Pronunciamentos

MIGUEL ARROYO, Professor da Faculdade de Educação da Universidade Fedral de Minas Gerais - UFMG,

Discurso

Comenta o tema: "Políticas Sociais Básicas para a Cidadania, Saúde, Educação, Cultura, Lazer e Esporte".
Reunião 117ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 2ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 23/12/2000
Página 35, Coluna 2
Evento Seminário Legislativo: "Dez Anos do Estatuto da Criança e do Adolescente".
Assunto ASSISTÊNCIA SOCIAL. DIREITOS HUMANOS. MENOR.
Observação Participantes dos debates: Maria das Mercês Pinto Mesquita, Pe. Mário Pozzoli, Maria Cristina, Ângela Carneiro, Patrícia.

117ª REUNIÃO ESPECIAL DA 2ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 29/11/2000 Palavras do Sr. Miguel Arroyo Bom dia para todos. Em primeiro lugar, quero agradecer, com toda a sinceridade, esta oportunidade de estar aqui ao lado do Exmo. Sr. Deputado Dalmo Ribeiro Silva, que vai coordenar este debate; da Profa. Lúcia Pimentel, nossa colega na UFMG, e também da Ilma. Sra. Maria Alice Venâncio, Coordenadora de Promoção à Saúde da Mulher. É muito bom estar aqui ao lado de tantos colegas, educadoras e educadores, membros dos conselhos tutelares, profissionais que trabalham com a infância e com a saúde. A pergunta que vou formular é a seguinte: em que o Estatuto da Criança e do Adolescente redefine, pode redefinir ou nos ajudará a redefinir o olhar sobre as políticas sociais e, especificamente, sobre as políticas de educação básica? Serei sucinto, uma vez que cada um de nós tem pouco tempo. Vou enumerar cada uma das respostas que daria a essa pergunta. O Estatuto da Criança e do Adolescente redefine nosso olhar, nossas posturas políticas e práticas nas políticas sociais, principalmente de educação. Primeiro, redefine porque tenta superar uma concepção assistencialista das políticas sociais. Eu diria que ainda é uma concepção muito presente, sobretudo quando pensamos em políticas sociais para infância e adolescência pobre, marginalizada, excluída. Acho que o assistencialismo, sob qualquer manto, não ajuda a firmar políticas sérias e coerentes de educação, saúde, cultura, etc. A missão assistencialista termina sendo elitista, por compaixão dos pobres. Não temos direito de nos compadecer dos pobres, temos obrigação de respeitá-los. Parece-me que o Estatuto da Criança e do Adolescente nos coloca em outro patamar, no patamar dos direitos. Os direitos não são objeto de compaixão, mas de leis claras, firmes e seguras. Os direitos são para serem respeitados, porque são inerentes ao ser humano, não são para serem objeto de compadecimento. Insisto muito neste ponto, sobra compaixão para com os pobres neste País, vinda de qualquer área, seja de áreas religiosas, sentimentais, de programas, mas falta respeito humano para seres humanos. Isso me parece fundamental no Estatuto da Criança e do Adolescente. Transporta-nos ao modo como sempre tratamos a infância: com compaixão. Criamos os pobres para termos a satisfação de nos compadecer deles. Isso é injusto, denigre qualquer sociedade. Acho que o correto é colocar educação, saúde, infância e adolescência no campo dos direitos. É aí que se tem de colocar as políticas, as ações, as intervenções, no campo dos direitos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, que coloca a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, o que dificilmente conseguimos reconhecer. O adulto é sujeito de direitos, a criança ainda não, porque ainda não é adulta. A grande vantagem do Estatuto é que nos diz que a criança também é sujeito de direitos. Não é um possível sujeito de ter direitos, mas já o é. O segundo ponto, que me parece muito importante e nos ajuda a superar outra concepção muito forte entre nós, é a idéia de que a criança e o adolescente não são ninguém, apenas um futuro possível. A infância é importante enquanto futuro do País, é o futuro cidadão, é o futuro trabalhador. Nessa concepção, não avançamos. O Estatuto da Criança e do Adolescente nos diz que a criança e o adolescente são sujeito de direitos no presente. Olhar para a criança como um futuro adulto atrapalhou muito a educação, quando os professores não conseguem ver na sua frente, 30, 25, 40 crianças. Por um passe de mágica, apenas vêem o futuro candidato a vestibular, a concurso, à fábrica e a futuro trabalhador da fábrica. Tudo, menos a criança presente. As ruas estão cheias de propaganda: “Matricule o seu filho no colégio A, B ou C e garanta o seu futuro”. Quero garantir o presente de meus filhos e de meus netos. A infância não volta: não dá duas safras. Vivemos bem no tempo da infância ou negamos o direito a ela. O direito à infância transcende ao direito da adolescência. E o direito à adolescência transcende ao direito à vida adulta. Não só o adulto é sujeito de direitos, também a infância é sujeito de direitos. Quando se fala em educação para preparar para a cidadania, isso é falso. A criança não é um possível cidadão que, se bem preparado, terá direito a ser cidadão. A criança tem direito a ser cidadão independentemente de estudar ou não, ou ter ou não