MARIA IZABEL BEBELA RAMOS DE SIQUEIRA, Diretora do Conselho Estadual da Mulher.
Discurso
Legislatura 14ª legislatura, 2ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 08/04/2000
Página 26, Coluna 3
Evento Ciclo de Debates: Repensando o Brasil 500 Anos Depois.
Assunto CALENDÁRIO. MULHER.
Observação Participantes dos debates: Gilberto Magela da silva, Evaristo Garcia.
64ª REUNIÃO ESPECIAL DA 2ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 17/3/2000
Palavras da Sra. Maria Izabel Bebela Ramos de Siqueira
“Andávamos bem correndo por nossas matas/Ficávamos bem pescando em nossas águas/Flechávamos bem de longe a nossa caça/Corriam bem pelas ondas nossas igaras/Furávamos bem por gosto a nossa cara/Com a pele preta e vermelha mui bem pintada/Fazíamos bem de penas roupas de gala/Soavam bem pelos ares nossos maracás/Bebíamos bem do vinho que fermentava/Dormíamos bem nas redes das nossas tabas/Bem tratávamos o amigo que nos buscava/Mas os nossos inimigos, que bem matávamos!/Canoas altas e enormes aqui pararam/Homens como nunca vimos nos acenaram/Traziam roupas bonitas em muitas caixas/Davam-nos pentes e espelhos que rebrilhavam:/pediam-nos pau vermelho, que lhes cortávamos/Traziam gorros, tesouras, panos e facas:/pediam peixes e frutas, sagüins e araras/Já estávamos mal dormindo em nossas tabas:/partiam os estrangeiros, outros voltavam/Andávamos mal correndo em nossas matas:/longe, as canoas nas águas logo estrondavam./As moças dentro das ondas mal se banhavam;/borboletas, passarinhos já se assustavam/Pelas brenhas e lagoas fugia a caça/Mal corriam nossas flechas, lentas e fracas,/pois vimos flechas de fogo muito mais bravas,/com os novos homens que vieram e nos contaram/histórias de sua terra, extraordinárias,/e à nossa terra subiram e andar-andaram/Nossos bens e nossas vidas se misturaram;/e, dentro das nossas mortes, o sangue e as raças,/como a água doce dos rios e a água salgada/Ai, meus avós, que este mundo é coisa rara:/tudo começa de novo, quando se acaba!”
Acabei de ler o poema “Inocentes Tamoios”, de Cecília Meireles.
É com muito prazer que venho participar desse debate. Gostaria de cumprimentar todos os funcionários, assessores e Deputados desta Casa. Na pessoa do Deputado Durval Ângelo, quero cumprimentar a Assembléia pela feliz iniciativa de proporcionar a uma parcela do povo mineiro o exame dessa outra visão sobre a chegada dos portugueses no Brasil. É muito difícil falar depois do Ênio, e é com um nó atravessado na garganta que vou fazer o meu pronunciamento.
Dividi a minha fala, intitulada “Mulher - Brasil 500 anos. Da invisibilidade à afirmação da cidadania”, em dois tópicos. O primeiro foi denominado “Brasil 500 anos: Descobrimento ou ocupação? Da invisibilidade da mulher nos 400 anos de Brasil, prisioneira da casa e do preconceito”.
Na segunda parte, falarei sobre o século XX, da afirmação da cidadania feminina.
Tupis, guaranis, aimorés, tamoios, timbiras, caetés, goitecazes, carijós, pataxós, tupinambás, crenacarores, txucarramães, ianomanis, gês, tapuias, acaiacas, maxacalis. São lendas, como o boto cor-de-rosa, Mãe d’Água e o Saci-Pererê”? São lendas ou são nações, tribos de povos encontrados aqui pelos portugueses? Ao chegarem as terras que depois vieram a ser a nação brasileira, os portugueses encontraram aqui povos que estamos chamando de índios. Esses povos tinham uma cultura própria, comida peculiar, costumes próprios, diferentes dos que vieram, danças, guerras, religiões e andavam, na sua maioria, nus. É a civilização que estamos denominando indígena.
O processo de colonização portuguesa chegou e tomou conta dos índios, fizeram-nos trabalhar nas plantações de cana, na mineração do ouro e nos serviços domésticos. Entre os índios, a produção era coletiva, a distribuição do produto era igualitária, os meios de produção eram de todos, eram socializados. A partir da chegada dos portugueses, esses se tornaram os donos de tudo: da terra, dos meios de produção e da mão-de-obra.
Vou citar alguns exemplos: em 1616 - a povoação de Nossa Senhora de Belém, foco de preagem e extermínio dos povos indígenas da Amazônia. Em 1629 - o português Antônio Raposo Tavares, o mais feroz cabeça de Entrada, bandeirante da colônia, destrói as missões de Guarani de Guará, Paraná e escraviza 4 mil indígenas. Entre 1618 e 1641, esses ataques destroem 32 missões e escravizam 300.000 guaranis. Em 1637 - ocupação holandesa no Nordeste. Em 1662 - Lisboa ordena a extinção dos índios janduis no Ceará, no Rio Grande do Norte e na Paraíba.
Em 1695 - Dom Pedro II, de Portugal, premia com 50.000 réis o Capitão Furtado de Mendonça, por haver morto e cortado a cabeça do negro dos Palmares do Zumbi.
Em 1756 - batalha de Caibaté, derrota decisiva dos Guaranis para os colonialistas luso-espanhóis. Houve 1.200 mortos, entre eles Nicolau Lamguriú, herói da guerra guaranítica.
