Pronunciamentos

VIRGÍLIO DE MATTOS, Membro do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Membro do Fórum Mineiro de Saúde Mental.

Discurso

Comenta o tema: "A Questão dos Mortos e Desaparecidos Ontem e Hoje - A Permanência da Tortura enquanto Instituição".
Reunião 32ª reunião ESPECIAL
Legislatura 16ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 12/09/2009
Página 45, Coluna 1
Evento Ciclo de debates: "30 Anos de Luta pela Anistia Política no Brasil".
Assunto DIREITOS HUMANOS.

32ª REUNIÃO ESPECIAL DA 3ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 16ª LEGISLATURA, EM 28/8/2009 Palavras do Sr. Virgílio de Mattos Bom-dia a todos, contemplando aí todos os gêneros e orientações sexuais; não sou politicamente correto, porque não é dessa maneira que respeitamos as diferenças de gênero. Eu me emocionei com a emocionada abertura do Deputado Durval. Quem conhece a prática do Deputado Durval Ângelo sabe bem que seu gabinete é um dos que mais trabalham nesta Assembleia Legislativa. Não conheço os demais, mas é um gabinete que, como diz o preso, marcha junto com ele, denuncia as ilegalidades, ao contrário do governo do Estado, notadamente este governo do Estado, que finge que não é com ele. Se essa emoção nos tomasse de verdade, companheiro Durval, ela nos travaria a voz, porque esses que estão aí não foram anistiados. Vários outros não foram anistiados. Os corpos insepultos dos companheiros da Guerrilha do Araguaia não foram anistiados; suas famílias não foram anistiadas. Foram emocionantes as falas do Betinho, das companheiras e das famílias que se manifestaram ontem, que disseram que um dos mais sagrados e antigos direitos da raça humana é enterrar os restos mortais de seus entes queridos. E essa dor não pode ser anistiada. Logo depois do golpe do golpe, depois de 13/12/68, havia uma dicotomia que até hoje permanece atual: se só o povo armado derruba a ditadura ou se só o povo organizado derruba a ditadura. Na manifestação de ontem na Praça da Liberdade contra essa parceria, essa patifaria público-privada de transformar o preso não mais em mercadoria, mas em matéria-prima, vimos bem a polícia do neto do avô. Em 1982, lembro-me bem - Bizoca também deve lembrar-se - de que a polícia do Tancredo era igualzinha à do Figueiredo e batia nas professoras. Havia, então, proletariado, e ela batia nos trabalhadores e batia com força nos estudantes. Ontem, afastadas as provocações do choque, se houvéssemos respondido a algumas delas, provavelmente o desfecho da passeata, sempre pacífica, teria sido outro. É uma questão permanente. Tivemos mais de 50 mortes, queimados, dentro do sistema prisional em Minas. Como anda, Deputado Durval, a apuração e a responsabilização? Tenho certeza de que V. Exa. e seu gabinete acompanham esse processo. Mas o que dizer dos demais Deputados? Alguns até justificam dizendo que preso bom é preso morto, de preferência sob as condições mais cruéis. E os números - não se iludam, não sejam ilusionistas iludidos, como determinados poderosos de plantão - não resistem a um mínimo cruzamento, simples, linear. Algumas entidades até analisam tais números para reforçar a baixa da criminalidade, coisa a que não assisto, o que vejo é um aumento impiedoso da tortura em Minas Gerais, em todo o Brasil e no mundo inteiro. É a tortura que proíbe o imigrante, é a tortura contra a mulher, é a tortura contra o negro. É a tortura, em poucas palavras, contra o pobre e miserável. Mas eu não posso deixar de lamentar, profundamente, a ausência do Prof. José Luis Quadros de Magalhães, que poderia falar sobre esse assunto para a maioria de vocês, jovens que não viveram esses tempos sombrios dos quais tiveram a sorte de escapar. É por causa desses mortos sob tortura que não foram anistiados que estamos aqui hoje podendo falar isso. Então, gostaria de iniciar com uma citação do Nicanor Parra: “De aparecer apareció, pero en una lista de desaparecidos.” Cito ainda Walter Benjamim: “Escrever a história dos vencidos exige a aquisição de uma memória que não consta nos livros da história oficial (...), fazer emergir as esperanças não realizadas (no) passado e inscrever em nosso presente seu apelo por um futuro diferente (...). O esforço (...) é não deixar essa memória escapar, mas zelar pela sua conservação, contribuir na reapropriação desse fragmento de história esquecido pela historiografia dominante”. A mais trágica das