NATÁLIA DE MIRANDA FREIRE, Professora de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG.
Discurso
Discursa sobre o tema: "A Consolidação como Objeto da Técnica
Legislativa".
Reunião
182ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 36, Coluna 4
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Magda Arantes, Gabriela Mourão.
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 36, Coluna 4
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Magda Arantes, Gabriela Mourão.
182ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª
LEGISLATURA, EM 10/6/2002
Palavras da Sra. Natália de Miranda Freire
Exmos. Srs. Presidente, Deputado Cabo Morais; Dra. Carmem Lúcia
Antunes Rocha; senhores debatedores, Dr. Geraldo Flávio Vasques e
Dr. Sabino José Fortes Fleury; membros da Mesa da Assembléia e
demais parlamentares presentes; senhores representantes dos
Poderes Executivo e Judiciário, do Ministério Público e da
advocacia; Srs. Consultores e Procuradores de Casas Legislativas,
dentre os quais ressalto a presença da Dra. Sueli Guimarães, da
Câmara dos Deputados; demais participantes deste fórum técnico,
entre eles, os alunos das instituições de ensino Izabela Hendrix,
PUC, UFMG e outras.
Após quase 25 anos de trabalho nesta Assembléia Legislativa, em
que exerci o cargo de Redatora de Documentos Parlamentares, a
consultoria e o assessoramento técnico-legislativos, passei a
dedicar-me ao magistério na Escola do Legislativo, bem como à
pesquisa na área do processo legislativo e, em razão da prática da
redação parlamentar, vim a interessar-me pela técnica legislativa.
Como outros colegas, participei dos grupos de trabalho
responsáveis pelo assessoramento aos Deputados constituintes, na
elaboração do projeto de que resultou a Constituição do Estado, e
à Mesa da Assembléia, na redação do anteprojeto do Regimento
Interno da Casa e de outras proposições que se converteram em
normas jurídicas.
A repetida participação em seminários e cursos promovidos pela
Assembléia Legislativa do Estado para atualização de seus
servidores, bem como de agentes públicos municipais, além das
constantes atividades de redação e revisão de anteprojetos de atos
normativos, na própria Assembléia Legislativa e em outras
instituições, conduziu-me à necessidade de estudos cada vez mais
detalhados acerca da técnica legislativa. Pude, então, constatar a
carência de fontes de pesquisa, que, a par de tratarem
especificamente do tema proposto, viessem a suprir a falta de
bibliografia a ele pertinente.
Essas são, em síntese, as razões que me levaram a eleger a
técnica legislativa como objeto de estudo na dissertação de
mestrado defendida na Faculdade de Direito da UFMG, no dia
5/2/2002, e tema de um livro a ser lançado em breve.
O estudo foi sobre a técnica legislativa como objeto da ciência
do Direito e se baseou não só na legislação, na doutrina e na
jurisprudência, mas também e em grande parte na experiência
adquirida nesta Assembléia Legislativa. Tais razões certamente
motivaram o honroso convite a mim dirigido pelo Exmo. Sr.
Presidente desta Assembléia Legislativa, Deputado Antônio Júlio.
Meu sincero agradecimento à Mesa e a todos os parlamentares da
Assembléia de Minas pela oportunidade ímpar de participar como
conferencista, ao lado de renomados juristas e especialistas na
matéria em estudo, entre eles, a Profa. Carmen Lúcia Antunes
Rocha, os parlamentares, representados pelo Deputado Cabo Morais,
e os debatedores já citados, de um fórum técnico de tal
significado para a vida jurídica e política do Estado, dos demais
entes da Federação brasileira, do País, enfim.
Meu agradecimento também a Marcílio França Castro, um dos colegas
que se destacam pelo notável conhecimento na área de técnica
legislativa, pelos contatos e pelas informações a respeito do
evento que ora se realiza.
Passo a tratar do tema que me foi proposto, “A Consolidação como
Objeto da Técnica Legislativa”, valendo-me, de início, das
palavras de Tércio Sampaio Ferraz Júnior: “Vamos falar do discurso
das leis, do discurso dos códigos, da norma como discurso. As
considerações que se seguem têm correspondência com o discurso que
estabelece a norma, que não deve ser entendido apenas como o
discurso legislativo, pois é mais amplo.
