Pronunciamentos

RAFAEL FREIRE, Diretor Executivo da Central Única dos Trabalhadores - CUT.

Discurso

Comenta o tema: "Brasil 2000: Realidades e Perspectivas".
Reunião 65ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 2ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 08/04/2000
Página 29, Coluna 1
Evento Ciclo de Debates: Repensando o Brasil 500 Anos Depois.
Assunto CALENDÁRIO.
Observação Participantes dos debates: Maria Lúcia, Kênia Marques, Wanderley Costa, Wellington de Oliveira.

65ª REUNIÃO ESPECIAL DA 2ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 17/3/2000 Palavras do Sr. Rafael Freire Boa-tarde a todas as pessoas presentes. Gostaria de agradecer, em meu nome e em nome da entidade que represento, à Assembléia Legislativa de Minas Gerais, por meio da Deputada Elbe Brandão. Na realidade, fiquei bastante surpreso com os debates e as mesas que estão compondo este ciclo. Não é demagogia, mas acho extremamente importante esta iniciativa de aproximação real, na tentativa de encontrar soluções, dos poderes constituídos, no caso, o Poder Legislativo, com os movimentos sociais organizados, a intelectualidade brasileira e os cidadãos. Para trabalharmos com o tema “Brasil 2000 - a Realidade e Perspectivas”, temos de fazer uma opção sobre a natureza do debate. O debate que farei tenta representar ou apresentar um pouco a visão de um setor da sociedade que está organizado em sindicatos, em uma central sindical. Portanto, a minha fala não é neutra nem pretende, de imediato, obter consenso, mas exporá uma visão. Quando tomamos a iniciativa de fazer um ciclo de debates como esse, em que não se entra na festa do Brasil 500 anos, mas sim em um período de problematização, é horrível, mas podemos expressar as possíveis e diversas diferenças da nossa sociedade. A partir daí, temos de tentar construir o que cada um acredita que será melhor para o País. Sendo assim, gostaria de citar uma frase de um estudioso que mora na França, que se chama Michel Lovi. Ele fala, com relação aos movimentos sociais, às suas perspectivas de organização, às suas demandas e tarefas, frente à realidade pública que está imposta não apenas no Brasil, mas também no mundo, algo que temos de valorizar aqui. É o seguinte: “Sem uma memória coletiva, não se pode ter um sonho de futuro”. Se os movimentos sociais, as pessoas, os homens e as mulheres não conseguirem construir uma memória coletiva dos diversos períodos históricos e se não conseguirem recuperar lutas, movimentos e experiências, não poderemos ter um sonho de futuro. Assim, vamos nos render a propagandas oficiais que falam, por exemplo, que a história acabou, que o que está acontecendo, no Brasil e no mundo, é inevitável e que não podemos ir contra essa lógica, ou seja, não podemos ir contra, por exemplo, a lógica da organização da economia do País. Recuperar essa memória coletiva possibilita-nos apropriar-nos de experiências importantes que obtivemos ao longo desses 500 anos. Sobretudo, essa memória coletiva dos 500 anos põe abaixo um ditado que é senso comum na sociedade brasileira: fala que o povo brasileiro é pacífico, e a tradução desta palavra, pacífico, na realidade, é acomodado. Se olharmos as histórias e lutas deste País, no passado e hoje, veremos que não há, na realidade, um povo acomodado, mas sim um povo que tenta se organizar e lutar, contrapondo-se à ordem dominante, tentando construir o seu espaço na sociedade brasileira, com fortes conflitos. Não podemos nos esquecer, por exemplo, de que, na tentativa de construir uma outra visão de sociedade, ocorreram assassinatos de trabalhadores rurais. Para esses massacres, não há punição. Trabalhadores são mortos quando se organizam para reivindicar melhores condições de trabalho, de salário e de vida. A recuperação dessa memória permite-nos trabalhar uma outra postura no País, ou seja, uma outra organização e um outro debate, em que não haja desqualificação nem repressão daqueles que pensam diferente da oficialidade, e permite-nos a recuperação de experiências e a construção de projetos alternativos que temos hoje. Várias experiências não são apropriadas pelos movimentos em uma contraposição à ordem econômica e política estabelecida neste País. Estou falando isso porque pretendemos mudar a realidade do Brasil. Não gostamos e não estamos aceitando esses níveis de desemprego. Não queremos, não aceitamos e lutamos contra a falta de lugar para morar para milhares de pessoas que se encontram nas ruas, na cidade de São Paulo e em outras grandes cidades deste País. Gostaríamos de mudar a ordem econômica do Brasil, que é perversa e exclui. A recuperação dessa memória coletiva permite- nos contar e fazer uma outra história. Qual a história da organização do