O Vitória a Minas, operado pela Vale, é uma das poucas linhas turísticas do Estado ainda existentes.
Quando o trem de Betim deixou de rodar, em meados da década de 1980, uma placa foi instalada próximo à estação, anunciando a chegada do Metrô em substituição ao antigo sistema. Essa promessa nunca foi cumprida.
Viagens em trens de passageiros entraram em declínio a partir do Golpe Militar, segundo Antônio
Hoje, em vários pontos do Estado, há trilhos e estações esquecidos, como na divisa de BH com Nova Lima
Murilo defende ampliação da Metrominas no Estado, acabando com a fragmentação do setor
Marília Campos destaca que o coletivo rodoviário, caro e ineficiente, prevalece nas cidades
Estação Central, em BH. Segundo ANTT, não há projetos que tratem de transporte de passageiros em Minas - Arquivo ALMG
Nilson acredita que a ferrovia é um serviço estratégico e que envolve investimento pesado
Percorrendo um tempo médio de 13 horas de viagem entre Belo Horizonte e Cariacica, na Grande Vitória (ES), o trem da Vale transporta 1 milhão de passageiros por ano nos dois sentidos
Lucas aproveita o tempo da viagem para ler, trabalhar e até fazer amigos
Marylin e Flávio destacam o conforto do trem, se comparado à viagem na BR-381
Anderson, chefe do trem da Vale, fala das histórias dos passageiros que já escutou

RMBH sofre a falta de transporte sobre trilhos

Região já foi interligada por trens, mas decadência das ferrovias deixou um espaço que não foi suprido pelo Metrô.

Por Maria Célia Pinto
16/10/2018 - 10:29

Terça-feira. A estudante de Biologia Ana Flávia Mesquita, 22 anos, sai de casa, no Bairro Santa Mônica, na região de Venda Nova, pega uma carona com o avô até a Estação Vilarinho e em aproximadamente 50 minutos, está no campus da PUC-Minas do Coração Eucarístico.

Quinta-feira. Ana Flávia deixa o estágio na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na Pampulha, e caminha até a Avenida Antônio Carlos. Toma dois ônibus e, uma hora e meia depois, chega ao mesmo destino. Pagando mais, esperando mais e viajando com menos conforto.

A rotina da estudante explicita a diferença que o transporte sobre trilhos pode fazer em uma metrópole. E ilustra a dificuldade de milhares de moradores da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) que aguardam há anos a ampliação do Metrô, muitos deles sem saber que até o início dos anos de 1970 a região estava conectada por trens.

“O ônibus demora a passar, demora no percurso pelo Centro e é ainda mais cheio. No Metrô eu sento mais rápido, consigo ler e estudar melhor, sem paradas bruscas”, compara. Mas faz também a crítica necessária: “O Metrô de BH não liga as regiões. E se não fosse pela carona do meu avô, teria que pegar um ônibus suplementar, cheio e demorado, até a estação”.

Ana Flávia está sempre atenta às notícias sobre o Metrô. “Lembro das perfurações na Praça Sete, que me encheram de esperança. Com a logística de trânsito ruim hoje, com muitos carros, poluição e barulho, o sonho de todo belo-horizontino é ter um metrô ligando toda a cidade”, reforça.

Comissão – Na Assembleia Legislativa de Minas Grais (ALMG), esse também é um tema em pauta. Foi discutido em eventos como o Debate Público Minas de Volta aos Trilhos, em 2017, e o Fórum Técnico Mobilidade Urbana – Construindo Cidades Inteligentes, em 2013.

Em junho passado, ainda sob o impacto da greve dos caminhoneiros, o Legislativo criou a Comissão Extraordinária Pró-Ferrovias Mineiras. Um dos propósitos do grupo é, justamente, o de fomentar debates sobre o transporte ferroviário de passageiros. A comissão faz reuniões ordinárias às quintas-feiras, às 10 horas, além de extraordinárias e visitas.

Do trem de subúrbio à viagem de luxo

“O trem chegou em Belo Horizonte antes mesmo da própria cidade. Na década de 1890, foi construído um ramal na Estrada de Ferro Central do Brasil, de Sabará a BH, justamente para transportar materiais para a construção da Capital, inaugurada em 1897”.