A consolidação das leis é, sem dúvida, objeto da técnica
legislativa, pela razão primeira de estar prevista, no parágrafo
único do art. 59 da Constituição da República, como um dos atos a
serem disciplinados na lei complementar nele requerida, que veio a
ser a Lei Complementar nº 95, de 26/2/98, alterada pela Lei
Complementar nº 107, de 26/4/2001, esta resultante do Projeto de
Lei Complementar nº 23/99 (nº 45/2000 - Complementar no Senado
Federal), de iniciativa presidencial.
Com efeito, dispõe o parágrafo citado, que se insere no artigo
que relaciona as espécies normativas cuja elaboração está
compreendida no processo legislativo: “Parágrafo único - Lei
complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e
consolidação das leis”.
Não decorresse do comando constitucional a caracterização dos
procedimentos de consolidação como afetos à técnica legislativa -
da mesma forma que os de elaboração, redação e alteração das leis
- aquela decorreria do fato de a consolidação, tal como prevista
na legislação brasileira em vigor, consistir em exame, triagem,
seleção e posterior reunião de leis em coletâneas, observados
critérios preestabelecidos, com o objetivo de depurá-las de
disposições não mais vigentes ou de flagrantes impropriedades
formais.
Além da consolidação, que é tema do nosso estudo, a lei
complementar traz normas sobre a elaboração, a redação e a
alteração das leis. A elaboração das leis é um processo que se
inicia antes mesmo da redação da lei e envolve um processo de
reflexão sobre a matéria a ser tratada. A respeito disso, hoje a
doutrina recomenda - e a própria legislação brasileira prevê - que
haja uma lista, a chamada “check list”, em que se fazem perguntas
a respeito da necessidade do ato normativo, da conveniência de ser
elaborado, da oportunidade, da sua definição, da sua identificação
entre as espécies normativas, dos resultados, dos efeitos que pode
trazer à sociedade.
Então, além da participação popular, que hoje é prevista na
Constituição não só em relação à iniciativa de projetos de lei,
desde que haja o cumprimento de requisitos constitucionais, como
número de eleitores que vão assinar o projeto e outras exigências
para que se garanta a representatividade da iniciativa, os
cidadãos podem e devem ter participação nas audiências públicas
regionais, podem apresentar petições, reclamações, queixas de
qualquer natureza contra atos de autoridade pública e podem fazer
chegar ao Legislativo as suas reivindicações, as suas aspirações.
Portanto, o processo de elaboração compreende todo o envolvimento
dos cidadãos, porque, além de haver representantes que, no
parlamento, apresentam os projetos, discutem e votam os projetos,
já que vivemos a democracia representativa, ainda existe a
participação, a previsão da representação direta dos cidadãos por
esse e outros instrumentos, como o referendo, o plebiscito, que a
Constituição prevê.
A redação é a tarefa material de concepção do texto, é a montagem
do texto legal. Assim, o legislador deve-se preocupar com as
palavras que vai empregar, com a articulação do texto, com a sua
divisão e com todos os aspectos que envolvem a redação de um texto
legal.
E a alteração decorre da própria evolução da sociedade. A lei em
vigor pode durar muito, mas não é eterna. É preciso que seja
alterada de acordo com as necessidades. Então, a Lei Complementar
nº 95 prevê os procedimentos de alteração das leis com as
recomendações que o legislador deve seguir para que haja um
trabalho, do ponto de vista técnico, que não deixe ou, pelo menos,
tenha o objetivo de não deixar lacunas, ou ambigüidades, ou
imprecisões na legislação.
Finalmente, a consolidação, que é o quarto dos atos previstos
como objeto da técnica legislativa. Como se assinalou, a matéria é
regida pela Lei Complementar nº 95, de 1998, com a redação dada
pela Lei Complementar nº 107, de 2001, devendo-se mencionar ainda
o Decreto nº 4.176, de 28/3/2002, que “estabelece normas e
diretrizes para a elaboração, a redação, a alteração, a
consolidação e o encaminhamento ao Presidente da República de
projetos de atos normativos de competência dos órgãos do Poder
Executivo Federal, e dá outras providências”. Este revogou o
Decreto nº 2.954, de 29/1/99, e os decretos que o alteraram.