dores. Um dos temas mais difíceis de se tratar, ainda hoje no Brasil, é a questão dos mortos sob as mais impiedosas torturas e os desaparecimentos dos presos políticos durante o período da ditadura militar que, para mim, tem início em 1º/4/64 e só termina em 5/10/88, com a promulgação da Constituição Cidadã. Com vida foram levados, com vida os queremos de volta, entoam todos os amigos e familiares de presos políticos e dos presos desaparecidos no Cone Sul. Mas vejamos os antecedentes históricos desse 1º de abril mais triste de nossa história, porque era verdade a mentira: era o golpe. Mas as origens do golpe podem ser encontradas mesmo 10 anos antes, quando Getúlio Vargas sai da vida para entrar na história, dando um tiro no próprio coração e adiando o movimento de avanço dos golpistas udenistas, ufanistas, que pululam por aí ainda hoje como indigestos cogumelos, para dizer elegantemente. Antigas pragas cruéis essas de gafanhotos e bacharéis. Mas vamos adiante porque o tempo é como o cobertor do pobre, muito curto, e há muito o que relatar. É preciso dizer, calar é patifaria, é cumplicidade, é covardia. No auge da Guerra Fria, com o exemplo vivo de Cuba e os 12 apóstolos de um catecismo moderníssimo, ainda hoje atual, embora sua origem esteja mesmo na capacidade de luta e vitória dos mais fracos contra os mais organizados desde os primórdios dos tempos, a juventude do mundo inteiro e da América do Sul, em particular, luta contra o avanço da reação e da repressão ao movimento internacional pela conquista e ampliação de direitos. Se o medo persa era grego - e era! -, se o medo branco era negro - e era! -, o medo- pânico conservador passa a ser de algo distante e dialeticamente tão presente: o medo do comunista ateu, incendiador de igrejas e comedor de criancinhas. O Brasil não poderia nunca sucumbir a essa plêiade de bárbaros insensíveis que nem sequer iam à missa aos domingos, queriam sexo antes do sagrado matrimônio, uma reforma agrária digna do nome - que seguimos esperando até hoje! - e botar “pra fora a canalha, o Brasil a quem trabalha”. Fui buscar uma antiga palavra de ordem. E haveria pão, trabalho e paz para plantarmos. Convenhamos, dito de uma forma bastante elegante: já não se fazem mais ingênuos como antigamente. Segundo ponto: coisa do demônio. Mas o demônio não é uma invenção dos crentes? A tortura, nos primórdios, foi pensada para fazer sofrer e exorcizar o demônio, talvez não nessa ordem. Ou para se certificar da obra do demônio no corpo do autor. Impossível resistir. Iniciado o processo com a tortura, só a morte salvaria o corpo do “processado”. A morte vinha em partes, e o corpo respondia aos poucos e aos pedaços. Até que o fogo lento purificasse, e via do espetáculo também purgasse aos demais, o satanás encarnado no inimigo, no desafeto, no estranho, mesmo que vizinho, mesmo que próximo. O inimigo comum vai se transformando em outros, em outro. No diferente, no distante, no ausente. Mas não temos o tempo necessário para explicar o percurso dessa certeza: o demônio é um invenção dos crentes, só muda de nome ou de lado. O processo é o instrumental utilizado para a prova da culpa, em sentido leigo, do agente. Até que o fogo consiga extirpar não só a carne e os restos, mas, sobretudo a capacidade de memória e de lembrança, de preferência para sempre. Houve dois iluminados, de dois tempos sombrios e distintos. Um era Cesare de Bonesana, o bom Marquês de Beccaria, iluminado iluminista, que se perguntava qual seria o fim político das penas, para responder, em seguida - cito “Dos Delitos e das Penas”, pág. 70 -: “O terror dos outros homens. Mas que juízo deveremos fazer das carnificinas secretas e privadas que um uso tirânico reserva tanto ao culpado quanto ao inocente?”