Uma das diretrizes específicas do Plano Estadual de Cultura determina que o governo apoie e amplie as ações de preservação do patrimônio imaterial, como o ofício de sineiro
Angelo Oswaldo assinou carta-manifesto sobre a política do governo federal para a cultura
O sineiro Lucas defende a substituição de sinos mais antigos, como o Jerônimo (à esquerda), na Igreja do Pilar, em Ouro Preto
Michele Arroyo frisa que a preservação da tradição também depende do engajamento da comunidade

Minas Gerais renova legislação da cultura

Governador sanciona plano decenal para o setor e propõe mudanças em lei de incentivo e regras do fundo estadual.

Por Rafael Pedrosa de Oliveira
01/08/2017 - 14:45 - Atualizado em 01/08/2017 - 15:43

No momento em que o governo federal acaba de empossar seu quarto ministro da Cultura em menos de um ano, após quase extinguir a pasta, Minas Gerais inicia mais uma etapa na renovação das leis que regem o setor cultural no Estado.

Nesta terça-feira (1°/8/17), foi publicada a Lei 22.627, que institui o Plano Estadual de Cultura. Também foi recebido pelo Plenário da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) o Projeto de Lei (PL) 4.450/17, do governador Fernando Pimentel, que institui o Sistema Estadual de Cultura, muda a Lei Estadual de Incentivo à Cultura e as regras do Fundo Estadual de Cultura (FEC).

Para o secretário de Estado de Cultura, Angelo Oswaldo, a renovação do marco regulatório da cultura, em Minas, ganha um significado especial neste momento, de resistência ao desmonte que ocorre em nível federal.

“Minas Gerais está implantando seu Plano Estadual de Cultura no momento em que há uma falência do Sistema Nacional de Cultura. Vivemos hoje o drama da fragilização do Ministério da Cultura, as políticas estão comprometidas”, afirmou Angelo Oswaldo.

No início de seu governo, em maio de 2016, o presidente Michel Temer chegou a extinguir a pasta da cultura, mas voltou atrás após pressões de representantes do setor. Desde então, nenhum nome consegue se firmar no ministério, que chegou a ficar mais de um mês sem titular, antes da posse do ministro, Sérgio Sá Leitão, que ocorreu em 25 de julho.

Nesse período, a Cultura foi deixada a cargo de um ministro interino, João Batista de Andrade, que chegou a declarar que a pasta havia se tornado “inviável” após um corte de 43% em seu orçamento.

A situação caótica levou os secretários de Estado de Cultura a divulgar uma carta, em junho de 2017, protestando contra a situação. O secretário mineiro, Angelo Oswaldo, foi um dos 19 dirigentes dos Estados e do Distrito Federal que assinaram a carta.

“É importante que os Estados e municípios tenham uma posição proativa de defesa das políticas públicas de cultura, em diálogo com todos os segmentos da sociedade. A responsabilidade que nos cabe nesse momento é lutar pela sobrevivência de políticas de cultura no País”, afirma o secretário.

Diálogo – Tanto Angelo Oswaldo como representantes da classe artística citam o Plano Estadual de Cultura como símbolo do diálogo entre setor público e sociedade, que resultou em um documento que reúne diretrizes e metas que orientarão a ação do Estado no setor durante os próximos dez anos.

“O plano todo é um esforço para ver se conseguimos uma respeitabilidade para o setor, haja vista o que acontece no Ministério”, afirma a presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado de Minas Gerais (Sated-MG), a atriz Maria Magdalena Rodrigues Silva.

Magdalena foi uma das centenas de participantes do Fórum Técnico Plano Estadual de Cultura, realizado pela ALMG em 2016 para discutir e aprovar o texto que serviu de base para o Plano Estadual de Cultura, contido no Projeto de Lei (PL) 2.805/15, de autoria do governador.

Foram 12 encontros no interior e mais uma plenária final, em Belo Horizonte, num processo que culminou em um texto final produzido com a ajuda da sociedade civil e aprovado pelos deputados em Plenário no dia 5 de julho deste ano.

O presidente da Comissão de Cultura da ALMG, deputado Bosco (PTdoB) ressalta que o projeto de lei foi aprovado na Assembleia por unanimidade. “É um momento muito esperado por toda a classe cultural de Minas Gerais”, afirmou o parlamentar, para quem a interiorização do debate sobre o plano decenal foi um dos pontos fortes do processo.

Plano exige que orçamento da Cultura seja ampliado

Tendo em vista a crise econômica que se abate sobre o País, não são nem um pouco acanhadas as metas e diretrizes do Plano Estadual de Cultura. Várias delas visam a ampliação dos investimentos públicos no setor. Um exemplo é o prazo de um ano para a regulamentação do parágrafo 6° do artigo 216 da Constituição da República, que faculta aos Estados vincular até 0,5% de sua receita tributária líquida ao Fundo Estadual de Cultura.

Outro item determina a realização de estudo para que os recursos do Fundo sejam ampliados até superarem em 25% aqueles destinados à renúncia fiscal, por meio da Lei de Incentivo à Cultura. Para se ter uma ideia da dificuldade dessa meta, o governo destinou R$ 92,3 milhões de renúncia fiscal para a cultura, em 2017, enquanto que o Fundo Estadual recebeu apenas R$ 10 milhões de recursos orçamentários.