 

Antônio Moreira de Faria, conselheiro da ONG Trem.

Nos anos de 1960, auge das ferrovias, além de ligar estações como as atuais do Metrô, os trilhos conectavam diversas cidades vizinhas. Eram 523 quilômetros de malha em 1969, ligando atuais 19 municípios da RMBH, mais nove do Colar Metropolitano. 

Sabará, por exemplo, era atendida por cinco pares de viagens diárias só no chamado trem de subúrbio, fora outras da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM). E contava com várias estações, como Marzagânia, Roças Grandes, Parada das Flores e General Carneiro.

Os dados são do professor Antônio Moreira de Faria, conselheiro da ONG Trem, que ainda guarda o Guia Levi de 1969. A publicação trazia todos os horários das viagens no Brasil. “Hoje, a nova linha da EFVM, que ainda leva passageiros, não passa mais por cidades da RMBH”, compara.

Em declínio a partir do Golpe Militar, as ferrovias foram parando ou reduzindo as viagens de passageiros. Antônio Faria conta que a superintendência da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) em Minas foi chefiada, durante quase todo o período da Ditadura, pelo coronel Júlio Ribeiro Gontijo, que ganhou o apelido autoexplicativo de “Juju Ranca Trilho”.

Durante o governo José Sarney (1985-90), segundo o professor, houve um certo incremento das ferrovias, e alguns trechos de passageiros, como o de BH ao Rio de Janeiro, voltaram a operar.

Mas essa linha, o Trem Vera Cruz, foi desativada na gestão seguinte, de Fernando Collor (1990-92), que também reduziu as viagens que sobraram da Ditadura.

Privatização – O novo presidente, Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), ao privatizar a malha da RFFSA, passou a operação das ferrovias à iniciativa privada. O contrato previa a manutenção do que foi concedido, que já não era nada em se tratando do transporte de passageiros.

“No último dia de funcionamento da RFFSA, em 1996, foram feitas as últimas viagens de passageiros, de Monte Azul a Montes Claros, o Trem do Sertão, e de Lavras a Barra Mansa (RJ)”, lamenta o professor.

Na RMBH, também foi feita a viagem derradeira entre BH e Rio Acima, passando por Sabará e Raposos. “Houve um desemprego em massa em Rio Acima e Raposos. Muitos trabalhadores de baixa renda usavam o trem para chegar à Capital”, aponta Antônio Faria.

Rio Acima ainda protagonizou a última viagem turística na RMBH. O Trem das Cachoeiras, que percorria quatro quilômetros, estacionou de vez em 2016.

A exceção foi a Vitória a Minas, que não integrava a malha RFFSA, mas pertencia à Companhia Vale do Rio Doce, empresa mista controlada pela União. A ferrovia foi privatizada junto com a mineradora e nunca deixou de operar.

Hoje, em todo o País, passageiros circulam em menos de 7% do total da malha ferroviária. 

Em Minas, das ferrovias da década de 1960, além da Vitória a Minas, restaram apenas quatro linhas turísticas, que somam 50 quilômetros: São João Del-Rei a Tiradentes, São Lourenço a Soledade de Minas, Passa-Quatro a Coronel Fulgêncio, e Ouro Preto a Mariana.

Impasse sobre gestão trava Metrô de BH

Meio século depois do auge das ferrovias, a RMBH tem apenas 28,1 quilômetros nos quais circulam trens diários de passageiros. É o Metrô, que chega somente até Contagem. A Vitória a Minas, que passava por Caeté e Sabará, hoje tem sua primeira estação apenas em Barão de Cocais, no Colar Metropolitano.

Mesmo restrito, o Metrô recebe 200 mil passageiros por dia útil. Mas a opção pelo sistema rodoviário em todo o País, já tratada em outra reportagem desta série, fica clara quando esse número é confrontado com o de passageiros dos ônibus: quase 1,4 milhão por dia útil, apenas no transporte coletivo da Capital.

