Pronunciamentos

NATÁLIA DE MIRANDA FREIRE, Professora de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG.

Discurso

Discursa sobre o tema: "A Consolidação como Objeto da Técnica Legislativa".
Reunião 182ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 36, Coluna 4
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Magda Arantes, Gabriela Mourão.

182ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 10/6/2002 Palavras da Sra. Natália de Miranda Freire Exmos. Srs. Presidente, Deputado Cabo Morais; Dra. Carmem Lúcia Antunes Rocha; senhores debatedores, Dr. Geraldo Flávio Vasques e Dr. Sabino José Fortes Fleury; membros da Mesa da Assembléia e demais parlamentares presentes; senhores representantes dos Poderes Executivo e Judiciário, do Ministério Público e da advocacia; Srs. Consultores e Procuradores de Casas Legislativas, dentre os quais ressalto a presença da Dra. Sueli Guimarães, da Câmara dos Deputados; demais participantes deste fórum técnico, entre eles, os alunos das instituições de ensino Izabela Hendrix, PUC, UFMG e outras. Após quase 25 anos de trabalho nesta Assembléia Legislativa, em que exerci o cargo de Redatora de Documentos Parlamentares, a consultoria e o assessoramento técnico-legislativos, passei a dedicar-me ao magistério na Escola do Legislativo, bem como à pesquisa na área do processo legislativo e, em razão da prática da redação parlamentar, vim a interessar-me pela técnica legislativa. Como outros colegas, participei dos grupos de trabalho responsáveis pelo assessoramento aos Deputados constituintes, na elaboração do projeto de que resultou a Constituição do Estado, e à Mesa da Assembléia, na redação do anteprojeto do Regimento Interno da Casa e de outras proposições que se converteram em normas jurídicas. A repetida participação em seminários e cursos promovidos pela Assembléia Legislativa do Estado para atualização de seus servidores, bem como de agentes públicos municipais, além das constantes atividades de redação e revisão de anteprojetos de atos normativos, na própria Assembléia Legislativa e em outras instituições, conduziu-me à necessidade de estudos cada vez mais detalhados acerca da técnica legislativa. Pude, então, constatar a carência de fontes de pesquisa, que, a par de tratarem especificamente do tema proposto, viessem a suprir a falta de bibliografia a ele pertinente. Essas são, em síntese, as razões que me levaram a eleger a técnica legislativa como objeto de estudo na dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito da UFMG, no dia 5/2/2002, e tema de um livro a ser lançado em breve. O estudo foi sobre a técnica legislativa como objeto da ciência do Direito e se baseou não só na legislação, na doutrina e na jurisprudência, mas também e em grande parte na experiência adquirida nesta Assembléia Legislativa. Tais razões certamente motivaram o honroso convite a mim dirigido pelo Exmo. Sr. Presidente desta Assembléia Legislativa, Deputado Antônio Júlio. Meu sincero agradecimento à Mesa e a todos os parlamentares da Assembléia de Minas pela oportunidade ímpar de participar como conferencista, ao lado de renomados juristas e especialistas na matéria em estudo, entre eles, a Profa. Carmen Lúcia Antunes Rocha, os parlamentares, representados pelo Deputado Cabo Morais, e os debatedores já citados, de um fórum técnico de tal significado para a vida jurídica e política do Estado, dos demais entes da Federação brasileira, do País, enfim. Meu agradecimento também a Marcílio França Castro, um dos colegas que se destacam pelo notável conhecimento na área de técnica legislativa, pelos contatos e pelas informações a respeito do evento que ora se realiza. Passo a tratar do tema que me foi proposto, “A Consolidação como Objeto da Técnica Legislativa”, valendo-me, de início, das palavras de Tércio Sampaio Ferraz Júnior: “Vamos falar do discurso das leis, do discurso dos códigos, da norma como discurso. As considerações que se seguem têm correspondência com o discurso que estabelece a norma, que não deve ser entendido apenas como o discurso legislativo, pois é mais amplo. A consolidação das leis é, sem dúvida, objeto da técnica legislativa, pela razão primeira de estar prevista, no parágrafo único do art. 