A multiplicidade de leis que coexistem no ordenamento jurídico
brasileiro, muitas vezes redigidas de forma lacunosa, obscura ou
ambígua ou revestidas de caráter fragmentário - como foi
ressaltado hoje, em várias oportunidades -, em face de sucessivas
alterações que incidem ou repercutem no seu texto, causa apreensão
ao jurista e deveria ser alvo de profunda reflexão por parte do
legislador.
Diz Pinto Ferreira: “Há mesmo uma inflação legislativa, excesso
de leis, que tem aconselhado inclusive o uso da cibernética
jurídica”.
Quanto ao intérprete, vê-se diante de um impasse: saber qual a
lei que desapareceu da cena jurídica e qual a que assumiu o papel
da que se foi. Essa é uma indagação feita por Antão de Moraes, num
dos primeiros trabalhos sobre técnica legislativa que se registram
no País.
Já na monarquia portuguesa, em razão desse impasse, foram
elaboradas as ordenações, que, como se sabe, são as compilações
das antigas leis portuguesas, feitas com o objetivo não só de as
reunir em um corpo único, mas também de as tornar mais claras,
evitando incoerências e contradições.
Anteriormente à edição da Lei Complementar nº 95, de 1998, a
matéria era disciplinada, de forma parcial ou sucinta, em atos
normativos esparsos, ou regida por normas não escritas ou praxes
adotadas em Casas Legislativas.
Registram-se, no Estado de Minas Gerais, o Decreto nº 12.602, de
29/4/70, que “estabelece sistemática para a elaboração de
documento normativo do Poder Executivo”, e o Decreto nº 12.747, de
16/5/70, que “dispõe sobre a consolidação da legislação estadual”.
Consultados os textos constitucionais vigentes nos Estados da
Federação, verifica-se que a maioria deles prevê a edição de lei
complementar que discipline a técnica legislativa e, por
conseguinte, a consolidação das leis.
Nos Estados que não contêm previsão de lei complementar relativa
à matéria - como é o caso de Minas Gerais -, entende-se que a
técnica legislativa deva ser objeto de lei ordinária. Em Minas
Gerais, já existe, como foi assinalado hoje, proposta de regulação
da matéria consubstanciada no Projeto de Lei nº 53/99, o qual,
seguindo os parâmetros da Lei Complementar nº 95, de 1998, mas
adequando a matéria, quando necessário ou conveniente, a
peculiaridades do processo legislativo estadual, “dispõe sobre a
elaboração, a alteração e a consolidação das leis no Estado de
Minas Gerais”.
No Direito Comparado, variadas fórmulas de limpeza e
reorganização do ordenamento jurídico têm sido adotadas.
Basicamente há dois procedimentos que podem, na prática,
confundir-se, mas, na verdade, não se confundem. Ao lado da
consolidação, de que estamos tratando, que se caracteriza pela
coleta, conjugação e sistematização formal das leis em vigor, sem
alterações substanciais, registra-se a codificação, que consiste
na unificação das normas relativas a determinada matéria, com
reforma substancial da disciplina até então existente, inovando no
ordenamento jurídico.
No caso da codificação, que não é especificamente o tema da
exposição, é preciso que se diga que aquilo que se chama de
código, muitas vezes, não o é, segundo grande parte dos juristas,
pois o código disciplina matérias que se correlacionam por
pertencerem a uma determinada área do direito e são organizadas e
sistematizadas segundo critérios predeterminados, seguindo uma
sistemática muito diferente de determinados atos que se denominam
códigos. Muitas vezes, fala-se em Código de Trânsito ou Código de
Pesca, mas, na verdade, segundo Caio Mário da Silva Pereira, esses
atos normativos, por exemplo, não seriam códigos, no verdadeiro
sentido da palavra. Seria código o que reconhecemos como tal, como
o Código Civil ou o Código Penal, que são textos em que os
assuntos se correlacionam de forma sistemática. É uma das exceções
ao princípio contido na Lei Complementar nº 95, que cada lei
deverá tratar de um único assunto, ela excetua a codificação
justamente porque, na codificação, não haverá um só assunto, mas
assuntos que se correlacionam por pertencerem a uma determinada
área do direito, como assinalei.
