Pronunciamentos

RONALD DE OLIVEIRA ROCHA, Sociólogo e membro da Fundação Perseu Abramo.

Discurso

Comenta o tema: "Os Diferentes Olhares sobre 1500".
Reunião 78ª reunião EXTRAORDINÁRIA
Legislatura 14ª legislatura, 2ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 08/04/2000
Página 20, Coluna 1
Evento Ciclo de Debates: Repensando o Brasil 500 Anos Depois.
Assunto CALENDÁRIO.
Observação Participantes dos debates: Kátia Greco, Bruno Tôrres, Mauro Lúcia Gomes, Benedito Siqueira.

78ª REUNIÃO EXTRAORDINÁRIA DA 2ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 16/3/2000 Palavras do Sr. Ronald de Oliveira Rocha Bom-dia. Inicialmente, gostaria de cumprimentar os componentes da Mesa, em particular, o Presidente da Assembléia Legislativa, Deputado Anderson Adauto; o coordenador dos debates, Deputado João Leite; o Sr. Silvino Ferreira Leite, Cônsul desse extraordinário e amigo país que é Portugal, na cidade de Belo Horizonte, e - permitam-me chamá-los assim - os companheiros Wilson Pataxó e Diva Moreira, que trazem para esta Mesa uma contribuição de inestimável valor. Gostaria também de parabenizar a Assembléia Legislativa pelo fato de abrir um debate acerca dos chamados 500 anos. E abrir o debate na contramão das comemorações oficiais que foram articuladas pelo Governo Federal e pela mídia. Aqui, não há imposição de valores nem de uma visão determinada. Aqui há uma discussão democrática, há um debate aberto, que permite o florescimento das várias visões e dos vários olhares acerca de nosso País, de seu passado, portanto antecipando e projetando suas tendências para o futuro. A campanha oficial em torno dos chamados 500 anos limita-se a repetir, à exaustão, o lema escolhido, “500 Anos de Brasil”, e a convidar os brasileiros a participarem como espectadores dessa comemoração superlativa de um suposto natalício do Brasil há 500 anos. As únicas concretudes dessa campanha se localizam no acento festivo e na exaltação de aspectos pitorescos das realizações populares. Contrastando com essa campanha vazia, gostaria de lembrar o perfil de um personagem fundamental da literatura brasileira, Macunaíma, traçado por Mário de Andrade, na sua obra-prima. Macunaíma é um personagem de uma rapsódia cabocla, brasileira. Não é aquele herói romântico, cheio de virtudes, postiço, é um anti- herói. É um anti-herói, gostem ou não nossos governantes atuais. Gostem ou não os magnatas da mídia, é um herói safado, moleque, sem compostura, que viola o senso comum dessa gente séria, ajuizada - como disse Darcy Ribeiro -, bem comportada, ganhadora de dinheiro, cheia de virtudes, mas, acima de tudo, servil. É esse personagem - Macunaíma - que pode ser o ponto de partida para nossa reflexão. Existe, na campanha oficial dos 500 anos, às vezes, de maneira explícita, às vezes, de maneira implícita ou embutida, quatro teses centrais, que são veiculadas pela mídia, pelo discurso oficial. Primeiro: a porção físico-geográfica onde se localiza hoje o Brasil, no centro-leste da América do Sul, teria sido descoberta pela frota portuguesa comandada por Cabral. É a primeira tese defendida pela campanha oficial. Por isso, o marco natalício do Brasil é a chegada da frota em 1500, portanto o Brasil teria 500 anos. A segunda tese é a seguinte: o chamado descobrimento do Brasil, 500 anos atrás, teria significado o início ou o nascimento do Brasil. Portanto, o Brasil teria 500 anos, a partir da chegada da frota de Cabral. A terceira tese: o processo de colonização dessa porção do continente se confunde conceitualmente com o processo de constituição da Nação brasileira. A quarta tese: a história do Brasil tem sido um processo meramente evolutivo e linear, desde a chegada de Cabral até hoje, nesses dias trágicos da globalização neoliberal. Eu queria trazer a seguinte contribuição para o debate: contrapor a essas quatro teses oficiais quatro antíteses muito claras. Primeira: o verdadeiro descobrimento do Brasil ou dessa porção físico-geográfica se deu