59 da Constituição da República, como um dos atos a serem disciplinados na lei complementar nele requerida, que veio a ser a Lei Complementar nº 95, de 26/2/98, alterada pela Lei Complementar nº 107, de 26/4/2001, esta resultante do Projeto de Lei Complementar nº 23/99 (nº 45/2000 - Complementar no Senado Federal), de iniciativa presidencial. Com efeito, dispõe o parágrafo citado, que se insere no artigo que relaciona as espécies normativas cuja elaboração está compreendida no processo legislativo: “Parágrafo único - Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”. Não decorresse do comando constitucional a caracterização dos procedimentos de consolidação como afetos à técnica legislativa - da mesma forma que os de elaboração, redação e alteração das leis - aquela decorreria do fato de a consolidação, tal como prevista na legislação brasileira em vigor, consistir em exame, triagem, seleção e posterior reunião de leis em coletâneas, observados critérios preestabelecidos, com o objetivo de depurá-las de disposições não mais vigentes ou de flagrantes impropriedades formais. Além da consolidação, que é tema do nosso estudo, a lei complementar traz normas sobre a elaboração, a redação e a alteração das leis. A elaboração das leis é um processo que se inicia antes mesmo da redação da lei e envolve um processo de reflexão sobre a matéria a ser tratada. A respeito disso, hoje a doutrina recomenda - e a própria legislação brasileira prevê - que haja uma lista, a chamada “check list”, em que se fazem perguntas a respeito da necessidade do ato normativo, da conveniência de ser elaborado, da oportunidade, da sua definição, da sua identificação entre as espécies normativas, dos resultados, dos efeitos que pode trazer à sociedade. Então, além da participação popular, que hoje é prevista na Constituição não só em relação à iniciativa de projetos de lei, desde que haja o cumprimento de requisitos constitucionais, como número de eleitores que vão assinar o projeto e outras exigências para que se garanta a representatividade da iniciativa, os cidadãos podem e devem ter participação nas audiências públicas regionais, podem apresentar petições, reclamações, queixas de qualquer natureza contra atos de autoridade pública e podem fazer chegar ao Legislativo as suas reivindicações, as suas aspirações. Portanto, o processo de elaboração compreende todo o envolvimento dos cidadãos, porque, além de haver representantes que, no parlamento, apresentam os projetos, discutem e votam os projetos, já que vivemos a democracia representativa, ainda existe a participação, a previsão da representação direta dos cidadãos por esse e outros instrumentos, como o referendo, o plebiscito, que a Constituição prevê. A redação é a tarefa material de concepção do texto, é a montagem do texto legal. Assim, o legislador deve-se preocupar com as palavras que vai empregar, com a articulação do texto, com a sua divisão e com todos os aspectos que envolvem a redação de um texto legal. E a alteração decorre da própria evolução da sociedade. A lei em vigor pode durar muito, mas não é eterna. É preciso que seja alterada de acordo com as necessidades. Então, a Lei Complementar nº 95 prevê os procedimentos de alteração das leis com as recomendações que o legislador deve seguir para que haja um trabalho, do ponto de vista técnico, que não deixe ou, pelo menos, tenha o objetivo de não deixar lacunas, ou ambigüidades, ou imprecisões na legislação. Finalmente, a consolidação, que é o quarto dos atos previstos como objeto da técnica legislativa. Como se assinalou, a matéria é regida pela Lei Complementar nº 95, de 1998, com a redação dada pela Lei Complementar nº 107, de 2001, devendo-se mencionar ainda o Decreto nº 4.176, de 28/3/2002, que “estabelece normas e diretrizes para a elaboração, a redação, a alteração, a consolidação e o encaminhamento ao Presidente da República de projetos de atos normativos de competência dos órgãos do Poder Executivo Federal, e dá outras providências”. Este revogou o Decreto nº 2.954, de 29/1/99, e os decretos que o alteraram. A multiplicidade de leis que coexistem no ordenamento jurídico brasileiro, muitas vezes redigidas de forma lacunosa, obscura ou ambígua ou revestidas