movimento de mulheres e de movimentos feministas nas disputas que existiam no País? Qual a história da luta anti-racismo e dos negros? Na parte da manhã, uma colega que trabalhou o tema das mulheres de agora permitiu-nos ter uma nova visão sobre o assunto e recuperar a possibilidade de ter absoluta certeza de que é possível construir movimentos que permitam mudar a sociedade. Qual história é contada sobre as diversas pessoas que lutaram pela terra neste País? E a história dos que lutaram pela terra antes do Movimento dos Sem-Terra? Quem de nós conhece - há uma grande parte de pessoas presentes neste debate que são jovens, portanto, creio que devam estar, ou na universidade, ou na escola secundária - a história das ligas camponesas, que possibilitaram serem bastante fortes os movimentos dos sem-terra? Qual a história do Sindicato do Garrancho, no Rio Grande do Norte, em que organizavam a produção em defesa dos trabalhadores que chegaram a pegar em armas? Qual a história da organização dos negros, não de maneira festiva? Em muitos debates, Zumbi virou uma pessoa que não gerava conflitos e era um grande herói. Esse senso comum não recupera a luta dos negros naquela época. A recuperação dessa memória coletiva permite-nos disputar uma outra sociedade, em um patamar diferente do atual. Temos uma propaganda e uma ideologia muito forte no País e no mundo, que se denomina neoliberalismo e prega, acima de tudo, a individualidade, questionando fortemente os movimentos organizados e as respostas coletivas da população aos seus problemas. A recuperação dessa memória permite-nos trabalhar em outro patamar e possibilita-nos dizer que as perspectivas do Brasil, com todas as potencialidades e dificuldades, estão em disputa, porque há pensamentos e projetos diferentes. Esse nível de desemprego, com o Estado falido e com a pobreza que reina neste País, não foi causado pelo sobrenatural, mas sim por uma opção política desses 500 anos, em que uma elite dominante se alimentou da maioria da população e não houve distribuição de renda. Isso já foi dito anteriormente. O Brasil é um dos países que tem a pior distribuição de renda. Os grandes setores do empresariado brasileiro carregam essa tradição. Pudemos debater isso na relação que temos com o Estado. Há diferenças muito grandes de projetos. Por exemplo, por que o Brasil entra no cenário internacional com inserção passiva, já que tem uma economia que pode ser considerada razoável? Por que, no ano 2000, o FMI monitora a economia brasileira? Por que, no ano 2000, temos uma elite dominante que não enxerga ou não atende as necessidades da população? Há realidades muito diferentes. Há a realidade da estabilidade monetária, e há a realidade das ruas, do desemprego e da falta de perspectiva. A maioria é jovem. Qual a perspectiva que têm de emprego quando terminarem a faculdade ou a escola secundária? Chegou o momento de, nessa recuperação da memória coletiva, dizer que chega desse papo de que temos de crescer para, depois, dividirmos o bolo. Quando era menino, escutava isso. Já estou de cabelos brancos, e ainda me pedem tempo para atender às nossas necessidades. Chega dessa discussão. Concordo com o Sr. Lincoln: “Pensar o Brasil é estrategicamente e em longo prazo”. Agora, pensar em longo prazo e com objetivo político é fazer agora. É fazer a opção política muito clara e de experiências em que se trabalha diretamente a participação popular, como, por exemplo, o orçamento participativo em governos democráticos e populares, em que a sociedade determina para onde deve ir o dinheiro que é arrecadado por meio dos impostos. Ou outra opção, que é a da estabilidade monetária. Para isso, temos que ter gastos sociais. Temos que frear a produção, porque tudo pode gerar inflação. Temos que pagar a dívida externa, ou seja, são opções políticas muito diferentes. A disputa das perspectivas no País deve ser apropriada pela maioria da população. Isso não cai do céu. Ou organizamos e vamos atrás, ou não teremos. Não dá para cada geração reinventar o movimento, ou seja, começar do zero. Assim, não se chega a lugar algum. Temos Estados falidos no Brasil? Temos. Se estudarmos a história do País com olhar crítico, veremos que temos formação social brasileira onde as elites prevaleceram em detrimento da exclusão da maioria da população; que no Estado o processo de corrupção se espraiou, como dizem os gaúchos, pelos diversos níveis. Temos um Estado cuja representação, no Governo Federal, no Judiciário e mesmo na Câmara Federal, atende a interesses muito específicos de quem está sustentando a presença nesses Governos. Há setores do empresariado muito importantes que reclamam do Estado. Mas, no primeiro momento de competir no mercado, vão ao Estado pedir