Pronunciamentos

SÉRGIO ADORNO, Coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo - USP.

Discurso

Comenta o tema: "Administração de recursos humanos do sistema de justiça criminal".
Reunião 32ª reunião ESPECIAL
Legislatura 15ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 13/09/2006
Página 31, Coluna 4
Evento Seminário Legislativo: "Segurança para todos - Propostas para uma Sociedade mais segura".
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA.

32ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 15ª LEGISLATURA, EM 22/8/2006 Palavras do Sr. Sérgio Adorno Bom dia. Quero, inicialmente, agradecer ao convite que me foi formulado para participar do seminário “Segurança para todos”, promovido pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais. Sinto-me muito honrado e quero cumprimentar a todos na pessoa das Deputadas, dos Deputados, dos demais membros da Mesa e, particularmente, do meu colega Prof. Sapori, pela coragem de realizar essa dupla tarefa de sociólogo e executante de políticas públicas. Desde já, quero agradecer. Não sou especialista na questão de recursos humanos, sou sociólogo e venho pesquisando as políticas públicas de segurança há alguns anos. Também há alguns anos, o Núcleo de Estudos da Violência da USP vem trabalhando essa questão, que é um desafio extremamente importante. Como sociólogo, não consigo entender recursos humanos como uma questão separada, diferenciada em relação às chamadas políticas públicas de segurança, políticas públicas penais. Não basta dizer que é preciso ter recursos humanos mais bem preparados e que é preciso melhorar os salários. Temos de entender o que aconteceu neste país, quais os recursos humanos de que dispomos e quais os desafios futuros. Tentarei ser breve para contextualizar a questão dos recursos humanos, abordando uma ou duas questões que contribuam com este seminário. Não falarei exclusivamente sobre São Paulo, embora faça algumas referências ao Estado, até porque estou muito sensibilizado com a sua atual situação de violência. Falarei sobre o que vem acontecendo no Brasil, no âmbito das políticas de segurança do governo Fernando Henrique para cá. Pelo bem ou pelo mal, desde o governo Fernando Henrique, houve uma mudança significativa nessa área, ou seja, a política de segurança se transformou numa matéria política importante. Não vou me referir aos governos anteriores. O governo Fernando Henrique elaborou um programa de governo que resultou no livro “Mãos à Obra”, em que fez um diagnóstico dos problemas nacionais, dos desafios nacionais, entre os quais, dedicava um capítulo bastante substantivo à segurança e à justiça. O capítulo é um diagnóstico dos problemas de segurança, com a proposição de metas e estratégias de ação. Seria bom lembrar que, de alguma maneira, esse diagnóstico reúne uma série de questões que já tinham sido apontadas por pesquisadores brasileiros, inclusive algumas de Minas Gerais. Aliás, quero lembrar o saudoso Prof. Antônio Luís Paixão, que foi uma escola para todos nós, que pesquisamos nessa área, e, certamente, fez discípulos. Hoje Minas Gerais é um centro de referência, de reflexão, de pesquisa e de intervenção no campo da segurança pública. Segundo o diagnóstico do governo Fernando Henrique, os principais problemas eram: insuficiência do policiamento ostensivo, quadros humanos malpreparados, métodos de investigação policial ultrapassados, inquéritos atrasados e registros de ocorrências engavetados. Particularmente, no caso da Polícia Federal, apontou problemas como a escassez de efetivos e equipamentos, as distorções salariais e até mesmo o sindicalismo radical, que comprometia a disciplina e a hierarquia nessa organização policial. Na esfera judicial, identificou um déficit nos quadros de Promotores e Juízes, ressaltou o envelhecimento do Código Penal, o congestionamento dos Tribunais e a morosidade da Justiça. Além do mais, destacou a “superpopulação carcerária”, reconhecida como a escola de pós-graduação para os pobres. Diríamos que esse diagnóstico, de certo modo preciso, não era um diagnóstico novo. Muitos de nós que lidamos nessa área reconhecíamos esses problemas como importantes. Mas o mais importante foi reuni-los em um documento, para se pensar em medidas de ação. A proposta do governo Fernando Henrique Cardoso era um programa que insistia em lei e ordem. Ele dizia: “A retomada sustentada do crescimento econômico e a distribuição