No direito constitucional italiano, é prevista delegação
legislativa para a redação, em texto único, de normas contidas em
vários textos da mesma natureza, mas expedidos em momentos
diversos. Há, entretanto, diferença fundamental entre textos
únicos delegados, caso em que existe a faculdade não só de
coordenação, mas também de modificação, de integração e,
eventualmente, de interpretação autêntica e texto único de mera
coordenação, ou seja, de simples compilação, no qual a força de
lei das normas singulares, nele reunidas, permanece sempre
ancorada às leis das quais as mesmas normas são tiradas.
José Héctor Meehan observa que um dos fatores que incidem de
forma decisiva na eficácia dos atos legislativos é o grau de
conhecimento real, pleno e seguro que de suas disposições tenham
os particulares e os próprios agentes públicos encarregados de
aplicá-las e velar por seu cumprimento.
Ressalta o mesmo autor que, entre os diversos tipos de
compilações ou coleções legislativas que se publicam, deve-se
distinguir as de caráter geral, que tendem a incluir todos os atos
legislativos editados, qualquer que seja sua temática ou matéria,
até determinado momento, das de caráter especial, que somente se
ocupam dos atos legislativos referentes a determinadas matérias;
as que incidem sobre todos os atos legislativos elaborados até
determinado momento, estejam ou não em vigor, das que incorporam
somente os atos vigentes a partir da data da sua publicação; as
efetuadas circunstancialmente, cuja continuação, por conseguinte,
não esteja prevista, distinguem-se das que pretendem assumir um
caráter permanente, por serem realizadas com a previsão de
atualização futura. Estas últimas, por sua vez, poderão ser
fechadas, isto é, somente passíveis de atualização,
posteriormente, por agregação de outros corpos (tomos, fascículos,
etc.), ou abertas, quando estiverem elaboradas de tal maneira, que
sua atualização possa realizar-se por integração (introdução do
novo material no corpo originário da compilação).
Na doutrina venezuelana, encontramos, na obra de Belkys Velazo,
procedimentos já previstos na consolidação das leis brasileiras. A
autora diz que são procedimentos próprios de todo procedimento de
consolidação, que são os seguintes:
- combinar ou refundir todas as leis com suas respectivas
alterações, o que é mais importante ainda nos ordenamentos
jurídicos, em que somente se publica o texto da reforma, e não o
reformado. Muitas vezes - é o caso que existe no Brasil -, temos a
publicação das leis alteradoras de leis em vigor, mas não temos,
em caráter ordinário ou sistemático, a publicação do texto com as
alterações que nele foram inseridas;
- renumerar seções, capítulos ou artigos e alterar as remissões,
quando necessário;
- excluir do texto consolidado as normas que não estejam em vigor
- desatualizadas, inconstitucionais ou derrogadas implicitamente -
, mantendo, no entanto, as prescrições que não tenham sido
aplicadas por inocorrência, na prática, dos fatos nelas previstos;
- eliminar as disposições transitórias que já não tenham
eficácia;
- dividir os artigos demasiadamente longos ou estruturá-los em
parágrafos, sem alterar a ordem das palavras;
- atualizar nomes de departamentos, órgãos, instrumentos
normativos, etc.
- corrigir, quando necessário e possível, o modo, o tempo e a voz
dos verbos;
- reordenar, mediante um sistema de classificação lógica, as leis
ou parte de leis que, por similitude de objeto, devam estar
reunidas, com o que se eliminam as leis duplicadas, porque, além
de haver disposições duplicadas em leis, pode haver leis
duplicadas;
- simplificar leis que tenham sido originalmente redigidas em
linguagem obscura;
- ajustar os procedimentos de consolidação da legislação aos
meios informáticos.
Considerada a natureza da consolidação a ser efetuada, podem-se
distinguir dois procedimentos básicos, o que implica a alteração
do conteúdo das leis a serem consolidadas e, por isso, depende de
apreciação ou reapreciação, pelo Poder Legislativo, de toda a
matéria nelas contidas; e o que requer a mera coordenação ou
compilação das leis, segundo critérios predeterminados, não
envolvendo alteração de mérito.
