Daniel Correia de Andrade (Adão) construiu com objetos encontrados na rua a sua maloca em Betim (RMBH) e diz que só quer respeito
Na Pastoral de Rua de Belo Horizonte, Joel Loureiro, 45 anos, foi um dos entrevistados pela reportagem
Wilson Zacarias, 60 anos, acha que a idade avançada dificulta na busca de emprego
Entre a lavagem de um carro e outro, Diego falou de sua trajetória de vida, que inclui drogas, prisão e amor de mãe
Quando Daniela chegou ao abrigo com sua filha, o Conselho Tutelar foi chamado. Hoje ela tenta retomar a guarda da criança
Gustavo cumpriu pena por tráfico de drogas e agora busca um emprego para se restabelecer
O que Wilson Zacarias das Chaga mais deseja é encontrar um emprego e uma companheira
Diego Rodrigues dos Santos, 31 anos. Entrevistado na região central da Capital, ele contou um pouco da sua história
“A maior dificuldade está no 'aceitamento' de si mesmo. Eu me amo.” Ele foi batizado como Daniel Correia, mas prefere ser chamado de Adão
"Todas as vezes que eu ligava, ela perguntava: 'ô mãe, você está fazendo alguma coisa para me tirar daqui?'"
A morte de um parente levou Joel Loureiro para as ruas e para as drogas. Ele agora vive em uma república
"Quando a gente dorme, é um olho aberto e o outro fechado". Gustavo Monteiro Costa dorme nas ruas e relata sua luta por uma oportunidade de trabalho

População em situação de rua: onde morar?

Violência contra população em situação de rua

Dignidade na rua: a luta de quem não tem um teto para viver

Moradia, trabalho, saúde, segurança. Como garantir direitos essenciais para essa parcela da população?

Por Natália Martino
28/05/2018 - 10:20

“Pedimos o impossível para essas pessoas”, diz Alexa Rodrigues do Vale, psicóloga e técnica social da Pastoral de Rua. A entidade é ligada à Igreja Católica e realiza uma série de projetos e ações voltadas para esse grupo social.

“A política pensa primeiro na saúde, depois em geração de trabalho e renda e só lá no final em moradia. Querem que as pessoas reestruturem sua vida estando na rua”, explica.

A entidade que Alexa do Vale representa é uma das que ajudaram na organização do Fórum Técnico Plano Estadual da Política para a População em Situação de Rua.

O evento é promovido pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em parceria com a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac) e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Estadual para População em Situação de Rua (Comitê PopRua-MG).

Com etapa final a ser realizada entre os dias 11 e 13 de junho na ALMG, o fórum contou com encontros regionais em cinco municípios do interior: Betim (Região Metropolitana de Belo Horizonte), Uberlândia (Triângulo), Montes Claros (Norte), Ipatinga (Vale do Aço) e Juiz de Fora (Zona da Mata), além de Belo Horizonte.

O objetivo do trabalho é elaborar um plano de metas e ações para implementar a Política Estadual para a População em Situação de Rua, instituída pela Lei 20.846, de 2013.

A habitação, problema central que, para Alexa do Vale, precisa ser resolvido para que seja possível avançar nos outros pontos, é um dos eixos da discussão.

A reportagem da ALMG ouviu pessoas em situação de rua para entender quais são suas principais demandas. Habitação, trabalho e geração de renda estiveram entre as preocupações mais frequentes. Segurança e saúde também se apresentaram como questões a serem resolvidas. Todos esses pontos estão em discussão no fórum e os desafios são grandes para a construção do plano estadual.

A seguir, apresentamos alguns desses desafios e tratamos da demanda por habitação. Na segunda matéria da série, serão abordadas questões relacionadas à geração de renda e saúde. Trechos das entrevistas com pessoas em situação de rua poderão ser ouvidos ao longo da matéria. Alguns vídeos também estão disponíveis na página da série sobre População em Situação de Rua.

Terminologia - Vale esclarecer que a expressão população em situação de rua é a considerada correta, por sugerir uma condição que pode ser passageira e vir a mudar, em lugar de morador de rua, que remete à ideia de algo definitivo.

