O jovem Aruanã relata seu medo de ser mais uma vítima da violência urbana: de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras, segundo o Atlas da Violência 2017
Para Natalie, as lutas da juventude têm feito com que negros se reconheçam
Wanatta usa a arte para retratar a realidade das mulheres negras
Número de jovens mortos de forma violenta em Minas aumentou quase 30%, em cinco anos

Juventude negra em busca de reconhecimento

Valorização da identidade e da cultura afro e combate a preconceitos e violências: as lutas dos jovens negros.

Por Natália Martino
21/08/2017 - 09:00

"Eu cortei meu cabelo e achei que isso ia resolver todas as contradições da minha vida. Um mês depois, o cabelo cresceu de novo e gritou: você é negro", conta Aruanã Leone, de 21 anos. E "ser negro" significa, segundo ele, ser seguido por seguranças no shopping, ter suas crenças questionadas e viver com medo de ser a próxima vítima da violência urbana.

Processos históricos de discriminação, que remontam ao período escravocrata, fizeram com que essa enorme parcela da população fosse, ainda, relegada a posições sociais e econômicas desfavoráveis, de forma que esses brasileiros são maioria nas periferias e minoria nas universidades.

A terceira matéria da série especial que marca a Semana Estadual das Juventudes trata dos desafios e das lutas dos jovens negros. Instituída pela Lei 22.413, aprovada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em 2016, a semana é comemorada pela primeira vez em 2017 e tem como objetivo estimular o debate sobre medidas de proteção de segmentos jovens específicos.

Questão de identidade

A primeira pergunta necessária é: quem são os negros e negras do Brasil? Ao longo de muitas décadas, a ancestralidade africana tem sido apagada do perfil populacional por meio de uma série de políticas públicas que confundem "raça" com "cor" e incluem categorias obscuras, como "pardos", na medição.

A luta do movimento negro, portanto, começa por valorizar os traços físicos e a cultura dos afrodescendentes e passa pela pressão por políticas afirmativas que criem as condições necessárias para o reconhecimento das desigualdades raciais e sua superação.

Em conjunto, os resultados dessa luta têm impactado na autoclassificação dessa população, que cada vez mais assume sua identidade. Tem sido atribuído a isso o aumento progressivo, desde a década de 1990, de pessoas que se reconhecem como "pretos" ou "pardos" no Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No último recenseamento, de 2010, o percentual de "pardos" cresceu de 38,5% para 43,1% e o de "pretos" também subiu, de 6,2% para 7,6%, em relação ao Censo realizado dez anos antes. Os brancos? Diminuíram de 53,7% para 47,7% dos brasileiros.

Veja linha do tempo sobre as principais mudanças na abordagem do Censo em relação às definições de raça e cor:

Para muito além dos números, a luta pela valorização do que é negro se vê nas ruas, onde cada vez mais mulheres e homens assumem características como cabelos black e elementos da cultura africana, como turbantes.

"Essa mudança nasce do que eu chamo de ‘reencontro’ dos jovens negros", diz a cineasta social Natalie de Souza, de 22 anos. Para ela, as lutas das juventudes têm feito com que negros e negras se encontrem, se reconheçam e busquem referências (de cientistas a cantores) para se inspirarem.

Representação é palavra-chave. "Nós, mulheres negras, crescemos na solidão de não nos identificarmos no mundo", diz Natalie, que explica que grande parte da imagem feminina da sua raça passa pela sexualização do corpo. A "mulata do samba" é o mais clássico exemplo disso.

Natalie acredita que esse cenário está mudando, mas ainda há muito o que avançar. Se negros e negras já são mais retratados na televisão ou no cinema, por outro lado, os recrutados são aqueles com "traços mais finos". É o chamado colorismo, escala de cor e traços que faz com que certos perfis físicos sejam mais tolerados pela sociedade. "Mas é tolerado, não igualado aos brancos", salienta Natalie.

É arte e é política

Para algumas mulheres, a questão vai muito além da aparência. "O empoderamento estético é a luta das mulheres negras das áreas mais centrais da cidade. Nas periferias, a luta passa por outras necessidades, como resistência à violência e busca de independência financeira", explica Wanatta Rodrigues, de 23 anos.