Essa segunda modalidade de consolidação é a prevista na Lei
Complementar nº 95, de 1998, cujo art. 13, com a redação dada pela
Lei Complementar nº 107, já foi mencionado. Na verdade, esse
artigo prevê a reunião das leis federais em codificações e
consolidações, que são dois tipos de procedimentos distintos, como
já foi visto, integradas por volumes contendo matérias conexas ou
afins, constituindo, no todo, a consolidação da legislação
federal. No mesmo dispositivo, é previsto que, no momento em que a
consolidação se faz, há a revogação formal das leis incorporadas à
consolidação, sem modificação do alcance da norma e sem
interrupção da sua força normativa. Falaremos novamente sobre a
revogação formal dos dispositivos consolidados.
Quanto às alterações da consolidação possíveis, foram mencionadas
hoje, pela manhã, e também mencionei muitos deles, na citação da
autora venezuelana. Farei algumas considerações a respeito de
algumas providências previstas no dispositivo da Lei Complementar
nº 95, que devem ser, expressa e fundamentadamente, justificadas,
quando da consolidação. A fonte de informação que serviu de base
para aquela providência deve ser indicada com precisão. Essas
providências são as que estão citadas por último, no dispositivo:
- supressão de dispositivos declarados inconstitucionais pelo
Supremo Tribunal Federal, cuja suspensão tenha sido determinada
pelo Senado Federal;
- indicação de dispositivos não recepcionados pela Constituição
Federal;
- declaração expressa de revogação de dispositivos implicitamente
revogados por leis posteriores.
As leis que constituem o âmbito de aplicação da Lei Complementar
nº 95, de 1998, e, portanto, o objeto da consolidação de que se
trata são as nacionais e as federais, uma vez que, como esclarece
Geraldo Ataliba, o Congresso Nacional reúne “a dupla qualidade de
Legislativo Federal e Legislativo Nacional”.
O princípio consignado no inciso I do art. 7º da Lei Complementar
nº 95, segundo o qual “excetuadas as codificações, cada lei
tratará de um único objeto”, não é desatendido no procedimento de
consolidação, pelas seguintes razões:
- cada projeto de lei de consolidação visa a integrar, num único
diploma legal, todas as leis pertinentes à mesma matéria;
- a consolidação da legislação federal, constituída ao final pela
reunião de todas as leis federais em codificações e consolidações,
integradas por volumes contendo matérias conexas ou afins, não
estará adstrita a um único objeto, segundo critério semelhante ao
aplicável às codificações, que, por sua própria natureza, não se
limitam ao tratamento individualizado ou especial de determinado
assunto ou área de atividade.
A menção à possibilidade de novas divisões no texto legal remete-
nos aos princípios da Lei Complementar nº 95 a respeito da
articulação dos textos legais e à obtenção de ordem lógica na sua
redação, considerado o artigo como unidade básica e, portanto,
como o ponto de partida de qualquer divisão ou agrupamento que
utilize o legislador.
Segundo o inciso II do art. 10 da citada lei complementar, “os
artigos desdobrar-se-ão em parágrafos ou em incisos; os
parágrafos, em incisos; os incisos, em alíneas, e as alíneas, em
itens”.
Os incisos V e VIII do mesmo artigo dispõem, respectivamente:
“V - o agrupamento de artigos poderá constituir subseções; o de
subseções, a seção; o de seções, o capítulo; o de capítulos, o
título; o de títulos, o livro e o de livros, a parte;
VIII - a composição prevista no inciso V poderá também
compreender agrupamentos em disposições preliminares, gerais,
finais ou transitórias, conforme necessário”.
Se o procedimento de consolidação admite diferente colocação e
numeração dos dispositivos consolidados, o mesmo não se verifica,
especialmente quanto à numeração de artigo e de unidades
superiores a este.
É o caso da seção, do capítulo e do título, que não podem ser
renumerados. Isso ocorre no processo de alteração das leis. Mas
estamos tratando de consolidação. Nesse procedimento não existe a
proibição, mesmo porque faz parte do processo de consolidação a
reorganização do texto. A Lei Complementar nº 95 veda, no caso da
alteração, mesmo quando recomendável, qualquer renumeração de
artigos e de unidades a eles superiores. Nesse caso, deve ser
repetido o número do dispositivo imediatamente anterior, seguido
de letra do alfabeto. Então, tantas quantas forem as alterações,
tantas letras do alfabeto serão utilizadas. A Lei Complementar nº
95 não veda que unidades inferiores ao artigo sejam renumeradas,
como é o caso dos parágrafos, dos incisos, das alíneas e dos
itens. Analisando essa prescrição, podemos concluir que se
usarmos, por exemplo, letras do alfabeto no caso das alíneas,
poderemos chegar à repetição da mesma letra. Não seria uma
indicação adequada.