Outra questão parece ser específica do Metrô de BH e também se traduz em números. Segundo Antônio Faria, regiões metropolitanas de porte semelhante à RMBH hoje têm malhas maiores. É o caso de Recife, que saltou de 18 para 71 quilômetros; Porto Alegre, com 44; Fortaleza, com 49 e em obras; e o Distrito Federal, com 42 quilômetros e uma licitação em andamento.

Em audiência da Comissão Pró-Ferrovias sobre o transporte de passageiros, realizada na ALMG em agosto passado, as indefinições sobre a gestão do Metrô foram apontadas como a principal causa da paralisação dos investimentos em BH.

Isso porque não avançaram as negociações para que a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) transferisse a operação da malha à Metrominas, agência que engloba BH e Contagem. No encontro, o diretor da Metrominas, Murilo Valadares, justificou que os termos iniciais da União eram inaceitáveis.

Duas outras propostas foram feitas desde 2015, uma pela Metrominas e outra pelo Governo Temer, ambas sem acordo. A Superintendência de Belo Horizonte da CBTU reforça que a liberação de recursos orçamentários não ocorre principalmente em função desse impasse na transferência do sistema para o Governo do Estado.

Estadualização – No mesmo encontro na ALMG, Murilo Valadares defendeu justamente a ampliação da Metrominas para todo o Estado. Assim, a empresa poderia assumir a gestão de todo o transporte sobre trilhos, acabando com a fragmentação do setor, que exige contatos com vários órgãos federais.

A ideia é compartilhada pela vice-presidenta da comissão, deputada Marília Campos (PT). “O Governo do Estado ter um órgão específico para lidar com o transporte de pessoas sobre trilhos seria ótimo”, avalia. Para a parlamentar, a pressão política e social que sobreveio à greve dos caminhoneiros é uma oportunidade de mudança.

Marília Campos destaca que a mobilidade é fundamental não só para a qualidade de vida, mas para a sobrevivência das pessoas que vivem em regiões como a de BH, com grandes cidades-dormitório no entorno e longos deslocamentos. “Nesse sentido a privatização foi perversa, porque não atendeu ao interesse social. Prevalecem o carro e o coletivo rodoviário, caro, demorado e ineficiente”, pontua.

Novas linhas não entram nos trilhos

Com o controle do Metrô indefinido, estudos e projetos foram desenvolvidos tanto pela CBTU quanto pela Metrominas. Eles incluem a reforma da atual Linha 1 (Eldorado-Vilarinho) e as Linhas 2 (Calafate-Barreiro/Tereza Cristina-Santa Tereza), 3 (Pampulha-Savassi) e 4 (VLT para Betim).

As obras da linha do Barreiro chegaram a ser iniciadas na década passada. Até mesmo a primeira estação, a Amazonas, começou a ser construída. Mas a falta de recursos pôs fim a essa promessa.

As perspectivas também não são melhores. Na agenda da ANTT, não há projetos que tratem de transporte de passageiros em Minas. E a Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer) não tem nenhuma encomenda de carros de passageiros para 2019.

O professor Nilson Tadeu Ramos Nunes, do Núcleo de Transportes da Escola de Engenharia da UFMG, avalia que o cenário seria outro se houvesse a "intenção" da União nesse sentido. “A ferrovia é um serviço estratégico que envolve investimento pesado. A diretriz tem que ser do Governo Federal”, aponta.

Por outro lado, segundo ele, a gestão pode ser feita em parceria. Nilson aponta que os Estados Unidos têm sistema privado, enquanto a Alemanha opera com o estatal. “Os dois funcionam bem. Agora a China, outro país continental, está expandindo as ferrovias em larga escala. Eles sabem que esse sistema traz economia e competitividade”, aponta.

Saída – Para Marília Campos, uma solução poderia vir da utilização dos trilhos que passam pela RMBH para o transporte de passageiros. “É mais viável e mais barato, sem escavações ou desapropriações. Precisamos investir no que já existe e está abandonado. Não é um investimento barato, mas é menor do que começar do zero”, justifica.

Seria necessário, segundo ela, colocar trilhos e trens e fazer a interligação com o modal rodoviário. Marília Campos se diz otimista. “Nosso sonho de cidade metropolitana é ter transporte com dignidade, e a alternativa é o trilho”, sentencia.