Grafiteira e artista plástica, Wanatta usa essa expressão visual para que as duas realidades vejam uma à outra. Moradora do Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte, ela retrata mulheres da comunidade em telas para galerias e leva a realidade de mulheres negras de outros lugares para os muros do bairro.

Wanatta ressalta que o grafite é essencialmente uma arte política, negra e ligada a grupos marginalizados desde a origem, que remonta ao Bronx, em Nova York (EUA). "Como tudo que tem relação com as periferias, acaba criminalizado. O que acontece às vezes também com o grafite", diz.

Ela afirma, porém, que a beleza estética do grafite muitas vezes o protege desse processo, o que não acontece com outras manifestações, como o funk, que já é objeto de propostas de proibição no Congresso. Assim, manifestações musicais e visuais são, também, formas de resistência e de afirmação da juventude, especialmente a que mora nas periferias das grandes cidades.

Kdu dos Anjos, idealizador do Centro Cultural Lá na Favelinha, no Aglomerado da Serra, em BH, se considera um elo entre a cidade e a periferia. O centro promove atividades culturais e realiza vários eventos para os jovens da comunidade. Ele conta um pouco sobre essas formas de resistência:

Correção de desigualdades

Os processos históricos de discriminação empurraram negros e negras para situações sociais e econômicas desfavoráveis. Se o Brasil do século XIX, pós-abolição, não oferecia condições para que os ex-cativos saíssem da marginalidade, o Brasil do século XXI paga salários menores a essa parcela da população. Os que chegam às universidades, por outro lado, são mais brancos. As informações são do Censo 2010.

Portanto, torna-se prioridade ocupar espaços privilegiados de ensino para, assim, chegar a espaços de poder político e econômico. As políticas afirmativas têm buscado criar um ambiente propício para esse passo.

No Brasil, as cotas em universidades, implantadas progressivamente desde 2001, são vitórias importantes. A primeira a fazer isso foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), mas uma lei recentemente aprovada na ALMG também coloca Minas no mapa da busca de políticas de superação das desigualdades raciais.

Lei 22.570, de 2017, instituiu o Programa de Assistência Estudantil na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) e na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). A norma atualizou as regras do sistema de reserva de vagas nas duas universidades.

Agora, em cada curso de graduação e técnico de nível médio, no mínimo 45% das vagas devem ser destinadas a candidatos de baixa renda que sejam egressos de escolas públicas – delas, no mínimo 53,8% deverão ser reservadas a negros. Serão oferecidos aos estudantes auxílios financeiros e serviços voltados à sua formação integral e ao aprimoramento do seu desempenho acadêmico.

O jovem Aruanã explica que esses auxílios são essenciais, já que não adianta oferecer a possibilidade de entrar nas universidades sem garantir oportunidades para permanecer no estabelecimento de ensino. 

Acúmulo de desvantagens

Nas prisões, negros e negras representam mais de 60% dos detentos, de acordo com dados do Ministério da Justiça. É a chamada seletividade do Sistema de Justiça Criminal, termo utilizado para nomear a "peneira" que se inicia com a polícia e termina nos tribunais. As diferenças na atuação policial nas periferias e as dificuldades de acesso a advogados de defesa qualificados estariam entre as causas dessas estatísticas.

Entre as vítimas de homicídios, negros também são maioria. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras, segundo o Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Enquanto os casos de morte violenta de mulheres brancas são reduzidos, as mulheres negras veem as agressões contra elas aumentarem: a mortalidade de não-negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, enquanto o índice entre as mulheres negras subiu 22%.

Há quem questione se esses dados refletem desigualdades raciais ou apenas econômicas. O consenso nas pesquisas é de que há um acúmulo de desvantagens: ser pobre é ruim, ser pobre e negro é péssimo. O Atlas da Violência, por exemplo, descontou efeitos de variáveis como escolaridade e bairro de residência e constatou que, ainda assim, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças.

É para virar esse jogo que a juventude negra busca cada vez mais espaço nas universidades, na arte, na política, no mundo. "Nasci negra, periférica e mulher. Lutar não é opção, é necessidade", resume a cineasta social Natalie de Souza.

Esta é a terceira matéria de uma série especial sobre a juventude. A próxima será publicada nesta quarta-feira (23).