da renda, objetivos maiores, são condições necessárias, mas não são suficientes para fazer reverter a escalada da violência. E não se trata de escolher entre Estado policial e Estado de bem-estar social. Primeiro porque não há democracia sem obediência à lei, o que, em última análise, depende do poder coercitivo do Estado. Segundo porque a capacidade do Estado de promover bem-estar depende, em larga medida, do seu poder coercitivo. Pelo que parece, o diagnóstico e o encaminhamento eram afinados com uma concepção moderna de segurança, digamos assim. Para realizar essas metas, o governo Fernando Henrique fixou quatro linhas de ação - aliás, algumas delas acabaram de ser nomeadas: estreitar a cooperação com os Estados e Municípios, na defesa da segurança pública; promover justiça mais rápida e acessível a todos; fortalecer os órgãos federais de segurança e fiscalização; e implementar e aperfeiçoar o sistema penitenciário previsto na legislação vigente. Cada uma dessas metas vinha acompanhada de linhas de ação, que não vou repetir. Muitas delas foram implementadas, como a criação do Juizado de Pequenas Causas Criminais; o Conselho Nacional de Justiça; a reforma, a ampliação e o reequipamento de penitenciárias; a implementação de dispositivos do Código de Execução Penal relativos ao cumprimento da pena nos regimes aberto e semi-aberto. Enfim, algumas dessas medidas foram realizadas, e outras, não. O governo que se seguiu, o atual governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não modificou radicalmente essas políticas. Na verdade, há continuidade entre as políticas esboçadas anteriormente e as políticas do atual governo. O governo Lula partiu de uma crítica ao governo anterior - há que se reconhecer isso -, e essa crítica insistia em dois pontos. De um lado, reconhecer que o governo Fernando Henrique Cardoso tinha uma enorme capacidade propositiva, mas uma baixa capacidade de implementação de projetos. Então, restava-lhe implementar projetos. O segundo ponto era uma medida provavelmente muito ligada à tradição do partido que elegeu o atual Presidente. Tratava-se de descentralizar essas políticas de alguma maneira e, sobretudo, realizá-las a partir de conselhos: Conselho de Política Penitenciária e uma série de conselhos que pudessem, de alguma maneira, atestar a presença dos cidadãos na formulação das políticas. Termino a parte inicial da minha exposição perguntando por que um programa como esse, tão articulado, bem-feito, e ainda com continuidade, que é algo muito difícil na história político- institucional do Brasil, não produziu resultados - ou por que produziu resultados tão aquém dos esperados pela sociedade brasileira, sequiosa de ter os seus principais bens, vida e patrimônio, protegidos. Os governos vêm atuando num quadro político-institucional de muita adversidade, quer dizer, movidos por pressões externas muito acentuadas. A principal delas - muitas vezes mal-compreendida - é o crescimento dos crimes. Faz 20 anos que o Brasil vem vivendo um acelerado crescimento de todas as modalidades de crime, em particular dos chamados crimes violentos, aqueles que envolvem graves ameaças à integridade física e à vida das pessoas. Aliada a isso, uma mudança na qualidade e no perfil da criminalidade. O crime organizado, o crime-negócio, assim chamado por uma antropóloga muito conhecida no Brasil, a pesquisadora Alba Zaluar, contaminou o perfil da criminalidade em nosso país: tráfico de drogas e sua conexão com outras atividades, tais como lavagem de dinheiro, contrabando de armas, roubos e extorsão mediante seqüestro. Embora nem sempre os mesmos delinqüentes estejam envolvidos em todas essas operações, há uma ligação muito clara entre essas atividades. Essa mudança de perfil teve impacto muito grande no sistema de justiça criminal, porque o crime cresceu, mudou de qualidade, e o sistema de justiça criminal, como um todo, continuou operando como fazia há 30, 40 anos. Assim, aumentou-se a distância entre a evolução da criminalidade na sociedade e a capacidade do poder público em conter a violência, respeitando o Estado Democrático de Direito, respeitando as leis. Isso provocou uma desarticulação interna acentuada no sistema de justiça, que se tornou cada vez mais fragmentado. Cada agência reforçou sua lógica corporativa: a Polícia Civil, a Polícia Militar, o Ministério Público, os Tribunais de justiça, e o sistema penitenciário acabou tributário