. O outro é Hélio Pelegrino, um grande pensador da psicanálise e da sociedade e, ao mesmo tempo, um fervoroso católico, que cria na transubstanciação da hóstia, na ressurreição da carne e que o homem pudesse vir a ser amigo do homem. Em seu “A Tortura Política, a Burrice do Demônio” narra bem o estraçalhar dos corpos e sobretudo das mentes, não só do torturado em si, mas especialmente daqueles que, não tendo sido torturados diretamente, aguardam a vez, sem direito a voz e sem direitos, apenas ao cruel processamento doloroso do silêncio, que é a prática da tortura que fica impune. A idiota propaganda enganosa do direito penal, que diz que este opera produzindo prevenções positiva, negativa, especial e geral também é baseada no terror, ou seja, no terror do nosso sistema prisional infecto, nauseabundo e sufocante, que produzirá efeito de dissuasão em nossos jovens pobres e miseráveis. Obviamente, as falácias da teoria das prevenções nutrem-se de um velho ranço processual: a extorsão das confissões, cujas retratações em juízo, sob a alegação de ter sido o agente torturado na fase do inquérito policial, é desconstituída pelos julgadores, com as simplistas assertivas da inexistência de provas, ou de que todos dizem que foram torturados, ou de que alegar e nada provar é o mesmo que nada alegar, e outras. Obviamente, essas fórmulas jurídicas reproduzidas acriticamente não são aplicadas quando a palavra isolada do agente da repressão é aprovada, ou apresentada como prova cabal, ou “quantum satis” da participação punível do jovem pobre e miserável, sempre do jovem pobre e miserável. Voltemos à tortura política propriamente dita. Voltemos no tempo. Estamos em 1964, precisamente no dia 1º de abril. Alguns quartéis são tomados a tapa pelos golpistas, e outros, no grito, após rocambolescos desencontros, onde perigou por si mesma e quase se autodestruiu a chamada revolução redentora, em letras minúsculas, que começará a construir a sua vingança. Um dos traços desse golpe militar é a sua mesquinharia. Enfim, acontece a mais sórdida das vinganças: a prisão e a tortura impiedosa e longa dos inimigos políticos, sem qualquer tipo de limite nem a própria morte. Há tortura maior do que a negação do corpo para os ritos fúnebres, consagrados em todas as nações e crenças? Com o golpe dentro do golpe, que foi a edição do Ato Institucional nº 5, uma barbaridade sem precedentes na ordem jurídica do País, tornaram-se sem efeito todas as garantias legais. A ditadura mandava às favas os escrúpulos, como dizia o Cel. Jarbas Passarinho, e passou a prender, a torturar e a matar, até que, enfim, nós a derrotamos. Isso, sim, há de ser comemorado. A ditadura militar foi derrotada, mas a do capital ainda não, e tocamos os militares de volta aos quartéis, de onde nunca deveriam ter saído, com o rabo entre as pernas. Foram tempos muito sombrios. O medo reduzia as possibilidades, e as apostas eram sempre altas demais. Apostava-se a própria vida, e, em uma vacilação qualquer, a vida dos outros, como chegar atrasado em um encontro, por exemplo. Nunca se viu, com ares de legalidade, tanto despautério e cinismo. Suspensas as garantias do `habeas corpus´, varrida a amplitude da defesa e do devido processo legal, os presos eram sequestrados nas ruas, dentro das salas de aula e nas fábricas. E o processo, ou arremedo de processo, era comum a todos: torturas medievais, agora com os requintados ensinamentos da Guerra da Argélia e do Vietnã, e o clássico `assina aqui´. Depois, com pompa e circunstância, passavam pelo ridículo e patético processo das auditorias militares, em que os combatentes eram ridicularizados por não serem capazes de apresentar testemunhas de que iam à missa aos domingos. O corpo volta à cena da extração da verdade nos moldes do século XVIII, ou melhor, extração de informações que proporcionassem mais corpos para serem processados na extração de novas informações que proporcionassem mais corpos, “ad infinitum”, “ad nauseam”, “in nomine Dei”. “Ah, a luta de classes,/redonda e achatada nos polos/(onde enterrei os meus melhores anos/onde enterramos os amigos e os planos)”. A luta contra a subversão, que já foi a luta contra o demônio, contra o herege, contra o estranho, transformou-se na luta contra os pobres e miseráveis, que são impiedosamente torturados, literalmente, em qualquer contato com o sistema penal. Enquanto aqui discutimos, isso está sendo propagado, às centenas, aos milhares, em todas as delegacias de polícia do País, em todas as unidades prisionais do País. Se o subproletariado, consumidor falho, só tem no cárcere a contenção de seu desagradável “handicap”, de pouco ou nenhum poder de compra, a proteção do patrimônio das classes dominantes, via estado penal e poder repressivo público e privado, será a atividade que mais crescerá, mesmo durante os períodos cíclicos de crise do capitalismo. Vai gerar fabulosos lucros e criará um multidão de atingidos e, o horror, uma variada e aziaga multidão de atingíveis no retorno garantido ao cárcere. Uma indústria do controle total nasce a partir