REJANE MARY ASSUMPÇÃO, Especialista em educação especial.
Discurso
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 21/09/2002
Página 29, Coluna 4
Evento Ciclo de Debates: "Surdos no trabalho - dê ouvidos a essa idéia".
Assunto DIREITOS HUMANOS. PESSOA COM DEFICIÊNCIA.
205ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 26/8/2002
Palavras da Sra. Rejane Mary Assumpção
Bom dia, senhoras e senhores. Bom dia, amigos surdos. Também sou surda. Tenho dificuldades visuais e auditivas. Contarei um pouquinho sobre mim. Nasci numa família grande. Sou do Paraná. Sou a mais velha de nove filhos. Quando minha mãe me esperava contraiu rubéola, pensando que era uma simples alergia. Nasci com deficiências auditiva e visual. Aos 7 anos contraí sarampo. As seqüelas agravaram as deficiências. Foi uma degeneração progressiva. Não foi fácil enfrentar o ambiente em que vivia, por causa da marginalização, que ainda existe. Essa é uma realidade da sociedade brasileira.
Segurando nas mãos de Deus segui o meu caminho. Fui crescendo, estudei em bons colégios, fiz bons cursos. Sou formada pela Universidade Federal do Paraná, com licenciatura em matemática e bacharelado em estatística. Depois, fiz pós-graduação em educação especial. Atualmente, sou professora no Estado do Paraná. Mas não foi fácil. Tive dificuldades para ingressar no mercado de trabalho. Durante os estudos na faculdade, tive necessidade de copiar dos meus colegas a matéria ditada pelos professores, a fim de ficar no mesmo nível que eles. Mas também os meus colegas enfrentaram dificuldades para ingressar no mercado de trabalho.
Passei nos concursos para professor nos Estados de Santa Catarina e Paraná. Apesar de haver passado nos testes, como os demais ouvintes, as juntas médicas de ambos os Estados não aceitaram o meu ingresso, por ser deficiente auditiva e visual. Em Santa Catarina, procurei a junta médica de Florianópolis, solicitando segunda avaliação. Os três médicos que estavam na minha frente me perguntaram como iria dar aula. Respondi que sabia explicar a matéria e que o aluno deveria prestar atenção. Perguntaram: O que você vai fazer se um aluno te chamar lá atrás? Respondi: simplesmente, irei até lá. O outro médico falou alguma coisa, com a mão na boca. Disse-lhe que não havia entendido. Ele me perguntou: se você não me entende, como vai entender os alunos? Respondi: se o senhor tirar a mão da boca irei entendê-lo. Ele assinou, dando autorização para que eu pudesse trabalhar como professora.
Sou deficiente visual e auditiva, mas dei aulas para crianças ouvintes. No primeiro dia de aula mostrei aos alunos a minha força de vontade não só para transmitir conhecimentos, mas também para construir algo novo. Eles aceitaram. Quando alguém batia na porta me avisavam. Quando soava o sinal de aula também me avisavam. Houve um intercâmbio entre nós, uma ajuda recíproca na sala de aula.
No Paraná, onde também fiz concurso, foi difícil passar pela junta médica. Tive a graça de, na semana do excepcional, poder conversar com o Governador e expor o meu caso. Ele disse que no seu Governo haveria igualdade dentro do Estado. O médico teve de assinar, permitindo que eu desse aula.
Atualmente, sou professora em Curitiba, no colégio estadual só para surdos. Pela manhã, dou aulas para os alunos de 5ª à 8ª série. À tarde, faço um trabalho de formação humana com os surdos, repassando-lhes os conhecimentos que não conseguem entender ou não adquiriram pela falta de audição, de maneira que possam ter cultura elevada e nível de integração social maior.
Alguns de vocês devem estar se perguntando como consigo falar, como o meu português é bom, como consegui estudar e trabalhar se sou deficiente auditiva e visual. A resposta é uma só: a cada um de nós Deus dá um dom. Este é o meu. A minha forma de agradecer a Deus é colocando esse dom a serviço dos outros.
Agradeço às pessoas que souberam acreditar em mim, no meu potencial, que me deram aquela força, aquele incentivo e me mostraram um caminho de contribuição na construção de um mundo melhor.