O plano reúne ainda outras metas, tais como:

  • criação de uma plataforma virtual e colaborativa, com mapeamento georreferenciado, até o fim do segundo ano de vigência do Plano, de modo a permitir a identificação e cadastro de artistas, profissionais, agentes e eventos culturais, além de potenciais patrocinadores;
  • definição de um calendário institucional de Cultura, de forma virtual e integrada com a Secretaria de Turismo e municípios, no prazo de um ano;
  • realização de um inventário das comunidades quilombolas de referência da cultura afrodescendente localizadas no Estado;
  • identificação e implementação de circuitos turísticos ferroviários em todo o Estado, em ação integrada com a Secretaria de Estado de Turismo.

O secretário de Cultura admite que muitas das metas podem ser difíceis de alcançar no prazo proposto, mas ressalva que a própria lei prevê uma revisão do plano. A revisão, segundo o texto, pode ser feita por meio de uma comissão paritária que deverá monitorar a execução das metas. “A área da cultura é muito dinâmica. Tem que ter um período para revisões e adequações para não virar uma camisa de força, mas são necessárias metas, ou não saímos do lugar”, disse Angelo Oswaldo.

Tradição dos sinos de Minas é motivo de cobranças e preocupação 

Conhecida como a cidade dos sinos, pela força e preservação de sua tradição sineira, São João del-Rei (Região Central) registra uma lenda sobre o assunto que costuma chamar atenção.

Na década de 1930, um sino teria sido julgado, condenado e preso por matar um sineiro com uma pancada na cabeça. Alguns dizem que é apenas folclore, outros um exagero: a Igreja apenas teria “condenado” o sino a ficar dez anos sem tocar, retirando seu badalo para garantir o cumprimento da “pena”.

Fantasia ou não, a realidade hoje é que muitos sinos das cidades históricas de Minas cumprem uma pena até mais longa e severa: permanecem rachados, abandonados nos cantos das igrejas e são substituídos por gravações eletrônicas.

Dessa forma, o ofício de sineiro desaparece, assim como a “linguagem dos sinos”: código de dezenas de toques que propagavam os mais diferentes tipos de mensagens, religiosas ou não, tais como mortes, nascimentos, incêndios ou comemorações.

Uma das diretrizes mais específicas do Plano Estadual de Cultura determina que o Estado apoie e amplie as ações de salvaguarda, ou seja, de preservação desse patrimônio imaterial, registrado (tombado) pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2009.

Na cidade histórica mais famosa de Minas Gerais, Ouro Preto (Região Central), o estudante João Lucas Ferreira Basílio, de 23 anos, lamenta o desaparecimento progressivo da tradição sineira.

Hoje aluno do curso de Geografia, Lucas começou a tocar sinos por volta dos 12 anos de idade. “Toco porque gosto. Cresci escutando o toque dos sinos, vendo as pessoas pararem para ver os sinos tocando”, recorda.

Na avaliação do estudante, os sinos perdem para a atração exercida pelos smartphones e pela internet. “Hoje, só há uns dois da atual geração aprendendo o ofício. Na minha época, eram dez, até mais”, relata. Mesmo a população já não reconhece a função dos diversos toques tradicionais, que também vão caindo em desuso.

Além do desaparecimento do ofício, Lucas lamenta o abandono em que se encontram muitos dos antigos sinos. “A Igreja do Pilar tem quatro sinos rachados. A de São Francisco de Paula, dois rachados. Na Igreja de São Francisco de Assis, todos os sinos estão rachados”, afirmou.

A tradição conta que os sinos racham ao serem tocados por uma mulher. Lucas até brinca que um dos sinos da Igreja do Pilar teria rachado recentemente, após uma visita da atriz Fiorella Mattheis a uma das torres. Ele mesmo ressalta, no entanto, que a causa real é o desinteresse, tanto de mulheres quanto homens.

Lucas defende que os sinos mais antigos sejam substituídos por réplicas, mas é um projeto caro. Cada sino é batizado pela Igreja. O sino Jerônimo, da Igreja do Pilar, pesa duas toneladas e tem mais de duzentos anos. Apenas sua substituição custaria R$ 126 mil.

Iepha – Mesmo que a preservação da tradição sineira tenha sido assumida principalmente pelo Iphan, a presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), Michele Abreu Arroyo, considera positivo que o Plano Estadual de Cultura dê atenção ao tema. “É importante isso aparecer na lei porque ressalta a necessidade de cooperação entre órgãos federais, estaduais e municipais”, afirmou.

Michele ressalva, no entanto, que a preservação sempre depende também do engajamento da comunidade, das pessoas comuns. “O Estado não pode forçar as pessoas a participar”, disse.

Para ela, o principal ganho que a nova lei traz é possibilidade de ampliar as políticas de preservação do patrimônio no interior do Estado, colaborando para uma aproximação e colaboração entre órgãos estaduais e municipais. “Um exemplo foi o recente registro das folias de Minas, que envolve as comunidades tradicionais. São mais de 1,5 mil folias em todo o Estado”, ressalta Michele Arroyo.

 

Esta é a primeira matéria de uma série especial sobre o Plano Estadual de Cultura. A próxima será publicada na segunda-feira (7).