há dezenas de milhares de anos. Quando a frota de Cabral aqui aportou, já existia, nesse território físico- geográfico, cerca de 5 milhões de indivíduos espalhados, de, mais ou menos, mil etnias diferentes, portanto várias famílias lingüísticas. Logo, esses 5 milhões de indivíduos que aqui chegaram, em levas sucessivas, provavelmente num intervalo mais brando da glaciação, pelo estreito de Bering, da Ásia, 37 mil anos atrás, são aqueles que chegaram em primeiro lugar nessa parte do planeta. Portanto, não faz sentido dizer que essa parte do planeta foi descoberta por uma expedição européia. Essa é uma visão eurocêntrica. Há algo de monstruoso nessa tese. Por quê? Todos sabemos que descobrir é um atributo humano. Os animais irracionais não descobrem, estão imersos na natureza. O ato de descobrir, de tomar consciência das coisas é especificamente humano. Se esses povos, se esses 5 milhões de pessoas que estavam aqui não descobriram o Brasil, é porque, logicamente, não teriam sido humanos. Essa visão dissolve as comunidades indígenas na natureza, como se fossem coisas, animais, árvores e assim por diante. Esse debate ocorreu no início da colonização, inclusive de forma teológica. Teriam ou não os índios alma? Teriam ou não sido criados à imagem e semelhança de Deus? No fundo, esse debate tem 500 anos. E, uma vez que a campanha oficial toma o partido de que o descobrimento se deu há 500 anos, toma também o partido dessa tese arcaica e conservadora de que os indígenas não teriam sido criados à imagem e semelhança de Deus, não teriam tido alma e, portanto, não são humanos. A segunda tese pode ser respondida da seguinte maneira: em 1500, não houve o nascimento do Brasil, mas apenas o início do processo de colonização desta parte do planeta. Quando o processo de colonização começou, obviamente, não havia, e por muito tempo ainda não haveria, uma nação nesta parte do mundo. Não havia mercado. O mercado, naquele momento e durante um século ou mais, limitou-se a pequenos entrepostos pontuais na costa leste da América do Sul. Não havia uma identidade cultural nem sequer lingüística. Não havia Estado. Havia um departamento ultramarinho de um Estado português, portanto uma sucursal de um Estado europeu. Não havia sociedade política. Havia uma extensão da corte européia. Como falar, portanto, em Nação ou em País nessas condições? Sequer havia, em 1500, um processo de consolidação avançado de nações na própria Europa. A Alemanha ainda não se tinha constituído como nação. A Itália, também não. O conceito de nação adquire uma importância no linguajar corrente somente na Revolução Francesa, portanto, no final do séc. XVIII. Mesmo na literatura, o termo “nação”, na acepção cultural do termo, só aparece entre os românticos, em particular com Fürte, na Alemanha, que pregava, no final do séc. XVIII, a unificação daquele país contra a dispersão feudal. Sequer havia uma nação alemã. Do ponto de vista da fusão da cultura com o Estado, o conceito de nação só adquire esse caráter no início do séc. XIX, na Itália, com Manzini, portanto, três séculos depois da chegada de Cabral ao Brasil e do início do processo de colonização. Como falar, então, que havia no Brasil uma nação, se sequer na Europa existiam nações consolidadas? Pelo menos, isso acontecia em grande parte da Europa. Havia cidades, principados, feudos dispersos. Essa tese, portanto, é completamente equivocada. O Brasil não tem 500 anos. A terceira antítese: a Nação brasileira, o Estado-Nação, o Brasil como país e nação, só surgiu com o processo de independência. A idade do Brasil é a idade da Nação brasileira, e não mais. No interior do processo de colonização, começam a constituir-se os elementos embrionários de uma cultura nacional, de um mercado e de ideais de emancipação, ideais separatistas. No entanto, só no bojo da sociedade colonial madura é que esses elementos constitutivos adquirem uma influência e uma potência tal que se tornam capazes de gerar um salto de