consciência crítica. O direito é inerente ao ser humano e não é condicionado a estar na escola, a ter consciência crítica ou a terminar a educação básica. Temos uma tradição muito condicionada dos direitos. Na realidade, a educação se tornou uma porteira excludente dos direitos. Só há direito para quem se ilustra, para o que faz a 8ª série ou trabalha, para quem tem o 2º grau. Isso é falso. Os direitos não se condicionam a nada. Nem à cor nem à raça nem à religião nem ao dinheiro nem à escolarização. Tem de haver clareza quanto a essas questões. Nós, educadores, temos errado muito condicionando a educação à consciência e à escola. Criamos um filtro para a cidadania, em vez de abrirmos as portas a ela como inerente à condição humana. O terceiro ponto é que o Estatuto da Criança e do Adolescente nos ajuda a separar os direitos do campo do mercado. Agora não temos mercado e, talvez, por isso, não possamos prometer educar para ter garantia de trabalho. O adolescente vem e diz: “Professor já me eduquei e não tenho trabalho”, ou então: “Já fiz até universidade e não tenho trabalho”. Passa-se a ser empregável. Com empregabilidade não se come. A função da escola não é preparar para o trabalho e para o mercado. Que mania tem o País de pensar que a escola deve preparar a pessoa para uma agência de emprego! Nos tempos da ditadura nos diziam isso. No entanto, agora estamos em outros tempos, nos tempos de direito. Não há idéia de que a educação é para preparar para o mercado e que os conteúdos da escola devem ser preparatórios para o mercado. A função da escola é garantir o direito de ser gente. É garantir o direito de viver a infância com dignidade e de ser sujeitos humanos totais em todos os tempos da vida. E também nos tempos da infância. A escola tem que se descolar do campo de mercado. Descolar a educação da saúde e a cultura do campo de mercado. Não é porque você é um trabalhador mais eficiente que a criança tem direito a estudar, mas sim porque é gente. Quanta dificuldade temos de reconhecer que o povo é gente! Reconhecemos que nossos filhos e netos são gente, mas não reconhecemos que o povo é gente. Essa concepção não nos ajuda, nos afasta. O quarto ponto são as bases materiais da cidadania. Temos uma visão muito romântica da cidadania. A cidadania não se constrói com ideologia, nem sequer com consciência crítica. A cidadania se constrói quando o ser humano tem condições materiais de viver com dignidade a vida humana. A criança se torna cidadã à medida que vive com dignidade a sua infância; o adolescente, à medida que vive com dignidade o seu tempo de adolescência ou a sua juventude. Temos de ter consciência disso. Nós, educadores, somos muito ilustrados. Acreditamos que, formando-se a consciência, a criança, um dia, será cidadã. Isso é mentira. Temos de ter consciência de que a cidadania está ligada à garantia do direito de ser gente. Temos de vincular a cidadania muito mais aos direitos sociais do que aos direitos políticos. Ao politizarmos a cidadania a desvinculamos da base material. Precisamos de leis que garantam as condições materiais de assistência. Bolsa-escola. Muito bem. Proibição ao trabalho infantil. Muito bem. No entanto, há muitas formas veladas de trabalho. Não à indignidade das casas ou dos arremedos de casas em que moram. Não a ter de viver na rua, porque isso é um local indigno para crianças e adolescentes. Temos de pensar mais nas bases materiais de produção de assistência à infância e à adolescência. Um país que não dá conta de suas crianças e adolescentes é indigno de ser país. Uma economia que não dá conta de suas crianças e adolescentes é indigna e porca, ainda que sejamos a 11ª economia do mundo. Precisamos ter clareza dessas questões. Uma escola que não tem uma base material digna para as crianças e os adolescentes não é uma escola, ainda que tenha bons currículos e bons profissionais. A base da cidadania é a materialidade. Como ser cidadão se não se tem emprego? Como ser cidadão se, a cada dia, se precisa lutar pela sobrevivência? Isso não é cidadania. Temos uma visão muito idealizada, romântica e fácil de cidadania. É muito fácil trabalhar no campo da cultura, da educação, das ideologias. Ninguém paga caro por isso. Alguém pode perguntar: você, como educador, está falando assim? Estou, porque tenho a consciência de que os processos educativos do ser humano passam pelas bases materiais. Já superei a concepção de que com bons discursos formamos bons cidadãos; de que com consciência crítica formamos bons cidadãos. Isso não adianta. Isso serve para aqueles que já resolveram os problemas materiais de sua existência. Podem se permitir esse luxo. Como vivem bem, podem filosofar. No entanto, aqueles que não vivem bem não podem filosofar. As condições materiais de existência das crianças são precaríssimas. Ou temos leis claras ou não adianta apenas deixá- las durante 4 horas na escola, sendo que depois voltarão ao lugar onde estavam. Passam 4 horas na escola. Mas onde estarão durante as 20 horas restantes? Essa é a grande questão, porque as 20 horas passadas indignamente nunca tornarão dignas as 4 