de caráter fragmentário - como foi ressaltado hoje, em várias oportunidades -, em face de sucessivas alterações que incidem ou repercutem no seu texto, causa apreensão ao jurista e deveria ser alvo de profunda reflexão por parte do legislador. Diz Pinto Ferreira: “Há mesmo uma inflação legislativa, excesso de leis, que tem aconselhado inclusive o uso da cibernética jurídica”. Quanto ao intérprete, vê-se diante de um impasse: saber qual a lei que desapareceu da cena jurídica e qual a que assumiu o papel da que se foi. Essa é uma indagação feita por Antão de Moraes, num dos primeiros trabalhos sobre técnica legislativa que se registram no País. Já na monarquia portuguesa, em razão desse impasse, foram elaboradas as ordenações, que, como se sabe, são as compilações das antigas leis portuguesas, feitas com o objetivo não só de as reunir em um corpo único, mas também de as tornar mais claras, evitando incoerências e contradições. Anteriormente à edição da Lei Complementar nº 95, de 1998, a matéria era disciplinada, de forma parcial ou sucinta, em atos normativos esparsos, ou regida por normas não escritas ou praxes adotadas em Casas Legislativas. Registram-se, no Estado de Minas Gerais, o Decreto nº 12.602, de 29/4/70, que “estabelece sistemática para a elaboração de documento normativo do Poder Executivo”, e o Decreto nº 12.747, de 16/5/70, que “dispõe sobre a consolidação da legislação estadual”. Consultados os textos constitucionais vigentes nos Estados da Federação, verifica-se que a maioria deles prevê a edição de lei complementar que discipline a técnica legislativa e, por conseguinte, a consolidação das leis. Nos Estados que não contêm previsão de lei complementar relativa à matéria - como é o caso de Minas Gerais -, entende-se que a técnica legislativa deva ser objeto de lei ordinária. Em Minas Gerais, já existe, como foi assinalado hoje, proposta de regulação da matéria consubstanciada no Projeto de Lei nº 53/99, o qual, seguindo os parâmetros da Lei Complementar nº 95, de 1998, mas adequando a matéria, quando necessário ou conveniente, a peculiaridades do processo legislativo estadual, “dispõe sobre a elaboração, a alteração e a consolidação das leis no Estado de Minas Gerais”. No Direito Comparado, variadas fórmulas de limpeza e reorganização do ordenamento jurídico têm sido adotadas. Basicamente há dois procedimentos que podem, na prática, confundir-se, mas, na verdade, não se confundem. Ao lado da consolidação, de que estamos tratando, que se caracteriza pela coleta, conjugação e sistematização formal das leis em vigor, sem alterações substanciais, registra-se a codificação, que consiste na unificação das normas relativas a determinada matéria, com reforma substancial da disciplina até então existente, inovando no ordenamento jurídico. No caso da codificação, que não é especificamente o tema da exposição, é preciso que se diga que aquilo que se chama de código, muitas vezes, não o é, segundo grande parte dos juristas, pois o código disciplina matérias que se correlacionam por pertencerem a uma determinada área do direito e são organizadas e sistematizadas segundo critérios predeterminados, seguindo uma sistemática muito diferente de determinados atos que se denominam códigos. Muitas vezes, fala-se em Código de Trânsito ou Código de Pesca, mas, na verdade, segundo Caio Mário da Silva Pereira, esses atos normativos, por exemplo, não seriam códigos, no verdadeiro sentido da palavra. Seria código o que reconhecemos como tal, como o Código Civil ou o Código Penal, que são textos em que os assuntos se correlacionam de forma sistemática. É uma das exceções ao princípio contido na Lei Complementar nº 95, que cada lei deverá tratar de um único assunto, ela excetua a codificação justamente porque, na codificação, não haverá um só assunto, mas assuntos que se correlacionam por pertencerem a uma determinada área do direito, como assinalei. No direito constitucional italiano, é prevista delegação legislativa para a redação, em texto único, de normas contidas em vários textos da mesma natureza, mas expedidos em momentos diversos. Há, entretanto, diferença fundamental entre textos únicos delegados, caso em que existe a faculdade não só de coordenação, mas