequente criminalização dos professores. Basta entrar nas páginas do programa escola sem partido para constatar o incentivo à gravação de aulas, procedimento que instauraria perseguição à livre manifestação dos docentes, o uso indevido de aparelhos celulares em sala e danos irreparáveis no processo ensino-apendizagem:

Ocorreu-nos, então, a ideia de divulgar testemunhos de alunos, vítimas desses falsos educadores. Abrir as cortinas e deixar a luz do sol entrar. Afinal, como disse certa vez um conhecido juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, “a little sunlight is the best disinfectant”.

(...)

A pretexto de transmitir aos alunos uma “visão crítica” da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo.

(PROGRAMA ESCOLA SEM PARTIDO. Disponível em: <https://www.programaescolasempartido.org>

Sob o ponto de vista da repercussão de medidas como as contidas na proposição em análise, faz-se oportuno mencionar aqui documentos oficiais emanados pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual de Minas Gerais que corroboram os argumentos aduzidos, contraindicando a adoção de medidas de cerceamento à liberdade constitucional de ensinar e aprender no âmbito das escolas e sistemas de ensino. São eles:

– Nota Técnica nº 1/2016/PFDC, de 21/7/2016, que analisa o Projeto de Lei nº 867/2015, que inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”. O documento enfatiza que a proposição impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, nega a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem e contraria o princípio da laicidade do Estado;

– Nota Técnica nº 04/2016/PFDC, de 15/9/2016, que subsidiou o posicionamento da Procuradoria-Geral da República na análise de constitucionalidade da Lei nº 7.800, de 2016, do Estado de Alagoas, supracitada. O documento ressalta que, no sistema jurídico-constitucional brasileiro, compete à comunidade escolar – nela compreendida o corpo docente, o corpo discente e associações de pais – definir democraticamente os conteúdos pedagógicos e resolver os conflitos naturais decorrentes da vida escolar e que a proteção constitucional à livre consciência é incompatível com quaisquer formas de censura estatal prévia;

– Recomendação nº 22, de 29/10/2018, do Ministério Público Federal – Procuradoria da República no Município de Chapecó, para apurar intimidação a professores do Estado de Santa Catarina. A recomendação se dirige às instituições de ensino superior da região e às gerências regionais de educação para que se abstenham de qualquer atuação ou sanção arbitrária em relação a professores, com fundamento que represente violação aos princípios constitucionais e demais normas que regem a educação nacional, em especial quanto à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e ao pluralismo de ideias e de concepções ideológicas, adotando as medidas cabíveis e necessárias para que não haja qualquer forma de assédio moral em face desses profissionais, por parte de estudantes, familiares ou responsáveis;

– Recomendação Conjunta nºs 71/2018 e 73/2018, de 31/10/2018, do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual de Minas Gerais, em face veiculação, nas redes sociais, de incentivo a alunos a filmarem ou gravarem manifestações em sala de aula consideradas “político-partidárias ou ideológicas” e a encaminharem denúncias a contatos telefônicos determinados. No âmbito de sua área de atuação, onde houver manifestações atentatórias à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, atue para evitar que intimidações e ameaças a professores e alunos, motivadas por divergências políticas e ideológicas, resultem em censura, direta ou indireta. Com respaldo na Recomendação nº 73, a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais editou a Resolução nº 4.052, de 14/12/2018, que dispõe sobre a garantia do direito à liberdade de expressão nas escolas da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais e propõe protocolos relativos a atos contra a liberdade pedagógica e a autonomia da prática docente;

– Resolução nº 7, de 23/8/2017, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, em que o órgão manifesta seu repúdio a quaisquer iniciativas que tenham como objetivo restringir a liberdade de comunicação em ambiente escolar, no que se refere a assuntos ou temas da vida política ou cercear o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, previsto na Constituição. Também declarado o repúdio às iniciativas que tenham por objetivo impedir a referência a gênero e sexualidade em ambiente escolar, bem como impedir programas voltados à promoção da igualdade e ao combate à discriminação em tais assuntos, respeitados, evidentemente, as necessidades e o conteúdo apropriado para cada idade.

Diante do exposto, concluímos que a proposição ora analisada caminha na contramão dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, em especial, em Minas Gerais, um estado historicamente combatente nas lutas pela liberdade. O projeto de lei apresenta dispositivos que podem estimular o cerceamento da liberdade de ensino e da manifestação plural de ideias, apresentando vícios e incongruências intransponíveis, tanto do ponto de vista formal, quanto do ponto de vista material, como apontado neste parecer e já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, instado a se manifestar pela própria comunidade por meio da judicialização da temática.

Conclusão

Em face do exposto, opinamos pela rejeição do Projeto de Lei nº 4.247/2017.

Sala das Comissões, 23 de novembro de 2022.

Beatriz Cerqueira, presidente – Betão, relator – Professor Cleilton.