horas. Tenham a certeza disso. O que defendo para a escola? Todos sabem que fui defensor da escola plural, que criamos. Agora, estamos defendendo a escola sagarana, em nível do Estado. Estou defendendo tudo isso. Qual das políticas educativas é a mais importante? A que não mexe só nos conteúdos, só nos métodos, mas em duas outras coisas importantes que garantem a cidadania. Primeiro, nas estruturas escolares. As escolas são indignas para os professores e para os educandos. As estruturas físicas das escolas são tão indignas quanto as moradias das crianças que as freqüentam. Dizer que temos escolas para todos é mentira. Temos pardieiros para todos, isso sim. Temos de investir ainda na materialidade das escolas, e isso tem de ficar muito claro. Tem-se de investir em políticas de construção de escolas fisicamente dignas, materialmente dignas. Segundo: vale a política que mexer nas estruturas educativas da escola. As crianças estão nas escolas para quê? Para serem reprovadas no final do ano? Para ficarem entre os multirrepetentes durante quatro ou cinco anos e, depois, cansados de mofar, irem para o trabalho? Mudar isso depende de nós, educadores. A cultura da repetência é nefasta: não dá conta do Estatuto da Criança e do Adolescente. Uma vez, ameacei professores que teimavam em reprovar de apelar para os conselhos tutelares. Não basta que a criança esteja na escola, é preciso que não seja reprovada. Não temos o direito apenas de estar na escola; temos o direito de fazer o percurso escolar próprio de cada tempo. Um adolescente não pode conviver com uma criança de sete anos e ficar mofando na 1ª série. O direito à educação é mais do que estar na escola: é poder fazer um percurso próprio de seu tempo, de seu ciclo. Adolescente com adolescente, mesmo que não saiba ler. Ainda assim é adolescente e tem direito de conviver com adolescente. Vocês deveriam intervir quando se separa o adolescente dos seus colegas para misturá-los com criancinhas. Isso vai contra o Estatuto da Criança e do Adolescente. Primeiro, ele tem direito a ser adolescente. Não sabe ler, então não é adolescente? Ora, quem disse isso? Há ciclos de formação no desenvolvimento humano, e muita gente luta contra esses ciclos. Outro dia, li no “Estado de Minas”: “Caiu o índice de rendimento dos alunos de Minas Gerais, porque criaram os ciclos.” Falta de respeito. Quer dizer que, quando respeitamos a adolescência, cai o rendimento do adolescente? Onde já se viu isso? Dizem: “Como passar sem saber ler?” Ora, pelo menos passam. Antes nem passavam, e, porque passam, convivem com seus colegas, o que é um direito. Nossa obrigação é que passem sabendo ler, mas não temos o direito de impedi-los de passar com seus colegas, por não saberem ler. O Estatuto da Criança e do Adolescente exige o respeito aos ciclos da infância e da adolescência como ciclos próprios. Foi isso que fizemos na escola plural, em que muita gente joga pedras até hoje. É isso que está sendo feito na escola sagarana, em que também muita gente joga pedras, inclusive docentes revolucionários que lutam pelos seus direitos, mas que, ao chegar à escola, continuam com a mesma cultura da reprovação, da exclusão e da falta de respeito para com a condição de criança, para com a condição de adolescente. A escola que temos não é digna do Estatuto da Criança e do Adolescente. Temos de construir outra escola. E posso lhes dizer que essa pressão está vindo dos professores. Há milhares e milhares de professores conscientes disso. Estão criando escola plural, escola sem fronteiras, escola sagarana, escola-desafio, etc. Mas muita gente ainda diz que estamos passando os adolescentes para conviver com adolescentes, sem saber nada. É necessário respeitá-los como adolescentes. Vocês, que trabalham na defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente, reconheçam o que estamos fazendo, que é coisa séria. A escola pensou que o Estatuto da Criança e do Adolescente não tinha nada a ver com ela, que ia continuar fazendo o que sempre fez, desde o império, reprovando quem quisesse, retardando quem quisesse, retendo quem quisesse. O respeito pelas crianças, pelos adolescentes e pelos jovens faz parte da condição humana. Nem na escola pode-se passar por cima disso. Não há teoria pedagógica, teoria do currículo nem da avaliação que passe por cima disso. Não há cultura profissional excludente que tenha esse direito. A escola é muito excludente; ainda é uma das instituições mais peneiradoras de nossa sociedade. Isso está incrustado no sistema seriado, com o qual temos que acabar, porque é escorregadio, seletivo, peneirador. Em todas as partes do mundo já se acabou com isso. Somos os últimos, assim como, vergonhosamente, fomos os últimos a acabar com a escravidão. Agora somos os últimos a acabar com a cultura da seletividade inerente ao sistema seriado. Parabéns pela defesa e pela comemoração do Estatuto da Criança e do Adolescente. Insisto em que pressionem a escola para respeitar cada criança, cada adolescente, cada jovem em seu ciclo, em seu tempo, como criança, como adolescente, como jovem, como sujeito de direito.