também de modificação, de integração e, eventualmente, de interpretação autêntica e texto único de mera coordenação, ou seja, de simples compilação, no qual a força de lei das normas singulares, nele reunidas, permanece sempre ancorada às leis das quais as mesmas normas são tiradas. José Héctor Meehan observa que um dos fatores que incidem de forma decisiva na eficácia dos atos legislativos é o grau de conhecimento real, pleno e seguro que de suas disposições tenham os particulares e os próprios agentes públicos encarregados de aplicá-las e velar por seu cumprimento. Ressalta o mesmo autor que, entre os diversos tipos de compilações ou coleções legislativas que se publicam, deve-se distinguir as de caráter geral, que tendem a incluir todos os atos legislativos editados, qualquer que seja sua temática ou matéria, até determinado momento, das de caráter especial, que somente se ocupam dos atos legislativos referentes a determinadas matérias; as que incidem sobre todos os atos legislativos elaborados até determinado momento, estejam ou não em vigor, das que incorporam somente os atos vigentes a partir da data da sua publicação; as efetuadas circunstancialmente, cuja continuação, por conseguinte, não esteja prevista, distinguem-se das que pretendem assumir um caráter permanente, por serem realizadas com a previsão de atualização futura. Estas últimas, por sua vez, poderão ser fechadas, isto é, somente passíveis de atualização, posteriormente, por agregação de outros corpos (tomos, fascículos, etc.), ou abertas, quando estiverem elaboradas de tal maneira, que sua atualização possa realizar-se por integração (introdução do novo material no corpo originário da compilação). Na doutrina venezuelana, encontramos, na obra de Belkys Velazo, procedimentos já previstos na consolidação das leis brasileiras. A autora diz que são procedimentos próprios de todo procedimento de consolidação, que são os seguintes: - combinar ou refundir todas as leis com suas respectivas alterações, o que é mais importante ainda nos ordenamentos jurídicos, em que somente se publica o texto da reforma, e não o reformado. Muitas vezes - é o caso que existe no Brasil -, temos a publicação das leis alteradoras de leis em vigor, mas não temos, em caráter ordinário ou sistemático, a publicação do texto com as alterações que nele foram inseridas; - renumerar seções, capítulos ou artigos e alterar as remissões, quando necessário; - excluir do texto consolidado as normas que não estejam em vigor - desatualizadas, inconstitucionais ou derrogadas implicitamente - , mantendo, no entanto, as prescrições que não tenham sido aplicadas por inocorrência, na prática, dos fatos nelas previstos; - eliminar as disposições transitórias que já não tenham eficácia; - dividir os artigos demasiadamente longos ou estruturá-los em parágrafos, sem alterar a ordem das palavras; - atualizar nomes de departamentos, órgãos, instrumentos normativos, etc. - corrigir, quando necessário e possível, o modo, o tempo e a voz dos verbos; - reordenar, mediante um sistema de classificação lógica, as leis ou parte de leis que, por similitude de objeto, devam estar reunidas, com o que se eliminam as leis duplicadas, porque, além de haver disposições duplicadas em leis, pode haver leis duplicadas; - simplificar leis que tenham sido originalmente redigidas em linguagem obscura; - ajustar os procedimentos de consolidação da legislação aos meios informáticos. Considerada a natureza da consolidação a ser efetuada, podem-se distinguir dois procedimentos básicos, o que implica a alteração do conteúdo das leis a serem consolidadas e, por isso, depende de apreciação ou reapreciação, pelo Poder Legislativo, de toda a matéria nelas contidas; e o que requer a mera coordenação ou compilação das leis, segundo critérios predeterminados, não envolvendo alteração de mérito. Essa segunda modalidade de consolidação é a prevista na Lei Complementar nº 95, de 1998, cujo art. 13, com a redação dada pela Lei Complementar nº 107, já foi mencionado. Na verdade, esse artigo prevê a reunião das leis federais em codificações e consolidações, que são dois tipos de procedimentos distintos, como já foi visto, integradas por volumes contendo matérias