Pronunciamentos

Nir César, Presidente da Associação Cultural do Grupo do Beco - Aglomerado Santa Lúcia, Município de Belo Horizonte.

Discurso

Comenta o trabalho desenvolvido por grupos culturais nas favelas do município de Belo Horizonte, como parte da discussão sobre o tema "Experiências dos movimentos sociais na educação e direitos humanos em Minas Gerais".
Reunião 68ª reunião ESPECIAL
Legislatura 15ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 24/11/2005
Página 36, Coluna 3
Evento Ciclo de Debates "Educação em Direitos Humanos".
Assunto EDUCAÇÃO. DIREITOS HUMANOS.

68ª REUNIÃO ESPECIAL DA 3ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 15ª LEGISLATURA, EM 11/11/2005 Palavras do Sr. Nil César Bom dia. Sou contador de histórias, e contador de histórias geralmente não gosta de falar sozinho, sempre precisa da resposta do público. Então, mais uma vez, bom-dia. Isso. Essa é uma demonstração de que estamos vivos, e isso para o teatro é essencial, ou seja, o público é parte integrante da história que está sendo contada. Para mim, isso é importante. Sou Nil César, morador do aglomerado Santa Lúcia, mais conhecido como Morro do Papagaio. Nasci, fui criado e ainda estou sendo criado lá. Sou mais um sobrevivente do aglomerado. Para quem não sabe onde ele fica, quero dizer que, subindo a Av. Prudente de Morais, há uma lagoa muito bonita. A favela fica em frente. Se você não costuma passar por ali mas pela Av. Nossa Senhora do Carmo, indo em direção ao BH Shopping ou Rio de Janeiro, é aquela favela à sua direita. O aglomerado Santa Lúcia está em um ponto que mais incomoda a sociedade como um todo. Estamos situados na região Centro-Sul de Belo Horizonte e rodeados pelos bairros mais nobres da cidade, Santa Lúcia, Luxemburgo, Cidade Jardim, Santo Antônio, São Pedro, Savassi, Sion, Belvedere e São Bento. O “apartheid” social e a violação dos direitos humanos, tanto para nós, moradores da comunidade, quanto para os bairros do entorno, é um movimento supernatural, desde o fechar do vidro, quando você pára no semáforo na Av. Nossa Senhora do Carmo ou na própria Av. Prudente de Morais, até uma mulher que liga para o pároco local dizendo que, para terminar com a violência social, o tráfico de drogas e os bandidos, deve ser arrancado o útero de todas as mulheres faveladas. Participei de uma reunião de pais, em que havia uma professora que trabalhava em escola particular e também em uma pública. Ela foi questionada sobre o motivo de não dar o mesmo plano de trabalho e a mesma educação nas duas escolas. Afirmou que não adiantava trabalhar da mesma forma, porque ela sabe que, mais cedo ou mais tarde, todos serão empregados domésticos, faxineiros, até bandidos e serão mortos aos 16 ou 17 anos de idade. Os pais ali presentes não se mobilizaram nem questionaram essa professora, porque já se tornou natural essa agressão. Se questionarmos os professores ou quem quer que seja, a escola pode fechar. Ou, então, a professora pode ir embora. A comunidade ainda tem aquela visão de que a presença de escolas e creches é um favor, aquela visão assistencialista de distribuição de cestas, como se a escola fosse um programa assistencialista. Reconheço que a favela, na política pública, para o morador de comunidade e para o não-morador de comunidade, não é vista como parte da cidade. Márcia Maria, uma jornalista que mora no aglomerado Santa Lúcia, tem um texto que diz que favelas são bolhas que ficam flutuando na cidade, não fazem parte dela. O morador da cidade já nasce com todos os seus direitos humanos respeitados e cresce com essa dimensão. Por exemplo, o pai de uma criança de 6 anos compra um brinquedo que se estraga no primeiro momento de uso e tem o direito de trocá-lo. A criança de 6 anos sabe disso e briga para que o pai o troque. Ao contrário, nós, cidadãos moradores das comunidades, vemos os direitos humanos como se fossem um