qualidade, o surgimento de um novo ser social. Isso se dá a partir do processo de independência. Se olharmos as últimas quatro ou cinco décadas da Colônia, veremos que, nesse lapso de tempo, relativamente curto, houve uma enorme riqueza, houve uma explosão cultural nas cidades. Temos o exemplo de Ouro Preto, de Diamantina. E essa explosão cultural sintetiza os elementos dispersos para constituir uma identidade no plano espiritual. Também nesse período, houve vários movimentos de caráter social e de emancipação. Tivemos, no final do séc. XVIII, a tentativa de revolta abortada em Minas, com Tiradentes; tivemos a Conjuração Baiana, logo depois; tivemos ainda a revolução de Pernambuco e tivemos a guerra de independência, com o epicentro na Bahia. Essa explosão cultural e essa agitação social e política tiveram um significado profundo: ali estava havendo o parto da Nação brasileira, nesse momento em que o reforço dos elementos constitutivos da Nação emergente pôde superar o colonialismo em crise e criar uma nova nação. Nesse momento, deu-se o nascimento do Brasil. Essa é a idade do Brasil. Portanto, o Brasil tem dois séculos e meio, não mais. Finalmente, uma quarta e última antítese. A história do Brasil possui conflitos e rupturas. Não foi uma história linear. Uma primeira ruptura, por exemplo, deu-se na pré-história nacional, com o encontro da modernidade ocidental européia com as etnias e populações que aqui estavam há dezenas de milhares de anos, a ruptura da sociedade primitiva rumo à sociedade de classes, rumo ao processo de colonização, que trouxe no seu ventre o genocídio, a dizimação de milhões de indivíduos, a escravidão. Aí deu-se uma primeira grande ruptura. Foi a crise final do processo de colonização e o surgimento do Estado-Nação. Portanto, deu-se o nascimento do Brasil enquanto País autônomo e enquanto Nação soberana, ainda que, mesmo assim, tenhamos vivido mais de dois séculos como Nação dependente dos grandes centros internacionais. Assim, a história do Brasil não pode ser vista como um processo linear, como um processo meramente evolutivo. É preciso compreender as grandes mudanças de qualidade, as grandes transformações. Sem elas não pode haver uma compreensão correta da história; uma história meramente empirista, factual, mergulhada nas minúcias. É como se estivéssemos olhando as árvores sem ver a floresta, como se estivéssemos olhando um fio de cabelo sem olhar a face, o conjunto da pessoa que tem aquele fio de cabelo. É claro que toda essa visão não é ingênua. Quando a campanha dos 500 anos do Brasil - esse é o nome - apresenta todas essas teses mistificadoras, ilusórias, está, na verdade, promovendo, conscientemente ou não, intencionalmente ou não, uma certa visão de história, que é conformista, sem grandes transformações, sem rupturas, sem revoluções, sem crises, sem construções sociais, sem contrastes, sem alteridades. Acho que, ao invés de comprarmos acriticamente essa visão, é importante repensar, nestes 500 anos de colonização, nestes 40 mil anos de ocupação humana da América, nestes 200 anos de história nacional, o que significou esse passado, para podermos projetar o nosso futuro. Só assim poderemos extrair dessa história, que é muito rica, que tem dramas e alegrias, conclusões que potencializem a luta dos vários segmentos da sociedade brasileira - povos indígenas, afro-brasileiros e todos aqueles que contribuíram para constituir essa Nação, porque essa luta, sim, tem 500 anos pela justiça social, pela liberdade, pela verdadeira e completa emancipação nacional, projetando um futuro de emancipação humano-universal. Talvez o melhor ponto de partida para isso seja, não a chegada da frota portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral, mas as duas primeiras frases do livro “Macunaíma”, de Mário de Andrade, que dizem o seguinte: “No fundo do mato virgem, nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite”. Talvez, como país, tenhamos começado assim. Muito obrigado.