Geraldo de Andrade venceu a situação de rua e organizou com amigos uma cooperativa que oferece trabalhos na construção civil
Elisângela (à frente) e Maria da Conceição também superaram a situação de rua e hoje trabalham na Pastoral de Rua
Para Maria da Conceição, 55 anos, ser mulher em situação de rua é mais difícil em questões como a violência e a necessidade de higiene pessoal
"Na rua é assim (...). Se você não tem uma pessoa fixa, todo mundo quer te usar. Mulher sofre demais", relatou Elisângela
Maria da Conceição viveu na rua por 30 anos e se orgulha de ter criado sete filhos

Emprego e renda: demanda da população em situação de rua

Falta de documentos é uma das dificuldades. Saúde e violência contra mulheres também precisam ser foco de políticas.

Por Natália Martino
30/05/2018 - 10:30

Eram tempos difíceis. O desemprego atingia muitos em 2014 e, para aqueles em situação de rua, era ainda pior. Nem sempre os documentos necessários estavam disponíveis e a qualificação exigida pelo mercado às vezes também faltava.

Geraldo de Andrade dormia, a essa altura, em um abrigo de Belo Horizonte. Diariamente, às 5 horas da manhã, precisava sair de lá. O retorno teria que ser entre 17 e 19 horas se quisesse uma cama para a noite.

Foi nesse contexto que ele começou a pensar em como formar uma cooperativa para sair da situação. A ideia veio de um contato com um dos exemplos mineiros mais bem sucedidos nesse sentido: a Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável (Asmare). Geraldo chegou a ser um cooperado e até hoje trabalha com o grupo. Queria, porém, ir mais longe.

Com os amigos, se reunia em praças para organizar uma cooperativa que ofereceria trabalhos na construção civil. “O que a gente mais precisava era capacitação”, explica Geraldo.

Alguns parceiros como o Ministério Público, grupos religiosos e empresas privadas ajudaram nesse caminho. Foram pelo menos três anos até que a Coopmult entrasse efetivamente no mercado.

Nesse período, os participantes fizeram treinamentos tanto em gestão quanto no ramo da construção civil. O Sebrae e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foram essenciais nesse processo. Também conseguiram ferramentas de trabalho a partir de uma robusta doação. 

E foi assim que Geraldo e mais nove cooperados venceram a situação de rua e se orgulham da condição de vida atual.

A história é bem sucedida e não é à toa que o incentivo ao cooperativismo é um dos pontos em discussão para ser incluído no plano Estadual que está em debate no Fórum Técnico Plano Estadual da Política para a População em Situação de Rua.

O evento é promovido pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em parceria com a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac) e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Estadual para População em Situação de Rua (Comitê PopRua-MG). A etapa final do evento será realizada entre os dias 11 e 13 de junho na ALMG.

O objetivo do trabalho é elaborar um plano de metas e ações para implementar a Política Estadual para a População em Situação de Rua, instituída pela Lei 20.846, de 2013

Cooperativismo não pode ser, porém, a solução única para a questão, como mostramos nesta segunda matéria sobre o assunto. A habitação também é um ponto central, conforme aborda a primeira matéria especial da série.

A reportagem da ALMG ouviu pessoas em situação de rua para entender quais são suas principais demandas. Todos os áudios e vídeos com trechos das entrevistas realizadas estão disponíveis na página da série sobre População em Situação de Rua.

Terminologia - Vale esclarecer que esta série de matérias utiliza a expressão população em situação de rua, que é a considerada correta, por sugerir uma condição que pode ser passageira e vir a mudar, em lugar de morador de rua, que remete à ideia de algo definitivo.

De documentos a qualificação: o que é necessário para se recolocar no mercado de trabalho

A heterogeneidade das pessoas em situação de rua exige soluções diferentes. Há quem precise do básico: ajuda para conseguir documentos. Outros necessitam de tratamento médico antes de conseguirem trabalhar.

Aqueles que passaram por experiências no sistema prisional precisam de apoio para conseguir vagas de trabalho sem um atestado de bons antecedentes.

O desafio central, como destaca Frederico Poley, da Fundação João Pinheiro, é não compartimentar as políticas públicas. Para superar a situação de rua, é preciso não só casa ou emprego, mas também assistência à saúde ou apoio para reestruturação familiar, por exemplo.

Pensando nisso, o coordenador do Albergue Vitor Braigh, em Betim (Região Metropolitana de Belo Horizonte), Carlos Gonçalves, desenvolveu, com outros atores da rede de atendimento municipal, o chamado Plano Integrado de Acolhimento (PIA). O objetivo é identificar as necessidades específicas daqueles que demandam os serviços da rede e atendê-los.

“Às vezes a pessoa chegou até a cidade em busca de emprego, não conseguiu e acabou na rua. Tudo o que ela precisa é de dinheiro para voltar para a sua família”, explica Carlos. Em outros momentos, é necessário monitorar a frequência em médicos ou oferecer cursos de alfabetização, por exemplo.

O albergue coordenado por Carlos é um exemplo raro em que a casa fica aberta ao longo do dia e oferece três refeições diárias, além de atividades de convivência.

Seu trabalho é interligado à saúde e à assistência social do município, especialmente por meio do Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop). Instituídas pelo Governo Federal, essas unidades buscam ser um espaço de atendimento para esse grupo.