conexas ou afins, constituindo, no todo, a consolidação da legislação federal. No mesmo dispositivo, é previsto que, no momento em que a consolidação se faz, há a revogação formal das leis incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance da norma e sem interrupção da sua força normativa. Falaremos novamente sobre a revogação formal dos dispositivos consolidados. Quanto às alterações da consolidação possíveis, foram mencionadas hoje, pela manhã, e também mencionei muitos deles, na citação da autora venezuelana. Farei algumas considerações a respeito de algumas providências previstas no dispositivo da Lei Complementar nº 95, que devem ser, expressa e fundamentadamente, justificadas, quando da consolidação. A fonte de informação que serviu de base para aquela providência deve ser indicada com precisão. Essas providências são as que estão citadas por último, no dispositivo: - supressão de dispositivos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, cuja suspensão tenha sido determinada pelo Senado Federal; - indicação de dispositivos não recepcionados pela Constituição Federal; - declaração expressa de revogação de dispositivos implicitamente revogados por leis posteriores. As leis que constituem o âmbito de aplicação da Lei Complementar nº 95, de 1998, e, portanto, o objeto da consolidação de que se trata são as nacionais e as federais, uma vez que, como esclarece Geraldo Ataliba, o Congresso Nacional reúne “a dupla qualidade de Legislativo Federal e Legislativo Nacional”. O princípio consignado no inciso I do art. 7º da Lei Complementar nº 95, segundo o qual “excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto”, não é desatendido no procedimento de consolidação, pelas seguintes razões: - cada projeto de lei de consolidação visa a integrar, num único diploma legal, todas as leis pertinentes à mesma matéria; - a consolidação da legislação federal, constituída ao final pela reunião de todas as leis federais em codificações e consolidações, integradas por volumes contendo matérias conexas ou afins, não estará adstrita a um único objeto, segundo critério semelhante ao aplicável às codificações, que, por sua própria natureza, não se limitam ao tratamento individualizado ou especial de determinado assunto ou área de atividade. A menção à possibilidade de novas divisões no texto legal remete- nos aos princípios da Lei Complementar nº 95 a respeito da articulação dos textos legais e à obtenção de ordem lógica na sua redação, considerado o artigo como unidade básica e, portanto, como o ponto de partida de qualquer divisão ou agrupamento que utilize o legislador. Segundo o inciso II do art. 10 da citada lei complementar, “os artigos desdobrar-se-ão em parágrafos ou em incisos; os parágrafos, em incisos; os incisos, em alíneas, e as alíneas, em itens”. Os incisos V e VIII do mesmo artigo dispõem, respectivamente: “V - o agrupamento de artigos poderá constituir subseções; o de subseções, a seção; o de seções, o capítulo; o de capítulos, o título; o de títulos, o livro e o de livros, a parte; VIII - a composição prevista no inciso V poderá também compreender agrupamentos em disposições preliminares, gerais, finais ou transitórias, conforme necessário”. Se o procedimento de consolidação admite diferente colocação e numeração dos dispositivos consolidados, o mesmo não se verifica, especialmente quanto à numeração de artigo e de unidades superiores a este. É o caso da seção, do capítulo e do título, que não podem ser renumerados. Isso ocorre no processo de alteração das leis. Mas estamos tratando de consolidação. Nesse procedimento não existe a proibição, mesmo porque faz parte do processo de consolidação a reorganização do texto. A Lei Complementar nº 95 veda, no caso da alteração, mesmo quando recomendável, qualquer renumeração de artigos e de unidades a eles superiores. Nesse caso, deve ser repetido o número do dispositivo imediatamente anterior, seguido de letra do alfabeto. Então, tantas quantas forem as alterações, tantas letras do alfabeto serão utilizadas. A Lei Complementar nº 95 não veda que unidades inferiores ao artigo sejam renumeradas, como é o caso dos parágrafos, dos incisos, das alíneas e dos itens. Analisando essa prescrição, podemos