favor. Então, temos que brigar, lutar, arrombar portas para que sejam respeitados. A visão de cidadania do morador de comunidade e do morador da cidade não é a mesma. Hoje, grupos culturais, como o Grupo do Beco, que estou representando, o Arautos do Gueto, do Morro das Pedras, o Negros da Unidade Consciente - NUC -, do Alto Vera Cruz, trabalham a excelência cultural, primam pela qualidade artística da sua pesquisa e usam a arte como mote para a transformação social local. E a existência desses grupos de jovens mostra o quanto estamos abandonados. Se acompanharmos o crescimento de grupos como esses, dentre outros, veremos que a juventude dos morros não quer aquilo que a sociedade como um todo pensa: não queremos transitar com armas; não queremos usar nem vender drogas, até mesmo porque - fazendo uma brincadeira -, dentro dos morros não há plantação de munição; não há plantação de armas nem temos fábricas das plantas coca e maconha. Estou brincando um pouquinho para ser mais irônico. Então, movimentos como esses surgem exatamente porque estamos abandonados pela sociedade e pelo Estado. É inevitável que, dentro de uma comunidade de favela, grupo que se forma acabe sendo mobilizador, articulador, formador de outros jovens da comunidade, mas também a ponte de aproximação do Estado, de ONGs, de instituições e de pessoas físicas com a comunidade. Há muito tempo, tínhamos preconceito contra pessoas que não moravam na comunidade; achávamos que quem não morava na comunidade era monstro, e nós, bonzinhos. Mas isso já foi ultrapassado porque, mais do que nunca, acreditamos que a transformação social tem que ser da sociedade. Trabalhamos muito com os jovens na comunidade a questão da identidade, que é imprescindível. Reconheço-me como favelado, porque moro em favela. Convivo e cresci com o racismo de todas as formas. Quando falo que sou favelado, muitos de vocês neste Plenário podem pensar: “Não parece!”. Muitas pessoas já falaram comigo: “O que você ainda está fazendo lá dentro?”. Agora, se o Juninho chegasse e falasse: “Sou favelado, moro no morro...”, todos encarariam naturalmente, porque ele é negro. E ele não mora no morro; eu moro. É inevitável a presença do racismo na comunidade e fora dela. Não há como não trabalharmos essa questão. Antes de tudo, é importante defendermos nossa identidade. Em vez de falar que moro no bairro vizinho, falo que moro no morro. Antes de falar que sou mulato, que sou marrom-bombom, é importante reconhecer-me como negro, reconhecer a importância do negro na história do Brasil. É importante apresentar Zumbi, apresentar Dandara, apresentar tantos outros negros e favelados não necessariamente negros. É importante defendermos nossa identidade local. Grupos como o Beco brigam pelo direito à cultura, pelo direito à cidadania, pelo direito a freqüentar o Palácio das Artes e tantos outros espaços que até então, para nós, eram fechados. O Grupo do Beco é parceiro do Projeto Conexões dos Saberes, que o Juninho coordena. Valorizamos demais as lideranças comunitárias e seu trabalho anterior ao nosso. Hoje podemos brigar por atividade cultural na comunidade. Antes, brigavam por água encanada, por asfalto, por moradia, para garantir sua casa naquele local, porque construíam a casa em um dia e, no dia seguinte, era quebrada. Hoje temos o privilégio de lutar pela cultura, que ainda não é reconhecida como nosso direito. Havia uma comissão de direitos humanos no aglomerado Santa Lúcia, em cuja história o Grupo do Beco marcou presença. Essa discussão sobre direitos humanos acabou virando política no Grupo do Beco. Quando assistimos a um espetáculo de teatro, não saímos como entramos. E é inevitável que falemos de nossa realidade. Este é o “folder” de nosso último espetáculo, “Bendita a voz entre as mulheres”, baseado em entrevistas com 20 mulheres do aglomerado. Por que mulheres? Porque reconhecemos a importância da