Juventude negra em busca de reconhecimento
Valorização da identidade e da cultura afro e combate a preconceitos e violências: as lutas dos jovens negros.
"Eu cortei meu cabelo e achei que isso ia resolver todas as contradições da minha vida. Um mês depois, o cabelo cresceu de novo e gritou: você é negro", conta Aruanã Leone, de 21 anos. E "ser negro" significa, segundo ele, ser seguido por seguranças no shopping, ter suas crenças questionadas e viver com medo de ser a próxima vítima da violência urbana.
Processos históricos de discriminação, que remontam ao período escravocrata, fizeram com que essa enorme parcela da população fosse, ainda, relegada a posições sociais e econômicas desfavoráveis, de forma que esses brasileiros são maioria nas periferias e minoria nas universidades.
A terceira matéria da série especial que marca a Semana Estadual das Juventudes trata dos desafios e das lutas dos jovens negros. Instituída pela Lei 22.413, aprovada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em 2016, a semana é comemorada pela primeira vez em 2017 e tem como objetivo estimular o debate sobre medidas de proteção de segmentos jovens específicos.
Questão de identidade
A primeira pergunta necessária é: quem são os negros e negras do Brasil? Ao longo de muitas décadas, a ancestralidade africana tem sido apagada do perfil populacional por meio de uma série de políticas públicas que confundem "raça" com "cor" e incluem categorias obscuras, como "pardos", na medição.
A luta do movimento negro, portanto, começa por valorizar os traços físicos e a cultura dos afrodescendentes e passa pela pressão por políticas afirmativas que criem as condições necessárias para o reconhecimento das desigualdades raciais e sua superação.
Em conjunto, os resultados dessa luta têm impactado na autoclassificação dessa população, que cada vez mais assume sua identidade. Tem sido atribuído a isso o aumento progressivo, desde a década de 1990, de pessoas que se reconhecem como "pretos" ou "pardos" no Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No último recenseamento, de 2010, o percentual de "pardos" cresceu de 38,5% para 43,1% e o de "pretos" também subiu, de 6,2% para 7,6%, em relação ao Censo realizado dez anos antes. Os brancos? Diminuíram de 53,7% para 47,7% dos brasileiros.
Veja linha do tempo sobre as principais mudanças na abordagem do Censo em relação às definições de raça e cor:
Para muito além dos números, a luta pela valorização do que é negro se vê nas ruas, onde cada vez mais mulheres e homens assumem características como cabelos black e elementos da cultura africana, como turbantes.
"Essa mudança nasce do que eu chamo de ‘reencontro’ dos jovens negros", diz a cineasta social Natalie de Souza, de 22 anos. Para ela, as lutas das juventudes têm feito com que negros e negras se encontrem, se reconheçam e busquem referências (de cientistas a cantores) para se inspirarem.
Representação é palavra-chave. "Nós, mulheres negras, crescemos na solidão de não nos identificarmos no mundo", diz Natalie, que explica que grande parte da imagem feminina da sua raça passa pela sexualização do corpo. A "mulata do samba" é o mais clássico exemplo disso.
Natalie acredita que esse cenário está mudando, mas ainda há muito o que avançar. Se negros e negras já são mais retratados na televisão ou no cinema, por outro lado, os recrutados são aqueles com "traços mais finos". É o chamado colorismo, escala de cor e traços que faz com que certos perfis físicos sejam mais tolerados pela sociedade. "Mas é tolerado, não igualado aos brancos", salienta Natalie.
É arte e é política
Para algumas mulheres, a questão vai muito além da aparência. "O empoderamento estético é a luta das mulheres negras das áreas mais centrais da cidade. Nas periferias, a luta passa por outras necessidades, como resistência à violência e busca de independência financeira", explica Wanatta Rodrigues, de 23 anos.
Grafiteira e artista plástica, Wanatta usa essa expressão visual para que as duas realidades vejam uma à outra. Moradora do Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte, ela retrata mulheres da comunidade em telas para galerias e leva a realidade de mulheres negras de outros lugares para os muros do bairro.
