Pronunciamentos

SRA. SAYONARA NOGUEIRA, Representante do Brasil na ONG Transgender Europe - TGEU. Integrante da Secretaria de Comunicação da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil - Rede Trans Brasil

Discurso

Comenta o tema do Painel: "Mulheres, respeito às diversidades e garantias de direitos".
Reunião 6ª reunião ESPECIAL
Legislatura 18ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 21/04/2017
Página 49, Coluna 1
Evento Ciclo de Debates Pela Vida das Mulheres: Educação, Enfrentamento do Machismo e Garantia de Direitos.
Assunto CULTURA. DIREITOS HUMANOS. EDUCAÇÃO. (LGBT). MULHER. SEGURANÇA PÚBLICA. TRABALHO.
Observação No decorrer do pronunciamento, procede-se à apresentação de "slides".

6ª REUNIÃO ESPECIAL DA 3ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 18ª LEGISLATURA, EM 30/3/2017

Palavras da Sra. Sayonara Nogueira

A Sra. Sayonara Nogueira - Boa noite a todas. Cumprimento a Mesa, as deputadas presentes e falo também do avanço da Assembleia hoje, por convidar uma pessoa trans a assumir uma fala em um espaço de poder, sendo que a sociedade ainda acredita que o nosso espaço é somente a rua e a prostituição.

Hoje represento o Brasil na ONG Transgender Europe e faço parte da Secretaria de Comunicação da Rede Trans Brasil, que é a rede nacional de pessoas trans do Brasil, onde realizamos o mapeamento dos assassinatos que aconteceram desde 2008 até o ano passado dessa população que vem sendo cada vez mais dizimada.

Um fato que considero muito importante é vocês estarem reconhecendo a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero. Quando vocês abordam uma pessoa trans, referindo-se a ela como homossexual, esse é um termo extremamente... Não quero afirmar que seja pejorativo, mas não é adequado à nossa identidade, porque orientação sexual está muito ligada a desejo. Se o homem sente atração por outro homem, será gay; se a menina sente atração por outra mulher, será lésbica; se sente atração por ambos os sexos, será o quê? Bissexual. A identidade de gênero é algo constructo. Eu não dormi de calças e acordei de vestido no outro dia. Então, é uma condição constructa, social, psicológica, cultural e que resultará nessas três formações que usamos muito no Brasil que são as travestis, as transexuais e os transgêneros.

Outra coisa que também acho importante é nunca dizer: os travestis, mas as travestis, as transexuais. Quando tiverem dúvida, cheguem na pessoa e perguntem como ela quer ser tratada, assim sanamos todos os problemas.

Eu me identifico como travesti porque uso esse termo como bandeira de luta. A imprensa criou esse termo durante a ditadura militar, quando as travestis eram presas na rua por vadiagem. Ela criou o termo travesti para o homem que se traveste de mulher. Hoje resgatamos esse termo por ser um ato de resistência e uma bandeira de luta. O correto seria o termo transexual, criado pela medicina, numa tentativa de higienizar a nossa população: a travesti é aquela que está se prostituindo na rua, a suja, e a mulher transexual é aquela que é casada, que é acadêmica, que é professora da rede estadual. A própria sociedade começa a fazer uma diferenciação entre a nossa população. Gosto do termo transgênero porque é um termo guarda-chuva, que abriga toda a nossa população: travestis, transexuais e homens trans. Isso também é uma briga interna dentro dos movimentos.

Vim de Uberlândia para cá e acompanhei muitas falas. Fico pensando no tanto que o mundo ainda é binário. Normalmente as falas abarcaram o homem, a mulher, o homossexual e o heterossexual. E as travestis? Onde elas ficam? Elas continuam à margem da sociedade. Não existem políticas públicas para essas pessoas no Brasil. Criaram uma portaria do processo transexualizador até hoje, onde temos que ficar 10, 20, 30 anos na fila do SUS para esperar uma cirurgia ou o decreto do nome social, que, para mim, não passa de uma gambiarra de cidadania que as pessoas cis criaram para nós. O nome social existe para mim, que tenho uma formação acadêmica, que fui funcionária do Estado, professora durante 16 anos. Conheço as leis. Mas o meu par, que está se prostituindo nas ruas, ela não conhece, ou ele, no caso dos homens trans. Eles não reconhecem essa questão do nome social. O ideal seria uma lei de identidade de gênero por meio da qual tivéssemos o direito de retificar os nossos próprios registros, como eu fiz.