de toda essa lógica. Não pude assistir à exposição do Prof. Sapori, mas ouvi a exposição do Dr. Herbert, que deixa claro o esforço de tentar fazer reverter a fragmentação e integrar todos os órgãos que compõem o sistema de justiça criminal. Esse é o primeiro grande desafio: mudou o perfil da criminalidade, e isso desarranjou o sistema de justiça criminal no Brasil. Um indicador muito significativo disso são as taxas de impunidade. Não há avaliações muito seguras sobre a evolução das taxas de impunidade no Brasil, não há estudos cumulativos. Acabei de fazer um estudo em São Paulo: estudei cinco modalidades de crimes violentos, comparando-os a três de crimes não violentos. Considerei cerca de 340 mil boletins de ocorrência criminal relativos a crimes violentos registrados em uma região do Município de São Paulo entre 1991 e 1997, e apenas 9,5% transformaram-se em inquérito policial. Inquérito policial não implica necessariamente investigação ou abertura de processo, que resultará em sentença judicial que pode vir a ser condenatória. No final do processo, dependendo da natureza do crime, as taxas de punição são extremamente reduzidas, principalmente se comparadas a experiências de outros países. Isso gera um sentimento comum na população de que os crimes estão-se tornando cada vez mais violentos e não são punidos, o que contribui também para reduzir a crença dos cidadãos nas suas instituições de justiça, como polícia, tribunais e sistema penitenciário. Não é sem razão que certos segmentos da população brasileira acreditam que a única possibilidade de se resolver a criminalidade é com mais repressão e políticas privadas de segurança, ou seja, quem puder que se proteja. O segundo constrangimento que acho extremamente importante relatar aqui é o fato de que ainda temos uma concepção de segurança muito ultrapassada, aquela idéia de que o papel da polícia é caçar, prender e tirar os bandidos das ruas. A criminalidade mudou, se modernizou e, hoje, apóia-se em mecanismos tecnológicos disponíveis, como internet, centrais telefônicas, telefonia celular, lavagem de dinheiro, sistema bancário. Ela se modernizou, mas o sistema de segurança continua, em grande parte, funcionando ainda com um modelo extremamente ultrapassado e convencional. Isso significa também que a nossa concepção de segurança está ultrapassada. No mundo inteiro discute-se hoje a idéia de segurança cidadã. O que significa segurança cidadã? Que os cidadãos devem ser protegidos. Segurança pública é um direito humano fundamental, significa dizer que não há política de segurança fora do contexto da proteção dos direitos humanos, e a política de direitos humanos não pode prescindir de lidar com lei e ordem, de discutir o problema da repressão e do modelo de repressão que seja compatível com o Estado Democrático de Direito. Essa é uma questão que me parece extremamente importante. Um terceiro aspecto para o qual chamo a atenção é o fato de que falta à administração pública brasileira a discussão de quanto custa a segurança efetivamente. Se observarmos, os recursos de segurança pública cresceram, embora, talvez, não na proporção da sua necessidade. Mas houve, ao longo dos últimos 20 anos, um grande crescimento do volume de recursos destinados à segurança. Ora, o que não há? Não há uma equação política entre o volume de recursos, os meios utilizados e o resultado final. Não há uma contabilidade de custos e benefícios. Não há uma contabilidade de resultados. Na área de saúde pública, por exemplo, se necessitarmos vacinar a população, precisaremos de tantos milhões de reais para a realização da tarefa. Sabe-se que a meta é vacinar 90% da população e que ela tem de ser cumprida. Isso significa que você contabiliza o custo “per capita” da campanha de vacinação e do seu resultado. Nós não temos uma relação de quanto custa, por exemplo, efetivamente, manter a segurança do cidadão, mantê-la “per capita”. Há, evidentemente, algumas análises setoriais, mas ainda não contaminam, vamos dizer, a imagem do administrador público. Fecho meu segundo bloco dizendo, basicamente, o seguinte: como não há uma efetiva análise desses constrangimentos e de seu peso constitucional - há outros constrangimentos certamente -, sob o ponto de vista do governo federal, tenho discutido muito a questão do pacto federativo. O pacto federativo é, sem dúvida alguma, um elemento de dinamização da vida política, democrática, mas, certamente, na