Por onde começar

O primeiro passo para se resolver qualquer problema é conhecê-lo. E aí começa o desafio de se construir políticas públicas para a população em situação de rua: é difícil saber de quantas pessoas estamos falando e quem são elas.

O mais importante censo demográfico brasileiro, conduzido a cada dez anos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não as inclui. Porém, segundo o professor de políticas públicas da Fundação João Pinheiro, Frederico Poley, a organização já discute formas de incorporar o grupo em seu censo. “O IBGE está preocupado e isso é uma vantagem”, diz.

A primeira pesquisa nacional nesse sentido foi realizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em 2009. Antes disso, iniciativas municipais já tentavam mapear quem fazia parte desse grupo.

Frederico Poley participou do primeiro trabalho com esse objetivo em Belo Horizonte, ainda na década de 1990. De lá para cá, vários municípios fizeram suas contagens, mas uma das dificuldades, como aponta o professor, é que as metodologias nem sempre são as mesmas, o que dificulta a comparação entre os dados.

Como informações gerais, sabe-se que esse grupo populacional é composto majoritariamente por homens e está envelhecendo.“Se há 20 anos nossa preocupação era com as crianças de rua, hoje é com os idosos”, diz Frederico Poley.

Para a construção de políticas públicas, uma questão determinante, segundo o pesquisador, é o tempo na rua. É preciso, segundo ele, colocar em prática estratégias de abordagem para tirar as pessoas da situação de rua o mais rapidamente possível.

Como explica Frederico, quanto mais isso demora, mais distantes ficam os vínculos familiares e mais difícil é a readaptação a outros modos de vida.

A heterogeneidade do grupo que está em situação de rua também deve ser considerada nas abordagens. Como explica o pesquisador, os motivos que levam essas pessoas para as ruas são muito diferentes.

Há casos em que o problema é estritamente econômico. São, por exemplo, aqueles que saem de casa para buscar oportunidades de emprego em municípios maiores, não conseguem e não têm dinheiro para voltar para suas cidades. Mas essa não é a situação de todos, como explica Frederico.

Questões de saúde, em especial problemas psiquiátricos, e envolvimento com drogas, lícitas ou ilícitas, são outras possibilidades.

De acordo com o pesquisador da Fundação João Pinheiro, o rompimento de vínculos familiares está muito presente em várias histórias.

Também há um grupo que pouco se conhece que é o formado por egressos do sistema prisional, que não conseguem se recolocar no mercado de trabalho e, muitas vezes, também já tiveram rompidos seus vínculos familiares.

Que tipo de moradia se oferece?

Em comum, todas essas pessoas, que chegam às ruas por diferentes razões, têm a falta de moradia. Apesar de algumas delas afirmarem que não querem sair da rua, a representante da Pastoral de Rua, Alexa do Vale, questiona essa colocação.

“Quando alguém me pergunta se alguns deles não preferem ficar onde estão, eu devolvo a pergunta: depende. Quais ofertas para sair eles têm?”, diz.

Ela explica que não são raras as reclamações quanto a propostas de trabalhos temporários como caseiros em sítios, por exemplo, nos quais as contrapartidas são casa e comida por meses de trabalho, sem nenhum salário. “E a comida às vezes é precária”, completa.

Alexa cita, ainda, aqueles que vivem nas ruas apesar de terem familiares com casas que, supostamente, poderiam abrigá-los. “O que os levou a sair de casa? Será que realmente era um lugar saudável para se viver?”, questiona.

Nesse sentido, é preciso entender a rede de atendimento à demanda por moradia. Em geral, aqueles que estiveram nas ruas e conseguiram se estabelecer passaram por várias etapas até chegar ao que puderam chamar de “lar”.

Primeiro, há passagens por abrigos ou albergues. Esses locais, salvo algumas exceções, são utilizados para pernoites e não é permitida a permanência ao longo do dia.

Em geral, são separados por gênero, ou seja, alguns abrigos são destinados a mulheres, outros a homens e, na maioria deles, crianças não são permitidas. Poucos têm vagas para famílias inteiras.

Esse arranjo costuma afastar os que não querem se separar daqueles com quem dividem o dia a dia.