socorro. Foi citado o capital financeiro. Temos um Estado falido porque, em vez de investir num Estado chamado social, vai socorrer Bancos e empresas, não para gerar empregos. O BNDES financia projetos de empresas que não geram empregos. Não é requisito para obtenção de empréstimo o aumento de emprego. Não há política de investimento real nas pequenas e médias empresas. No Brasil, com esse Estado falido que temos, a opção fica muito clara. Na não-distribuição de renda e nos problemas que são colocados para o País, nós - e falamos alto e bom som - não aceitamos ser tachados de culpados por esses problemas que temos. Não é a classe trabalhadora ou a maioria da população que é culpada. Culpadas são as elites dominantes, que durante muito tempo se aproveitam de um cenário político que levou o Brasil às condições em que se encontra. A maioria da população jovem não tem perspectiva de futuro. Portanto, a disputa da perspectiva significa a disputa pela vida. Ou seja, a construção de uma utopia, cada um de nós com a tarefa real de chamar os outros à responsabilidade, unificando o máximo possível a maioria da população e fazendo algo diferente do que temos no Brasil. No debate com os neoliberais, fala-se de que tipo de Estado queremos. É o Estado mínimo? É o Estado empresário? Ou é o Estado do bem-estar social? Ora, no Estado que temos hoje - e os neoliberais dizem que o Estado deve ser voltado para as questões sociais - como está a educação pública no País? No social, quem tem dinheiro vai para uma boa escola; quem não tem fica de fora. O Estado social que deveria atender à saúde é aquele em que quem não tem plano de saúde está prejudicado. É um Estado social que deveria tratar do saneamento. Mas, se chove numa grande capital brasileira, a cidade quase acaba. Esse é o Estado social que se apregoa deva existir. Mas não ocorre. São pessoas que têm a possibilidade de mudar essa situação e abrir outro diálogo com os poderes constituídos. Trabalhar as necessidades sociais do País em políticas compensatórias, em vez de chamar o Estado à responsabilidade, é brincadeira. No caso, não teremos boas perspectivas. Portanto, precisamos pensar o Brasil no ano 2000 - e não é um País que nasce agora; traz todas as mazelas, todas as potencialidades construídas em décadas anteriores. Concordo com o Carlos, a década de 80, para os movimentos sociais, foi importantíssima. Houve a construção de fortes movimentos, como o da Central Sindical, que represento. Alguns movimentos sociais puderam expressar de forma muito clara as suas necessidades e reivindicações. Foram décadas que permitiram que no ano 2000 partíssimos para uma relação de disputa em patamar diferente das anteriores. Não estamos pintando um cenário fácil. O cenário de perspectivas para os movimentos sociais no Brasil é extremamente difícil, porque várias gerações dos que hoje estão nos movimentos sociais foram criados, entre aspas, com outro tipo de cultura. Tínhamos um modelo de desenvolvimento no País diferente do de hoje. Temos a possibilidade de construir alternativas para o que está colocado no Brasil, mas isso traz um desafio enorme. Qual é o desafio? Responder às questões imediatas que estão colocadas para a maioria da população brasileira. Mas pensar um tipo de desenvolvimento diferente do que está aí. Qual alternativa de desenvolvimento temos no neoliberalismo? Qual o projeto econômico sério de distribuição de renda no País? Quais os caminhos para isso? Fazer um debate sobre o salário mínimo de US$100,00, que traz impacto à economia? Isso deve mudar porque todo ano é essa mesma ladainha, que vai causar impacto na Previdência. O que vai causar impacto é a sonegação e o não- pagamento das grandes empresas, ou seja, o dinheiro do Estado que não é repassado à Previdência. Discutir a Previdência é fazer uma opção clara de perspectivas diferentes. É discutir a Previdência em que o indivíduo responda pelo seu futuro, ou discuti-la onde a coletividade responde, de maneira solidária, às demandas que temos de seguridade social e mesmo de Previdência no País. Portanto, diante dos nossos olhos e no ano 2000, temos opções a serem feitas. Essas opções requerem ações para executá-las. Acredito que, em ciclos de debates como esse, podemos construir uma visão crítica em relação à nossa história e possibilidades de mudanças mais efetivas. Deputada, sei que temos uma série de temas que poderiam aqui ser tratados, inclusive sobre as dificuldades do movimento, a sua relação com outros movimentos e a relação conjuntural hoje, em que há disputa de período. Mas temos que partir de um ponto muito claro, que é a necessidade de uma memória coletiva, a necessidade de uma opção política que dispute o País para valer. Muito obrigado.