Agora vou ao tema que me foi proposto: Construção da cidadania do surdo. Primeiramente precisamos saber, através do surdo, o que é melhor. Quem é o surdo, conhecer pelo menos um pouco da sua cultura e depois visualizá-lo no convívio com a sociedade. Mas o mais importante é vê-lo feliz, participativo na construção de uma sociedade melhor, onde o amor seja a chave do relacionamento humano. Quem é o surdo? Alguém que não capta o significado do som, principalmente o som da voz humana. É alguém que procura compreender a mensagem saída dos lábios que se movimentam e tantas e tantas coisas escritas em todo e qualquer lugar - livros, revistas, jornais, propagandas. É alguém que tem um coração, que quer amar e ser amado. Ele sonha com amigos, seja surdo, seja ouvinte. Tem seus ideais - um emprego, família, participação na vida social. Preocupa-se com o que acontece ao seu redor e também almeja a paz. Seus olhos são também seus ouvidos. Suas mãos, seu corpo escreve no ar sua mensagem, indagações, questionamentos, respostas, enfim, comunicação. A cultura do surdo, da pessoa que nasceu surda ou ficou surda em tenra idade, centraliza-se na comunicação visual, na gestual, complementada pela corporal, com uma estrutura particularíssima própria da sua cultura. Conversando com o surdo percebe-se o seu jeitinho de ser, de contar os fatos, de fazer críticas positivas ou negativas. É uma mensagem que muitas vezes, saída dessa linguagem, toca as outras pessoas, porque percebe-se que dentro do Brasil, apesar da língua portuguesa ser a língua oficial, para nós, surdos, nossa língua é a LIBRAS, a gestual. O português, para nós, é uma segunda língua materna que nem todos nós assimilamos. A linguagem do surdo, muitas vezes com um simples gesto, vale uma frase inteira dita pelos ouvintes. Às vezes, uma palavra ou um gesto quer dizer um assunto grande. Enquanto as pessoas ouvintes têm que falar 15 minutos para explicar um assunto, um surdo explica em 5 minutos. Visualizar o surdo, conviver no dia-a-dia corresponde a conhecer sua cultura. Ao respeitar o seu jeito de ser, aprenderemos a amá-lo. As pessoas ouvintes, ao primeiro contato com o surdo, recuam. Não conheço! Quem é? Digamos que o medo aparece, mas à medida que vai conhecendo e aprofundando seu relacionamento, descobre uma nova cultura, um novo jeito de ser dentro da pátria brasileira. Descobrimos que dentro da nossa pátria existem muitas e muitas culturas - a cultura indígena, a cultura do negro, a cultura dos imigrantes. Mas existe uma cultura pouquíssimo conhecida que é a do surdo. Quem a conhece sabe o quanto é profunda e quão imensa é a riqueza existente nela.
O tema que me foi sugerido, a construção da cidadania do surdo, vem em ao encontro de algo muitíssimo almejado por todos nós, surdos e ouvintes. Nosso caso nada mais é do que uma unidade entre a cultura do surdo com a cultura do ouvinte. Respeitar uma e a outra, sabendo conviver com as duas sem eliminar esta ou aquela, reconhecendo a riqueza de uma e da outra, sabendo valorizar uma e outra. Isso chama-se enculturação. Esse é um caminho de paz, de progresso social, de integração vivida na convivência social da diversidade.
Gostaria muito que, na medida do possível, cada um de vocês pensassem um pouco nas palavras que eu disse. Também sou surda. Além de ter procurado estudar sobre quem é o surdo, quem é o cego, quem é o deficiente mental, quem é o deficiente de aprendizagem, quem é o deficiente físico, procurei viver a realidade de cada um deles. Mas nunca deixei o ouvinte de lado porque vivemos dentro do mesmo Brasil, cuja língua é o português e vi que faz parte do mesmo povo. Não existe um povo surdo e um povo ouvinte, existe uma cultura só dentro da cultura brasileira, as outras culturas que vieram da cultura do negro, do índio, do europeu, do italiano, alemão, japonês, que nos trouxe a diversidade. O povo brasileiro é um povo unido, é um povo que ama, mas que precisa conhecer a cultura do outro dentro da sua própria pátria. Que este ciclo de debates possa dar essa oportunidade de uns e outros se conhecerem melhor. De minha parte, agradeço o convite para expor o assunto e, na certeza de que como cidadã brasileira, estou contribuindo para a construção de uma sociedade melhor, porque sinto que não sou apenas uma cidadã do Brasil, sou cidadã do mundo, porque podemos contribuir para todas as regiões do mundo, mostrando o que o Brasil pode fazer na unidade. Muito obrigada.