Depois, há as repúblicas. Como explica Alexa, esses locais foram pensados para serem já um primeiro lar.

Os moradores teriam mais independência, uma vez que não haveria equipe de assistência social no local para administrar a rotina. Cada um também teria seu espaço na casa, que deveria abrigar, no máximo, 12 pessoas.

Porém, como explica a representante da Pastoral de Rua, essa tipificação foi distorcida e, pelo menos em Belo Horizonte, as repúblicas funcionam com um número muito maior de moradores e sob a tutela de vários profissionais da assistência social.

Seja como for, há limites de tempo para que as pessoas permaneçam nesse espaço. Às vezes um ano, às vezes um pouco mais.

Nesse tempo, elas precisam ser capazes de se reestruturar e seguir com suas vidas, seja sem a ajuda do Estado ou com a utilização, também temporária, de auxílios como o bolsa-aluguel.

É essa lógica que Alexa do Vale questiona: espera-se que as pessoas reestruturem suas vidas antes de terem uma moradia.

Déficit de vagas - Se é difícil superar os obstáculos para quem consegue vagas nesses locais destinados à habitação, é preciso pensar também nos que não conseguem. As contagens da população em situação de rua existentes indicam que não há vagas para todos.

Não só a Capital mineira tem dificuldades em acolher todos que estão em situação de rua. Juiz de Fora, por exemplo, consegue abrigar 141 pessoas, enquanto 243 dormem na rua, de acordo com dados da prefeitura.

Claro que nem todos buscam esses espaços. Mesmo entre os que querem sair da rua, há os que preferem não recorrer a abrigos e albergues. Uma das dificuldades é com relação às divisões baseadas em sexo. Muitos não querem se separar dos companheiros ou, principalmente, dos filhos. Assim, é necessário buscar outras soluções.

Dificuldade adicional apontada por Alexa do Vale é a mudança no tipo de regra à qual a pessoa passa a ser submetida. “O tempo, por exemplo, é outro para quem está abrigado. Na rua, a noite é mais perigosa do que o dia, então é comum trocar esses horários: dormir durante o dia e ficar acordado à noite. E é difícil reverter a lógica depois”, exemplifica. 

Violência - Frederico Poley, da Fundação João Pinheiro, destaca que as regras menos rígidas podem funcionar como uma espécie de chamariz. “Normalmente na rua a pessoa tem mais liberdade, não cumpre determinadas regras sociais”, explica. Ele completa, porém, que a vida não é fácil e as pessoas ficam sujeitas a muita violência e preconceito.

Uma das demandas dos grupos que atuam na defesa dos direitos das pessoas em situação de rua diz respeito a um canal de denúncias efetivo no âmbito estadual, a exemplo do que foi feito nacionalmente com o Disque 100.

Ocupações - Diante dessas violências, o suposto desejo de se estar na rua não é, portanto, a regra. No contexto de déficit de ofertas de possibilidades pelo Estado, outras alternativas são procuradas. Os movimentos sociais de luta por moradia representam parte dessas tentativas.

A partir do mapeamento de áreas e prédios abandonados, são realizadas ocupações. As famílias dividem o espaço e se organizam para administrar as rotinas enquanto enfrentam, na Justiça, ações de reintegração de posse.No dia 1° de maio deste ano, o desabamento de um prédio na cidade de São Paulo, onde viviam cerca de 150 famílias sem-teto, ilustrou a situação vivida por essas pessoas.

Em abril de 2018, o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, anunciou, ao lado do governador Fernando Pimentel, dois decretos que tratam das ocupações na Capital.

Um deles transforma em Área Especial de Interesse Social (AEIS) 119 regiões ocupadas que, juntas, abrigam quase 100 mil pessoas.O outro vai na direção contrária e trata da fiscalização para que não surjam novas ocupações.

Deixando de lado avaliações políticas sobre os decretos, uma coisa eles sinalizam: há muita gente sem moradia lutando por uma.

Esta é a primeira matéria de uma série especial sobre a população em situação de rua. A próxima será publicada no dia 30 de maio.

Matéria feita com a colaboração de Marcelo Gomes, Grazielle Mendes (edição de áudio), Bárbara Figueiredo e Luiza Diniz (edição de vídeo)