concluir que se usarmos, por exemplo, letras do alfabeto no caso das alíneas, poderemos chegar à repetição da mesma letra. Não seria uma indicação adequada. Considerada a questão sob outro prisma, o que se alega para que os artigos não sejam renumerados numa alteração de leis é que os dispositivos devem ser conhecidos pela numeração que têm. Por exemplo, como disse o Dr. Marcelo Leonardo, ao mencionarmos o art. 171 do Código Penal, as pessoas já sabem do que se trata. Mas existe outra razão além dessa: quando a numeração dos dispositivos é alterada, as remissões ficam prejudicadas. Mas continuará havendo problemas com relação às unidades menores, porque pode haver, por exemplo, referência ao inciso do parágrafo do artigo tal. Se foi renumerado, a remissão ficará prejudicada. Mas isso não é preocupação do consolidador, mas do legislador, quando se trata de alterar a lei. A própria natureza do procedimento consolidatório justifica a fusão de disposições repetitivas ou de valor normativo idêntico, a atualização de termos, de expressões e de valores monetários - multas expressas em valores desatualizados -, a eliminação de ambigüidades decorrentes do mau uso do vernáculo, a homogeneização terminológica do texto, a supressão de dispositivos declarados inconstitucionais pelo STF, ou não recepcionados pela Constituição Federal, e a declaração expressa de revogação de dispositivos implicitamente revogados por leis posteriores. As alterações que visem à eliminação de ambigüidades e à atualização e homogeneização terminológicas do texto dizem respeito à redação das disposições normativas, na qual devem ser atendidas as exigências de clareza e precisão, segundo as normas estabelecidas no art. 11 da Lei Complementar nº 95. A propósito das mencionadas exigências, lembra-se, a título de ilustração, proposta de alteração, acompanhada de justificativa, formulada por Rui Barbosa, no parecer sobre a redação do Código Civil, quanto à redação do inciso II do dispositivo identificado como art. 264: “Art. 264 - Ter-se-á por não escrita a convenção ou a cláusula: (...) II - Que contrarie qualquer disposição deste Código, rigorosamente obrigatória”. Foi a seguinte a redação proposta pelo notável jurista para o inciso II: “Que contravenha disposição absoluta da lei”. Suprimiu a expressão “rigorosamente obrigatória”. A justificativa apresentada foi a seguinte: “I - Rigorosamente obrigatória. Toda lei é rigorosamente obrigatória, ou não será lei. (...) Não sei, pois, onde se foi buscar a distinção implícita no texto deste artigo, entre leis rigorosamente e leis não rigorosamente obrigatórias. Todas, sendo leis, obrigarão, e com o mesmo rigor. Não importa que, a par das leis imperativas, haja as leis permissivas. A distinção entre umas e outras é puramente exterior, verbal”. Esse exemplo ilustra bem os termos que, muitas vezes, são usados desnecessariamente em leis. Existem muitos advérbios e adjetivações que não são necessários. Segundo a lei, não devemos usar adjetivação inútil. Digo o mesmo a respeito dos advérbios. Muitas vezes, a própria natureza da matéria exige um adjetivo. Por exemplo, no Código Penal, temos crime praticado por motivo fútil, por motivo torpe ou por violenta emoção. As palavra fútil, torpe e violenta não podem ser retiradas. É preciso saber distinguir em que momentos a palavra é dispensável e em que momentos faz parte, complementa ou integra o sentido do texto. A exposição de motivos que acompanha o projeto de lei complementar, de iniciativa do Presidente da República, do qual resultou a Lei Complementar nº 107, de 2001, que veio a alterar a Lei Complementar nº 95, de 1998, mostra que o objetivo da alteração foi especialmente o de cuidar da continuidade normativa, no que se refere às matérias consolidadas. Foi o que mencionei no início, dizendo que iria esclarecer. Não haverá novação normativa com a integração das leis consolidadas no novo diploma aglutinador dos demais. Temos o texto, disposição literal de lei, que pode ser alterado, segundo os procedimentos admissíveis no ato de consolidação, e norma, sentido ou significado da disposição em que se veicula o comando ou a vontade legislativa. O texto é diferente da norma. O texto literal pode ser