do autoritarismo e tem um laboratório teste no cone sul e floresce. A experiência da tortura sistemática, impiedosa, brutal, acumulada na guerra contra os pobres ou contra os jovens pobres, o que não é o mesmo, embora produza efeito igual, vai seguir uma sofisticação proporcional à importância social daquele que é torturado. Não é mais necessário que a tortura seja secreta, discreta, clandestina. A certeza de que haverá tortura é algo sempre presente no imaginário do preso. É vendida pela mídia, é tolerada pela Justiça, é incentivada pela sociedade. Pós-prisão e processo, ocorre a tortura contra os familiares que insistem em não abandonar o preso. Nas visitas, nas informações e depois na progressão de regime e soltura do amigo ou familiar, o trato com o sistema judicial prisional é sempre tenso, cheio de desconfianças, desrespeitos e dor, quer na sonegação de informações, quer na tortura da revista vexatória ou na transformação imediata de pertencente às classes perigosas, uma vez que alguém do núcleo familiar tem ou teve contato com o sistema penal. Como se ser parente de alguém preso fosse, por si só, crime. É a campanha do Conselho Regional do Serviço Social: ser familiar não é crime. Desde 2001, são documentados exaustivamente os casos de tortura como prática sistemática e generalizada - para citarmos a expressão de Nigel Rodley, relator da ONU para a análise da tortura no Brasil, em agosto de 2001 -, não só das polícias de Estado, mas também de grupos de segurança privada nos pontos do comércio, lojas de conveniência, supermercados, etc. De nenhuma punição legal se tem notícia. Desconheço, Deputado Durval Ângelo, algum agente policial cumprindo pena privativa de liberdade por tortura no Estado de Minas Gerais. Desconheço. Desde 1997, desconheço algum agente nessas condições. Tomara que essa minha ignorância seja contemplada, tomara que existam centenas de agentes que foram alcançados, processados, julgados, condenados e estão cumprindo pena e suas famílias são escrachadas, são esculachadas nas revistas vexatórias. Não tenho notícia sequer de um, Deputado Durval Ângelo. O Sr. Presidente - As três primeiras confirmações de condenações pela Lei de Tortura no Superior Tribunal de Justiça são de Minas. Hoje, cerca de 10 Agentes Penitenciários estão cumprindo pena por tortura. Os últimos estão ligados a mortes de Araguari. O Delegado Marco Túlio Fadel foi a maior condenação por tortura, foi condenado a 17 anos e 10 meses, mas o Superior Tribunal de Justiça reduziu a pena para 15 anos e 4 meses. Sete policiais foram presos na última quinta-feira, em Medina, entre eles um oficial, um Tenente. O Juiz está sendo tremendamente execrado. No nosso “site” está o discurso de solidariedade ao Juiz, que fiz na última terça- feira, pois está sofrendo ameaças. Mas os sete policiais estão presos. No hipercentro, dos 15 policiais condenados, 4 estão presos. Na associação por tráfico, havia também a questão da tortura. São poucos exemplos em relação a um conjunto muito maior de casos que chegam à Comissão de Direitos Humanos. Ontem eu disse que, somente nesta semana, houve três casos de tortura, incluindo esse de tortura de uma criança de 14 e de outra de 16 anos. Como disse um preso com uma pena de 200 anos de condenação, durante a visita feita pela Comissão de Direitos Humanos àquela masmorra, ainda nos bons tempos da Furtos e Roubos: “Nós cometemos crime mesmo, devíamos estar aqui dentro. Mas fulano e sicrano, que estão aí fora, fizeram muito pior que eu. Inclusive, a droga que vendi era dele, mas ele não está aqui dentro conosco. Acho que deveriam inverter-se os papéis”. Muitas vezes, essa é a situação que vivemos. Os casos são muitos. Hoje temos o Colegiado das Corregedorias, do qual a Comissão de Direitos Humanos faz parte, assim como o Dr. Rodrigo Filgueira, do Ministério Público. Estamos conseguindo algumas ações por intermédio do Colegiado, de que participamos. Mas, no conjunto, o número deve ser maior. O Sr. Virgílio de Mattos - Obrigado, Deputado. Essa postura de pequena punição legal, atualizemos o texto, não é algo excepcional, episódico ou a ser debitado na conta de alguns excessos. É política pública no trato com preso ou com suspeito. Observe-se a boa análise de Tânia Kolker: (- Lê:) “No Brasil, a tortura coexiste com a ordem constitucional. Abrigada pelos altos muros, pela aprovação implícita da sociedade, pela leniência