Acionei o Judiciário e consegui a retificação de todos os meus documentos no período de quatro meses. Tive que acionar o Judiciário porque é o Estado que manda no meu corpo. Acho muito bonito quando ouço, num movimento, as pessoas falando: “Meu corpo, minhas regras”. Mentira, meu corpo é do Estado. Quando apresentei uma ação judicial para retificar o meu nome, tive que entrar com laudo psiquiátrico, laudo psicológico e um exame de sangue demonstrando a quantidade de estrogênio que eu tinha no corpo para o juiz ou a juíza saber se eu era uma pessoa trans ou não. Então, quem comanda o meu corpo ainda continua sendo o Estado. Se eu contasse as histórias de 16 anos de sala de aula, falaria perversidades que fariam vocês ficarem de bocas abertas, mas esse não é o meu intuito. Não vou falar da minha vida, mas da situação da população em geral.

O IBGE e o Ipea nunca fizeram uma estimativa da nossa população. O IBGE ainda pecou no último censo, quando foi na porta da casa das pessoas, perguntou a orientação sexual e colocou, nos seus quadradinhos: “travestis e transexuais”. Não somos orientação sexual. Então, qual foi a nossa iniciativa na Rede Trans Brasil? Começar pelos índices de violência. Fiz parceria com algumas universidades e vou tomar a iniciativa de começar a fazer o censo dessa população no Brasil todo. Já são 170 filiadas em todo o Brasil que vão colaborar conosco porque não temos dados sobre a nossa população.

Somos expulsas de casa quando construímos nossos corpos, e não existe evasão de travesti e transexual nas escolas, mas expulsão. Não somos tratadas de acordo com o nosso nome e também somos proibidas de usar o banheiro feminino. Eu mesma, professora do Estado, concursada da rede pública, já fui proibida de usar o banheiro feminino da escola em que dava aula, na cidade onde resido. Então, enquanto houver esse tipo de machismo, a nossa população continuará sendo expulsa da escola.

Não existe mercado de trabalho nem política de geração de renda para essa população. Na verdade, o mercado que vai nos acolher é a rua. Mas, para mim, a prostituição é um mercado de trabalho formal, desde que não seja uma condição sine qua non para a sua sobrevivência. Ela pode até se prostituir, mas também terá o direito de se inserir no mercado de trabalho formal.

Desde que entrei para o TGEU, essa é a nossa formação. Somos uma equipe de 11 pessoas. Na nossa equipe, há pessoas trans do Paquistão, da África do Sul, da Uganda, da Tailândia, e fazemos treinamentos no mundo inteiro. A primeira foto, a foto de cima, foi um treinamento que fizemos em Banguecoque, e a segunda foto, um treinamento em Bolonha, na Itália. Esse é o comitê regional da América do Sul e da América Central. E aí vocês podem ver uma foto minha e da Ari Vera, do México. O Brasil e o México são países campeões em assassinatos de pessoas trans.

Por meio desse trabalho com o TGEU, em parceria com a rede trans, lançamos, neste ano, o dossiê Geografia dos Corpos das Pessoas Trans. Escolhemos esse nome porque a minha formação é dentro da geografia. Sou geógrafa, por isso escolhemos esse título. Desde 2012, comecei a trabalhar com os meus alunos, na sala de aula, a cartografia da resistência porque via que tinham uma dificuldade muito grande com o conteúdo da cartografia já que ela envolve muita estatística e matemática. Quis puxar um gancho dentro da sala de aula, mas não queria ser acusada de levantar bandeira, e começamos a mapear, desde 2012, com base nos dados do GGB, os assassinatos de pessoas LGBTs no Brasil. Fiz isso com os meus alunos para que tivessem maior facilidade para trabalhar com escalas, mapas e gráficos. Em 2015, dentro do próprio mapeamento, esses alunos do ensino médio descobriram que existiam travestis que foram assassinadas e notificadas como gays e homens trans igualmente assassinados e notificados como lésbicas. Então, a partir dessa ideia, dentro da sala de aula e em parceria com a rede TGEU, lançamos esse dossiê.