alterado, atendendo aos critérios de um procedimento de consolidação. A norma não será alterada. Não haverá prejuízo da sua eficácia. A norma mantém a sua eficácia, sendo suprimida apenas a vigência de seus enunciados literais. Essa foi a exposição de motivos do projeto que deu origem à Lei Complementar nº 107. Observa-se que, com a nova redação dada à Lei Complementar nº 95, as previsões relativas à consolidação, à alteração e à própria redação das leis ficaram mais claras. A redação permite, a qualquer de nós, o entendimento, sem necessidade de um estudo aprofundado. A seguir, iria discorrer sobre algumas questões relativas ao processo legislativo, embora já tenham sido mencionadas. O processo legislativo foi previsto na Lei Complementar nº 95, com a nova redação, como um procedimento simplificado. O mais ficou reservado ao Regimento Interno de cada Casa do Congresso, que irá definir o processo legislativo. Já foram estabelecidos alguns critérios. A emenda de redação é permitida. A emenda de mérito não pode ser vedada, porque há o entendimento de que o parlamentar tem a iniciativa dos projetos de lei e das emendas. Haveria um procedimento diferente para esse tipo de emenda, que seria tratado como um projeto de lei independente e tramitaria segundo as normas de um projeto de lei. Outra questão que abordarei diz respeito à recepção das normas. O decreto que trata da consolidação dos atos do Executivo diz que “não podem ser consolidadas na mesma matriz de consolidação”. A matriz de consolidação é o texto básico que receberá as outras leis. Segundo o decreto, não podem ser reunidas na mesma matriz leis complementares e ordinárias. O decreto, em sua redação anterior, trazia a seguinte explicação: “em razão da diferença de quórum de aprovação”. Hoje, essa explicação não faz parte do decreto, mas se pode entender que seja uma das razões. Outra consideração é a de que nem sempre uma lei denominada como complementar ou ordinária tem aquele “status” jurídico, em razão do fenômeno da recepção. A Constituição pode ter previsto aquela matéria como de lei complementar, quando já era tratada numa lei ordinária, que foi recepcionada. São questões que o consolidador terá de enfrentar. Há matérias que não são passíveis de consolidação. Por exemplo, as leis consideradas particulares, de efeitos concretos ou especiais, por sua própria natureza, não são consolidáveis. Medidas provisórias também não são consolidáveis, porque se entende que, pela própria natureza transitória, provisória, não são passíveis de consolidação. As leis que, por exemplo, concedem determinado benefício a alguém, as leis que autorizam determinado ato em relação a um imóvel, a uma pessoa, leis especiais, de efeitos individuais ou de efeitos concretos, pela sua própria natureza não são consolidáveis. É digna de registro a previsão contida no Decreto nº 4.176 de consulta pública por meio da rede mundial de computadores e análise das sugestões então recebidas da sociedade como procedimentos anteriores ao encaminhamento da versão final do projeto de consolidação ao Congresso Nacional. Também é prevista a presença de comissão de especialistas escolhidos entre juristas de notável conhecimento sobre determinada área para colaborar nesse trabalho de consolidação. No Congresso Nacional, segundo informações obtidas por meio da Internet, matérias consideradas não passíveis de consolidação são os tratados e acordos internacionais, ainda que ratificados pelo Congresso. O tratamento dado pela legislação brasileira vigente à consolidação das leis e outros atos normativos é um tratamento minucioso, e a experiência oferecida nesse campo pelo Direito Comparado haverão de contribuir para que os textos legais tenham a clareza, a precisão e a objetividade necessárias, permitindo aos órgãos incumbidos dessa atividade, ao mesmo tempo sistematizadora, racionalizadora e democratizadora, o cumprimento de uma exigência do próprio estado democrático de direito, no qual, segundo adverte Norberto Bobbio, “nada pode permanecer confinado no espaço do mistério”, pois ao cidadão deve ser assegurada a possibilidade “de colocar os próprios olhos nos negócios que lhe dizem respeito e de deixar o mínimo espaço ao poder invisível”.