Uma das dificuldades enfrentadas, conforme o coordenador do Albergue Victor Braigh, é com aqueles chamados de “trecheiros”, ou seja, as pessoas que estão em situação de rua, mas vivem nas rodovias.

Eles são em geral provenientes de zonas rurais e, segundo Carlos Gonçalves, chegam aos abrigos muitas vezes em busca de descanso e vão embora no dia seguinte.

“Como estão sempre no trecho, não estabelecem vínculo com serviços de atendimento de nenhum município”, diz.

Assim, a sugestão de Carlos, que participou do encontro regional do fórum técnico realizado em Betim, é de que não apenas os serviços sejam integrados, mas também as redes municipais. Para esse público específico, seria necessário, segundo ele, uma rede estadual mais sólida que conseguisse acompanhar as migrações diárias desse grupo.

Mulheres - No albergue Vitor Braigh, a reportagem da ALMG conheceu um grupo que tem necessidades específicas: o de mulheres. Apesar de em menor número, elas têm no mínimo três questões que não afetam, pelo menos não tão fortemente, os homens.

A primeira é a violência sexual e a segunda diz respeito aos filhos, que frequentemente acabam separados das mães diante dos esforços para retirar as crianças das ruas e da falta de opções para a família. Há ainda a questão da gravidez.

Segundo Alexa Rodrigues do Vale, psicóloga e técnica social da Pastoral de Rua, a maior preocupação é em relação às crianças que ainda não nasceram.

A atuação do Conselho Tutelar teria, segundo ela, reduzido o número de crianças e adolescentes em situação de rua, mas a preocupação tem se voltado para as gestantes. “Elas demandam acompanhamento e a tentativa é de que, quando o neném nascer, já estejam pelo menos em um abrigo”, diz.

Uma das razões para a preocupação, especialmente em Belo Horizonte, é a chance de mãe e filho serem separados logo após o parto, caso se considere que ela não tem condições de criá-lo.

Por isso, é necessário comprovar não apenas uma moradia, mas também um cuidado com a gravidez, representado pelo acompanhamento pré-natal.

Ausência de doenças não é saúde

Se ter uma vida com saúde é importante para todos, para aqueles em situação de rua, o desafio é maior. A psicóloga e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Vulnerabilidade em Saúde da Faculdade de Medicina da UFMG, Michele Ralil da Costa, explica que esse grupo está exposto a uma série de condições desfavoráveis, entre as quais má nutrição e privação de sono.

Uma das questões que Michele salienta é que o conceito de saúde hoje vai muito além da ausência de doenças. Estados psicológicos e sociais saudáveis também são pré-requisitos. Assim, para garantir boa saúde a esse grupo, é necessário mais do que médicos e hospitais, mas também acesso a moradia, renda e espaços positivos de convivência.

Só no fim da linha, quando tudo falhou e a doença se instalou, é que entraria a rede de hospitais e pronto atendimentos. Uma portaria de 2011 do Ministério da Saúde regulamentou o uso dos equipamentos do SUS com vistas a assegurar o atendimento a essa população.

A principal medida foi a garantia de atendimento mesmo que a pessoa não tenha o cartão do SUS e não consiga comprovar endereço para cadastro. “Mas a gente sabe que ainda há um estigma que dificulta esses atendimentos em alguns postos de saúde”, diz a psicóloga.

Segundo ela, esse estigma, aliado a alguns desconhecimentos, acaba em certos momentos privando de atendimento aqueles que procuram os serviços. Assim, é necessário ir além da regulamentação formal e trabalhar com a sensibilização dos profissionais.

“A confiança é fundamental para que as pessoas se vinculem a um serviço de saúde integral. Elas precisam ter certeza de que serão atendidas”, diz Michele Ralil.

Um trabalho que, de acordo com a psicóloga, costuma ser eficiente é o dos chamados consultórios de rua. Geralmente gerenciados pelas administrações municipais, mas vinculados ao SUS, eles são formados por equipes multidisciplinares que atendem periodicamente em áreas estratégicas da cidade. São voltados especialmente para as pessoas em situação de rua. Os problemas com os quais essas equipes se deparam são principalmente doenças infectocontagiosas e de pele.

Tuberculose é, segundo Michele, outra enfermidade comum nesse grupo populacional. “A tuberculose está associada a fatores do sistema imunológico e tem relação com condições de renda. Os dados do Ministério da Saúde indicam que a sua frequência na população em situação de rua é 67 vezes maior do que na população geral”, afirma.

Já em Belo Horizonte, segundo censo realizado em 2014 pela UFMG, os problemas de saúde mais relatados foram hipertensão, doenças de pele, DSTs, hepatite e diabetes. “É por isso que valorizamos a organização do Fórum Técnico sobre População em Situação de Rua de forma descentralizada. As realidades regionais são diferentes entre si e precisam ser consideradas”, explica.

Apesar das especificidades de cada lugar e de cada história, há muito em comum nos desafios para se oferecer moradia, renda, saúde e segurança para a população em situação de rua.

E para buscar essas soluções, os participantes da etapa final do Fórum Técnico Plano Estadual da Política para a População em Situação de Rua vão priorizar ações para construir um Plano Estadual que resulte em políticas com resultados efetivos.

Esta é a última matéria da série especial sobre a população em situação de rua. 

Matéria feita com a colaboração de Marcelo Gomes, Grazielle Mendes (edição de áudio), Bárbara Figueiredo e Luiza Diniz (edição de vídeo)