Considerada a questão sob outro prisma, o que se alega para que
os artigos não sejam renumerados numa alteração de leis é que os
dispositivos devem ser conhecidos pela numeração que têm. Por
exemplo, como disse o Dr. Marcelo Leonardo, ao mencionarmos o art.
171 do Código Penal, as pessoas já sabem do que se trata. Mas
existe outra razão além dessa: quando a numeração dos dispositivos
é alterada, as remissões ficam prejudicadas. Mas continuará
havendo problemas com relação às unidades menores, porque pode
haver, por exemplo, referência ao inciso do parágrafo do artigo
tal. Se foi renumerado, a remissão ficará prejudicada. Mas isso
não é preocupação do consolidador, mas do legislador, quando se
trata de alterar a lei.
A própria natureza do procedimento consolidatório justifica a
fusão de disposições repetitivas ou de valor normativo idêntico, a
atualização de termos, de expressões e de valores monetários -
multas expressas em valores desatualizados -, a eliminação de
ambigüidades decorrentes do mau uso do vernáculo, a homogeneização
terminológica do texto, a supressão de dispositivos declarados
inconstitucionais pelo STF, ou não recepcionados pela Constituição
Federal, e a declaração expressa de revogação de dispositivos
implicitamente revogados por leis posteriores.
As alterações que visem à eliminação de ambigüidades e à
atualização e homogeneização terminológicas do texto dizem
respeito à redação das disposições normativas, na qual devem ser
atendidas as exigências de clareza e precisão, segundo as normas
estabelecidas no art. 11 da Lei Complementar nº 95.
A propósito das mencionadas exigências, lembra-se, a título de
ilustração, proposta de alteração, acompanhada de justificativa,
formulada por Rui Barbosa, no parecer sobre a redação do Código
Civil, quanto à redação do inciso II do dispositivo identificado
como art. 264: “Art. 264 - Ter-se-á por não escrita a convenção ou
a cláusula: (...) II - Que contrarie qualquer disposição deste
Código, rigorosamente obrigatória”.
Foi a seguinte a redação proposta pelo notável jurista para o
inciso II: “Que contravenha disposição absoluta da lei”.
Suprimiu a expressão “rigorosamente obrigatória”. A justificativa
apresentada foi a seguinte: “I - Rigorosamente obrigatória. Toda
lei é rigorosamente obrigatória, ou não será lei. (...) Não sei,
pois, onde se foi buscar a distinção implícita no texto deste
artigo, entre leis rigorosamente e leis não rigorosamente
obrigatórias. Todas, sendo leis, obrigarão, e com o mesmo rigor.
Não importa que, a par das leis imperativas, haja as leis
permissivas. A distinção entre umas e outras é puramente exterior,
verbal”.
Esse exemplo ilustra bem os termos que, muitas vezes, são usados
desnecessariamente em leis. Existem muitos advérbios e
adjetivações que não são necessários. Segundo a lei, não devemos
usar adjetivação inútil. Digo o mesmo a respeito dos advérbios.
Muitas vezes, a própria natureza da matéria exige um adjetivo. Por
exemplo, no Código Penal, temos crime praticado por motivo fútil,
por motivo torpe ou por violenta emoção. As palavra fútil, torpe e
violenta não podem ser retiradas. É preciso saber distinguir em
que momentos a palavra é dispensável e em que momentos faz parte,
complementa ou integra o sentido do texto.
A exposição de motivos que acompanha o projeto de lei
complementar, de iniciativa do Presidente da República, do qual
resultou a Lei Complementar nº 107, de 2001, que veio a alterar a
Lei Complementar nº 95, de 1998, mostra que o objetivo da
alteração foi especialmente o de cuidar da continuidade normativa,
no que se refere às matérias consolidadas. Foi o que mencionei no
início, dizendo que iria esclarecer. Não haverá novação normativa
com a integração das leis consolidadas no novo diploma aglutinador
dos demais. Temos o texto, disposição literal de lei, que pode ser
alterado, segundo os procedimentos admissíveis no ato de
consolidação, e norma, sentido ou significado da disposição em que
se veicula o comando ou a vontade legislativa. O texto é diferente
da norma. O texto literal pode ser alterado, atendendo aos
critérios de um procedimento de consolidação. A norma não será
alterada. Não haverá prejuízo da sua eficácia. A norma mantém a
sua eficácia, sendo suprimida apenas a vigência de seus enunciados
literais.