O último trem para a praia

A relação entre os mineiros e o trem é tão especial que seria injusto se o único trem regional de passageiros que ainda mantém viagens diárias no Brasil não passasse pelo Estado. Mas passa! O Vitória a Minas, operado pela Vale, sai de Belo Horizonte todos os dias às 7h30, rumo a Cariacica, na Grande Vitória (ES). Leva o mineiro a outra das suas grandes paixões: a praia.

São 13 horas de viagem por 664 quilômetros. Ao todo, são 29 estações em cidades da Região Central e do Vale do Rio Doce, em Minas, e em outros municípios capixabas. Há também um trecho adicional entre as mineiras Itabira e Nova Era, com mais uma estação. Paisagens de Mata Atlântica, montanhas e cerrado.

Na sexta-feira em que a reportagem embarcou em BH, o trem estava cheio, sobretudo na classe econômica. Alguns passageiros liam, outros jogavam baralho ou viam TV. Muitos alunos, crianças e adolescentes, se dirigiam em excursão ao Santuário do Caraça, em Catas Altas. Além da experiência de viajar de trem, evitavam a BR-381, a “rodovia da morte” em Minas.

Alguns passageiros viajam com regularidade, como o designer gráfico Lucas Braga, que mora em BH e visita os pais todos os meses em Governador Valadares. “A proximidade com o trem está na minha infância. Além disso a viagem é mais barata que a de ônibus e pode ser produtiva. Eu leio, trabalho, faço amigos. Vivo a viagem”, conta.

Lucas cita, por outro lado, a imprevisibilidade da viagem pela BR-381. “Já levei 15 horas nesse trajeto. Tenho conhecidos que perderam voo”, reforça.

Já o professor Márcio Luiz Rocha, recém-operado do joelho, viajava de volta a Valadares no vagão com acessibilidade, levando o andador. “Não posso dirigir, o ônibus é desconfortável nessa situação, e o avião é caro”, comparou.

Conforto – Estreante em viagem de trem, a engenheira Marylin Daisa veio de São José dos Campos (SP) para conhecer a família do namorado Flávio Leal, em Timóteo. O conforto e a comparação com a viagem pela BR-381 pesaram na decisão do casal. “Eu andei no trem antigo, depois fora do Brasil e, agora, no novo trem. Ele está muito melhor”, opina Flávio.

Ele faz referência à modernização dos carros de passageiros, feita em 2014. Hoje, o Vitória a Minas tem ar-condicionado nos carros executivos e convencionais, lanchonete e restaurante, além do carro para cadeirantes.

Transporta 1 milhão de passageiros por ano nos dois sentidos. Segundo a Vale, o serviço é autossustentável, mas depende da sinergia com o transporte de carga para a manutenção da malha.

Anderson Fernando é chefe do trem. Ajuda passageiros com tudo, desde a localização do carro ou do assento até a acomodação de bagagens. Antes, emitia passagens e foi assim que conheceu a esposa, em 2005. “Tropecei numa mala pesada, com o desenho do Piu-Piu. Tínhamos um amigo em comum que trabalhava no trem. Casamos um ano depois”, conta.

No vai e vem da estação, ele escuta histórias de todo tipo, algumas tão características de Minas Gerais como o próprio trem. Uma delas ele ouviu de outro chefe, Abdo, que barrou uma senhora com um galo. “Ela disse que se não pudesse levar o galo, ninguém ficaria com ele. Depois falou umas coisas emboladas, e o galo esticou e morreu”, relata.

Making of – A equipe da ALMG embarcou no trem em BH às 7h30, com destino à Estação Dois Irmãos, em Barão de Cocais, onde chegou às 9 horas. O carro que traria os servidores de volta deixou a Capital às 7h15 e, depois de enfrentar retenções na BR-381, chegou à estação às 9h40. Mesmo viajando a uma velocidade média de 68 km/hora, o trem chegou muito antes!

Esta é a terceira matéria de uma série especial sobre as ferrovias mineiras. A próxima será publicada no dia 12 de novembro.