ou pela conivência das autoridades, pelo silêncio atemorizado de vítimas e testemunhas e, portanto, pela certeza de impunidade, essa prática, realizada justamente por aqueles que deveriam ser os responsáveis pela aplicação da lei, na verdade é muito comum no sistema penitenciário brasileiro. Mais que um método investigativo ou de punição que excepcionalmente escapa ao controle da lei, a tortura continua a ser uma máquina bastante ativa e funcional. Desde o dia em que entram na delegacia até o último dia de cumprimento da pena, os presos convivem com variadas formas de tortura, geralmente desencadeadas por motivos banais, muitas vezes aplicadas coletivamente e não raramente presenciadas por várias testemunhas. O pacto de silêncio entre aqueles que presenciam as torturas diuturnas sem estarem diretamente a elas ligados, quer na qualidade de torturados, quer na condição de torturadores, não esconde apenas um espírito de corporação, mas é condição de sobrevivência entre grupos. Quase sempre invisível ou de difícil visualização para o mundo de fora do cárcere, a tortura é justificada por certa camada da população envenenada pela mídia sensacionalista de “mondo cane”, aplaudida pelas vítimas de crimes contra o patrimônio e aqueles que não têm qualquer consciência de classe. E não só aqueles, mas os simples consumidores que podem vir a ser alvo da atabalhoada distribuição de renda forçada que os nossos jovens têm praticado. Os torturadores em geral são processados por abuso de autoridade, maus-tratos, lesões corporais, quase sempre uma espécie de eufemismo penal quando se trata de “um dos nossos que se excedeu um pouco”, quase nunca pelo crime de tortura que se aperfeiçoa, de acordo com a Lei nº 9.455/97, com a produção de qualquer sofrimento físico ou mental na vítima. O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, sendo punidos aqueles que, podendo evitá-lo, são omissos; é inscrito na Constituição da República, art. 5º, inciso XXXXIII. Evidentemente, não é uma questão que se resolva apenas com leis. Não bastam leis melhores nem a sua aplicação. É fundamental desconstruirmos, dentro e fora da academia, a canhestra noção de se poder cogitar de tortura para evitar um mal maior ou mesmo a ação em dogmática saída de legítima defesa da vítima, que diabo seja isso. Que dizer do grau moderado de pressão psicológica ou física: nudez forçada com uso de capuz; isolamento e incomunicabilidade, aí incluídos advogados e familiares; privação sensorial; exposição a ruído excessivos; exposição prolongada a temperaturas extremas; posições dolorosas; ameaças - inclusive de tortura a familiares -; humilhações - aí incluídas também as de ordem sexual, etc. -, que é como a tortura é eufemicamente tratada pelo Estado de Israel, que a utiliza em profusão criminosa contra a população palestina? Que dizer da tortura defendida como necessidade, mundo afora, pelos poderosos que lucram com ela? Se se muda o foco da discussão: não pelo fim da tortura, mas para em que casos poderemos admitir a tortura de uns poucos para o bem-estar da maioria, as relações sociais estariam regulamentadas pela sordidez do salve-se quem puder? Afinal, nenhuma garantia haveria sobre a possibilidade de vir a ser alcançado. A única dúvida possível é sobre o quando. A definição da Convenção da ONU Contra a Tortura, da qual o Brasil é signatário - portanto, tem entre nós força de lei -, é bastante simples para que possa haver qualquer margem a dúvidas: “Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público, ou outra pessoa no exercício de suas funções públicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência”. A definição é de uma clareza solar. Assim, se você está tranquilamente dizendo que esse problema, o da inacreditável permanência da tortura - agora com a justificativa acadêmica da prevenção contra o terrorismo -, não é problema seu, muito cuidado, pois a aquiescência omissiva é também alcançada pelo direito penal, obviamente se você é alvo, e é, no mínimo arriscado, passar a ser alvo da gigantesca máquina de fazer sofrer que parece funcionar por inércia; quando nada pela sua inércia em não fazer absolutamente nada a respeito. Enfim, Bizoca, vamos fazer valer a máxima pichada em algum muro do passado: “Nós, os vencidos, somos invencíveis”. “Pelo fim dos manicômios e das prisões!”. “Anistia”. “Todo preso - ainda - é preso político!”. Muito obrigado.