segurança pública, precisaria ser refletido e repensado. Acho que o papel do governo federal, na área de segurança pública, deve ser mais do que certamente é hoje. Não que ele deva interferir nas políticas estaduais, mas deve ter um papel de coordenação, provavelmente mais propositiva. Mas essa é uma outra questão. Apenas quero dizer que, muitas vezes, ao não levarem em consideração esses constrangimentos político- institucionais, as políticas de segurança e justiça, inclusive de recursos humanos, acabam sendo formuladas um pouco ao sabor das necessidades locais e, muitas vezes, do conhecimento técnico localmente acumulado. Não acho que isso deva ser desprezado. Não acho que o saber técnico, os diagnósticos técnicos locais devam ser desprezados, mas creio que é preciso ultrapassar essa análise local na medida em que o próprio problema a ser enfrentado não é mais exclusivamente local. É um problema metropolitano, é cada vez mais regionalizado e, em muitos aspectos, envolve o País, quando se fala em crime organizado. É um problema que envolve fronteiras e, portanto, não pode ser tratado como se fosse exclusivamente desse ou daquele Estado, dessa ou daquela região metropolitana, desse ou daquele Município, ainda que essas políticas tenham como base Municípios, regiões e Estados. Entrarei no terceiro elemento da minha exposição, dizendo o que os governos têm feito, de um modo geral - e não estou me referindo a um deles -, para conter o crescimento dos crimes e enfrentar a questão da segurança. Têm feito uma série de medidas, e aqui não vou fazer um balanço delas. Reconheço que há muitos avanços, se compararmos o que era a área de segurança antes do retorno do Brasil ao Estado Democrático de Direito e o que é a partir da democracia. Não resta dúvida de que houve avanços, apesar da magnitude dos problemas. Há uma forte resistência à mudança na área em do sistema de justiça criminal. Essa é uma área em que infelizmente os autores têm enorme dificuldade de promover mudanças, inovação, alterar valores anteriores e promover mudança substantiva, algumas delas até radicais. Se eu olhar o Brasil no seu conjunto, quando se fala em política de segurança, as principais questões que aparecem são sempre as mesmas: reaparelhamento da polícia, mudança na legislação, contratação de novos agentes, policiais. Não se sai desse debate. Ele é reiterado. Não é que ele não seja necessário, mas hoje ele é absolutamente insuficiente. Só o reaparelhamento, viaturas, armas, expansão do quadro de funcionários são insuficientes. É preciso inovação. No campo dos recursos humanos, é preciso que se repense o processo de formação especializada. Vamos tomar com exemplo alguns pontos. É preciso que as escolas de administração penitenciária e as academias de polícia estejam com formação cada vez mais especializada e atualizada. Basta ver que, no campo da administração penitenciária, não há escolas em todo o País. Há Estados que nem sequer têm uma escola de administração penitenciária. Mas estou querendo dizer algo mais. Hoje a criminalidade especializou-se. É preciso que haja uma formação que atenda a essas especificidades, que tenhamos recursos humanos que possam transcrever informações em análises, que devem ser operadas num sistema de inteligência. Hoje há um grande processo de coleta de informações. Reconheço que melhorou esse sistema, que há banco de dados, que se faz todo um esforço para integrar os diferentes bancos de dados. Não basta saber a informação, é preciso saber trabalhar, analisar essas informações e construir cenários futuros de intervenção. Acho que esses recursos humanos ainda não estão preparados para isso. Quero terminar dizendo que houve grandes avanços no Brasil, mas acho que ainda há o desafio da inovação. Esse desafio significa a formação de recursos humanos melhor preparados, formados, dotados de uma formação especializada moderna, melhores salários, com condições de trabalho mais adequadas, com atendimento. Temos defendido estudos sobre a violência. É preciso ter um atendimento psicológico, porque é uma área em que se trabalha com alto grau de estresse. Se não tivermos profissionais que sejam permanentemente assistidos, vamos ter problemas. A assistência psicológica não é porque há problemas psíquicos. É preciso que o profissional tenha condições de trabalho adequadas. Os erros vão persistir. Agradeço a oportunidade de estar aqui. Muito obrigado.