A primeira coisa que trabalhamos foi a negação da identidade de gênero na imprensa brasileira. No ano passado, aconteceram 144 assassinatos de pessoas trans, e, se você acompanhar o dossiê, descobrirá que todos os assassinatos são feitos com requinte de crueldade. Não se mata uma travesti com uma facada, mas com 100 facadas e 400 tiros por se tratar de um corpo objeto que está ali na esquina. Ao mesmo tempo que se trata de um corpo objeto, o homem brasileiro é o homem que mais consome pornografia de travestis no mundo. Então existe, ao mesmo tempo, a objetificação e a abjeção do corpo. Dos 144 casos, 111 notícias que foram reportadas pela imprensa não respeitaram a identidade de gênero. Não temos direitos sociais e políticas públicas durante toda a nossa vida e ainda somos desrespeitadas na morte e enterradas como indigentes. Esse é o tipo de matéria que sai na imprensa quando uma travesti é encontrada morta: “Homem com roupas femininas é achado morto”; “Traveco é encontrado morto”. É dessa forma.

O dossiê funcionou? Funcionou. Neste ano já aconteceram 32 assassinatos, e 98% da imprensa já mudou o seu tratamento, ou seja, já estão seguindo o dossiê. Foi preciso fazer essa provocação para a imprensa perceber que temos o direito de ser enterradas como todo mundo.

Na incidência de suicídio, o Brasil ocupa a 8ª posição do ranking. Normalmente a média de casos ocorre entre 15 e 29 anos, sendo que o gênero feminino extrapola nessa questão do suicídio no Brasil.

Relativamente à violação dos direitos humanos, mapeamos, no Brasil, as agressões e casos de travestis que foram proibidas de usar o banheiro feminino. Então, mapeamos 54 casos. Desses, 58% aconteceram na Região Sudeste. Em Minas Gerais, foram quatro casos notificados pela imprensa. Só trabalhamos com casos reportados pela imprensa, e eles ocorreram em Uberaba, Uberlândia, Belo Horizonte e Juiz de Fora.

Quanto às tentativas de homicídio, 52 casos foram mapeados. No Nordeste, esses casos avançam com 29%; e, no Sudeste, com 27%. A imprensa notificou apenas um caso em Minas, em Uberaba.

Em relação aos assassinatos, foram mapeados 144 casos. Vocês verão que o Brasil está em 1º lugar; em 2º vem o México; e, em 3º, vêm os Estados Unidos.

Assassinatos de 2008 a 2016. Em 2008, houve 57 assassinatos e, em 2016, subimos para 144. Vemos uma elevação muito grande desses crimes.

A expectativa de vida. Trabalhamos também com gráficos e tabelas. Percebem-se casos de travestis e transexuais de 14, 15 e 16 anos que foram assassinados. É uma população que não ultrapassa os 30 anos de vida. A travesti quando morre ainda é culpada pelo seu próprio assassinato porque vai ser julgada por estar na rua se prostituindo, vai ser acusada de ter envolvimento com entorpecentes. Mas a sociedade esquece que a gente vive em um ciclo vicioso de exclusão. A própria sociedade empurra essa população para viver o que vive na rua.

Trabalhamos também com um gráfico de tipo de armas. A arma que mais notificamos foi a arma de fogo, seguida pela arma branca, que seria a faca ou o facão. Mas nunca ocorre só uma agressão. O dossiê possui quase duzentas páginas. A travesti nunca é assassinada só com uma agressão, envolve outras agressões – enforcamento, queima dos genitais –, para depois chegar ao desfecho final.

Quanto ao gráfico das regiões, tive um problema no gráfico. O Nordeste sai na frente com 33%, seguido da Região Sudeste. E Minas Gerais ocupa a 5ª posição no assassinato dessas pessoas trans.

Foi muito complicado construir esse slide. A cada dia que eu o montava, ia fazer a notificação e apareciam um, dois ou três casos. Quando o montei, havia 22 ou 23 casos. Acabei de fechá-lo, agora mesmo, com 33 casos de assassinatos neste ano. Os casos de agressão e de tentativas de homicídios já estão atingindo metade dos casos que aconteceram no ano passado, e ainda estamos no mês de março.

Este é o site que administro: redetransbrasil.org. Quem quiser pode acessá-lo. Lá há todo o histórico da sua construção, desde a parceria que foi feita com a ONG Transgender Europe até as metodologias que desenvolvemos para mapear os dados e, aliás, aplicar esse censo a partir de agosto deste ano. Muito obrigada.

A presidente – Obrigada, Sayonara, pela exposição. Convidamos agora a Sandra Silvestrini.