Essa foi a exposição de motivos do projeto que deu origem à Lei
Complementar nº 107.
Observa-se que, com a nova redação dada à Lei Complementar nº 95,
as previsões relativas à consolidação, à alteração e à própria
redação das leis ficaram mais claras. A redação permite, a
qualquer de nós, o entendimento, sem necessidade de um estudo
aprofundado.
A seguir, iria discorrer sobre algumas questões relativas ao
processo legislativo, embora já tenham sido mencionadas. O
processo legislativo foi previsto na Lei Complementar nº 95, com a
nova redação, como um procedimento simplificado. O mais ficou
reservado ao Regimento Interno de cada Casa do Congresso, que irá
definir o processo legislativo. Já foram estabelecidos alguns
critérios. A emenda de redação é permitida. A emenda de mérito não
pode ser vedada, porque há o entendimento de que o parlamentar tem
a iniciativa dos projetos de lei e das emendas. Haveria um
procedimento diferente para esse tipo de emenda, que seria tratado
como um projeto de lei independente e tramitaria segundo as normas
de um projeto de lei.
Outra questão que abordarei diz respeito à recepção das normas. O
decreto que trata da consolidação dos atos do Executivo diz que
“não podem ser consolidadas na mesma matriz de consolidação”. A
matriz de consolidação é o texto básico que receberá as outras
leis. Segundo o decreto, não podem ser reunidas na mesma matriz
leis complementares e ordinárias. O decreto, em sua redação
anterior, trazia a seguinte explicação: “em razão da diferença de
quórum de aprovação”. Hoje, essa explicação não faz parte do
decreto, mas se pode entender que seja uma das razões. Outra
consideração é a de que nem sempre uma lei denominada como
complementar ou ordinária tem aquele “status” jurídico, em razão
do fenômeno da recepção. A Constituição pode ter previsto aquela
matéria como de lei complementar, quando já era tratada numa lei
ordinária, que foi recepcionada. São questões que o consolidador
terá de enfrentar.
Há matérias que não são passíveis de consolidação. Por exemplo,
as leis consideradas particulares, de efeitos concretos ou
especiais, por sua própria natureza, não são consolidáveis.
Medidas provisórias também não são consolidáveis, porque se
entende que, pela própria natureza transitória, provisória, não
são passíveis de consolidação. As leis que, por exemplo, concedem
determinado benefício a alguém, as leis que autorizam determinado
ato em relação a um imóvel, a uma pessoa, leis especiais, de
efeitos individuais ou de efeitos concretos, pela sua própria
natureza não são consolidáveis.
É digna de registro a previsão contida no Decreto nº 4.176 de
consulta pública por meio da rede mundial de computadores e
análise das sugestões então recebidas da sociedade como
procedimentos anteriores ao encaminhamento da versão final do
projeto de consolidação ao Congresso Nacional. Também é prevista a
presença de comissão de especialistas escolhidos entre juristas de
notável conhecimento sobre determinada área para colaborar nesse
trabalho de consolidação. No Congresso Nacional, segundo
informações obtidas por meio da Internet, matérias consideradas
não passíveis de consolidação são os tratados e acordos
internacionais, ainda que ratificados pelo Congresso.
O tratamento dado pela legislação brasileira vigente à
consolidação das leis e outros atos normativos é um tratamento
minucioso, e a experiência oferecida nesse campo pelo Direito
Comparado haverão de contribuir para que os textos legais tenham a
clareza, a precisão e a objetividade necessárias, permitindo aos
órgãos incumbidos dessa atividade, ao mesmo tempo sistematizadora,
racionalizadora e democratizadora, o cumprimento de uma exigência
do próprio estado democrático de direito, no qual, segundo adverte
Norberto Bobbio, “nada pode permanecer confinado no espaço do
mistério”, pois ao cidadão deve ser assegurada a possibilidade “de
colocar os próprios olhos nos negócios que lhe dizem respeito e de
deixar o mínimo espaço ao poder invisível”.