Wanatta ressalta que o grafite é essencialmente uma arte política, negra e ligada a grupos marginalizados desde a origem, que remonta ao Bronx, em Nova York (EUA). "Como tudo que tem relação com as periferias, acaba criminalizado. O que acontece às vezes também com o grafite", diz.
Ela afirma, porém, que a beleza estética do grafite muitas vezes o protege desse processo, o que não acontece com outras manifestações, como o funk, que já é objeto de propostas de proibição no Congresso. Assim, manifestações musicais e visuais são, também, formas de resistência e de afirmação da juventude, especialmente a que mora nas periferias das grandes cidades.
Kdu dos Anjos, idealizador do Centro Cultural Lá na Favelinha, no Aglomerado da Serra, em BH, se considera um elo entre a cidade e a periferia. O centro promove atividades culturais e realiza vários eventos para os jovens da comunidade. Ele conta um pouco sobre essas formas de resistência:
Correção de desigualdades
Os processos históricos de discriminação empurraram negros e negras para situações sociais e econômicas desfavoráveis. Se o Brasil do século XIX, pós-abolição, não oferecia condições para que os ex-cativos saíssem da marginalidade, o Brasil do século XXI paga salários menores a essa parcela da população. Os que chegam às universidades, por outro lado, são mais brancos. As informações são do Censo 2010.
Portanto, torna-se prioridade ocupar espaços privilegiados de ensino para, assim, chegar a espaços de poder político e econômico. As políticas afirmativas têm buscado criar um ambiente propício para esse passo.
No Brasil, as cotas em universidades, implantadas progressivamente desde 2001, são vitórias importantes. A primeira a fazer isso foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), mas uma lei recentemente aprovada na ALMG também coloca Minas no mapa da busca de políticas de superação das desigualdades raciais.
A Lei 22.570, de 2017, instituiu o Programa de Assistência Estudantil na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) e na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). A norma atualizou as regras do sistema de reserva de vagas nas duas universidades.
Agora, em cada curso de graduação e técnico de nível médio, no mínimo 45% das vagas devem ser destinadas a candidatos de baixa renda que sejam egressos de escolas públicas – delas, no mínimo 53,8% deverão ser reservadas a negros. Serão oferecidos aos estudantes auxílios financeiros e serviços voltados à sua formação integral e ao aprimoramento do seu desempenho acadêmico.
O jovem Aruanã explica que esses auxílios são essenciais, já que não adianta oferecer a possibilidade de entrar nas universidades sem garantir oportunidades para permanecer no estabelecimento de ensino.
Acúmulo de desvantagens
Nas prisões, negros e negras representam mais de 60% dos detentos, de acordo com dados do Ministério da Justiça. É a chamada seletividade do Sistema de Justiça Criminal, termo utilizado para nomear a "peneira" que se inicia com a polícia e termina nos tribunais. As diferenças na atuação policial nas periferias e as dificuldades de acesso a advogados de defesa qualificados estariam entre as causas dessas estatísticas.
Entre as vítimas de homicídios, negros também são maioria. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras, segundo o Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Enquanto os casos de morte violenta de mulheres brancas são reduzidos, as mulheres negras veem as agressões contra elas aumentarem: a mortalidade de não-negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, enquanto o índice entre as mulheres negras subiu 22%.
Há quem questione se esses dados refletem desigualdades raciais ou apenas econômicas. O consenso nas pesquisas é de que há um acúmulo de desvantagens: ser pobre é ruim, ser pobre e negro é péssimo. O Atlas da Violência, por exemplo, descontou efeitos de variáveis como escolaridade e bairro de residência e constatou que, ainda assim, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças.
É para virar esse jogo que a juventude negra busca cada vez mais espaço nas universidades, na arte, na política, no mundo. "Nasci negra, periférica e mulher. Lutar não é opção, é necessidade", resume a cineasta social Natalie de Souza.
Esta é a terceira matéria de uma série especial sobre a juventude. A próxima será publicada nesta quarta-feira (23).