mulher no trabalho e na transformação social da comunidade. No Orçamento Participativo, constatamos a presença da mulher querendo a transformação da comunidade para seu filho, para seu neto. Reconhecemos isso e quisemos homenagear essas mulheres, porque elas não são homenageadas. Estreamos em 8 de março de 2003, dia em que a mídia homenageava advogadas, Deputadas, todas as mulheres que já estão em um patamar, diríamos, “superior”, com todas as aspas possíveis. Na mesma época, ocupamos espaço na mídia, homenageando a empregada, que possibilita que a Deputada, que a advogada e que a Juíza trabalhem, porque ela está cuidando do filho delas. Muitas vezes, essa empregada ou essa babá está deixando seus filhos à deriva para educar o filho dessas profissinais. Temos um texto, dentro da pasta que foi distribuída, que fala um pouquinho do espetáculo “Bendita” e do quanto é importante falar da gente. Quando se fala em favela, fala-se de forma pejorativa. É sempre o crime, a violência, o tráfego. São 35 mil habitantes no aglomerado Santa Lúcia, 90 mil no aglomerado da Serra. Se todos os que moram nesses aglomerados fossem bandidos, a cidade não existiria, não estaríamos aqui. Quando estou subindo o morro, a sociedade me vê como bandido; quando estou dentro da sua casa, tendo a chave da sua casa para limpar, para cuidar do seu filho, para te dar alimento, sou considerado um ser humano. Essas posições são antagônicas. O Grupo do Beco é essencialmente artístico. Não abrimos mão da qualidade artística do nosso trabalho, porque queremos ocupar a página de cultura por fazermos cultura, e não por sermos um grupinho de favela. Temos acesso às leis de incentivo à cultura, a todos os trabalhos que facilitam ou dificultam o financiamento cultural, e contratamos os melhores profissionais do mercado para que possamos ter um “know-how” artístico para multiplicar na nossa comunidade. O Grupo do Beco tem essa política de multiplicador do que recebe. Tudo que recebemos dos profissionais multiplicamos na comunidade. Temos vários projetos. Temos o Adolescer ou Não, que trabalha com jovens de 15 a 18 anos, para montagem de um trabalho. Temos, além de apresentações e montagens dos nossos espetáculos, a Casa do Beco, que é um centro cultural. A idéia desse centro cultural, que está localizado na orla da Barragem Santa Lúcia, é servir ao morador da favela e ao não-morador. Acreditamos que a transformação social existirá quando houver possibilidade de diálogo e de encontro entre o morador da favela e o não-morador, e o preconceito seja quebrado. É muito bom ver, dentro de um trabalho educativo, um jovem da comunidade que tem uma doença chamada vitiligo, falar para o educador: “A minha doença está diminuindo”. É muito bom ouvir, ao pregarmos um cartaz num restaurante, um garçom falar que chorou ao ver a casa dele sendo valorizada “com o trabalho de vocês”. Também é muito bom ver uma criança de 9 anos, que odiava o nariz, dizendo que era nariz “chapoca”, que odiava o cabelo duro, chegar-se a nós e pedir para a educadora fazer uma trança coladinha na cabeça para ela ir à formatura de 4ª série. Isso, as estatísticas não conseguem mostrar. O trabalho é muito bonito, mas temos grandes problemas, sobretudo na parte financeira, o que faz com que tenhamos de nos dividir entre o trabalho socioeducativo e cultural do Grupo do Beco e a sobrevivência. Conseguir financiamento é muito difícil. A Casa do Beco, por exemplo, está sendo depredada. Temos buscado parceria para sua construção. Mas, quanto à sobrevivência, temos nos dividido entre dar oficinas em escolas e fazer faxina. No entanto, nossas conquistas e a utopia motivam-nos a continuar. Parabenizo a Assembléia Legislativa pela realização deste ciclo de debates, e o Grupo do Beco se oferece para promover o diálogo entre a comunidade e as instituições que se interessam por trabalhos sociais. Queremos servir de ponte.