Em 1833 - a polícia ataca quilombo, na Ilha dos Marinheiros, no Rio Grande do Sul, mata o líder Lucas e prende dez escravos.
Em 1872 - grande expedição repressiva contra Quilombolas, guerrilheiros do Rosário, Sergipe. São encontrados em ranchos abandonados.
Os escravos negros foram mão-de-obra por excelência na grande unidade produtora de açúcar. Mulheres e homens trabalharam no plantio da cana, na limpeza dos canaviais, que consistia em livrá-los de ervas daninhas, na colheita, e no transporte da cana para as moendas. Trabalhavam de sol a sol, mulheres e homens. O trabalho no engenho era ininterrupto, só paravam para limpar as moendas. Nesse momento em que paravam era o descanso dos escravos. A moenda funcionava por volta de 18 a 20 horas por dia. Mas não foi nas grandes plantações açucareiras que predominou o trabalho escravo-negro, homens e mulheres serviam aos seus senhores, em suas casas, na criação do gado e no serviço doméstico. Na região mineradora, os negros dedicaram-se a árduas tarefas de extração de ouro e diamante. Muitas vezes foram também escravos domésticos, donos de vendas e negras do tabuleiro faziam quitutes, colocavam nos tabuleiros e vendiam. A solução foi a imigração e a vinda de estrangeiros para o Brasil; eram homens e mulheres pobres, de países europeus, que vieram procurando a situação de riqueza.
Onde estão as mulheres nos 400 anos de história do Brasil? Não há registro oficial. Entre o breve espaço de tempo entre o convite para fazer esse debate e agora, procurei em diferentes livros de história, em diferentes orientações bibliográficas, mas as referências são pontuais, pequenas e limitadas sobre a presença da mulher nos 400 anos de história. A história oficial não menciona a resistência e a contribuição dos quatro séculos de trabalho e luta da mulher brasileira.
A mulher índia, a mulher negra e a branca eram todas analfabetas e trabalhadoras. Nas capitanias hereditárias estavam presentes, como administradoras das Capitanias São Vicente e Pernambuco, duas mulheres: Ana Pimentel e Brites de Albuquerque. A mulher índia, a negra e a branca serviam aos senhores, cuidando dos filhos e trabalhando nos serviços domésticos. As mamelucas, as mulatas e as cafusas serviam aos senhores, trabalhando nos serviços domésticos e cuidando dos filhos.
É muito difícil para uma feminista de final de milênio falar sobre índias que foram assediadas sexualmente ora pelos portugueses ora pelos negros. É muito constrangedor falar na presença da mulher nesses 400 anos, tendo esse ponto como referência. As índias, as bugrinhas, serviam ao senhor no assédio sexual. As negras eram amas de leite dos filhos das brancas.
Na Capitania de Minas Gerais, por volta de 1779, havia a indústria caseira de fios e panos, com que se vestiam as famílias dos senhores e escravos. As mulheres manipulavam diariamente a roca ou o tear. Eram, em 1786, 58% das pessoas que tratavam os teares no Brasil. Na época das Bandeiras, Maria Dias Ferraz do Amaral aparece como heroína-Capivari. Destacam-se, também, os nomes de Maria Quitéria e Chiquinha Gonzaga.
Mas dedico essa fala de hoje às mulheres anônimas dos 400 anos da construção do Brasil. E chegamos ao século XX. Quanto ao século XVIII, deixo uma pergunta: quem engomava as anáguas das sinhás?
A segunda parte do século XX é a da afirmação da cidadania feminina. A partir do início do século XIX, já começamos a lutar por nossa afirmação, pela afirmação da cidadania da mulher. Nas lutas democráticas pela república e nas lutas contra a escravidão, as mulheres já estiveram presentes. Por iniciativa ainda tímida, bastante inexpressiva, olhadas com muito preconceito, as mulheres saíam às ruas para defender seus direitos. Começaram a ser editados jornais como o “Sexo Feminino”, o “Belo Sexo”, por corajosas mulheres.
Aqui, em Minas Gerais, três mulheres, de 18 a 20 anos, da cidade de Diamantina, em 1900, lançaram um jornal feminista. Na sociedade patriarcal, a educação feminina era restrita às boas maneiras, bordados e prendas domésticas. Rui Barbosa, inclusive, falou, nessa época, que “às mulheres, a agulha; aos homens, a pena”, definindo bem os espaços de um e de outro sexo. A mulher começa a trilhar o seu caminho por sua afirmação como cidadã, sendo a luta mais expressiva, dessa época, a travada pelo voto, o “sufragismo”. O voto foi conseguido em 1932, e daí para a frente as mulheres não mais pararam de lutar a favor de seus direitos.
E o século XX, a partir da inserção da mulher no mercado de trabalho, ela não mais parou de lutar pela afirmação de sua condição de cidadã. As analfabetas do primeiro momento do século deixaram a marca da luta pelo saber e, enquanto não conseguiram que, em 1906, aqui em Belo Horizonte, fosse inaugurada uma escola própria para a educação de mulheres não se sentiram satisfeitas. Nesse trabalho de luta em função da sua cidadania, a mulher conseguiu, na Assembléia Constituinte de 1988, inscrever-se com suas próprias reivindicações, ditas específicas, lutando por creche.
Estávamos na Praça 7, fazendo um movimento em que recolhíamos assinaturas com pedido de que a criação de creches passasse a ser uma norma constitucional, e um grupo de advogadas nos disse não se tratar o assunto de matéria constitucional e que, portanto, isso não poderia ser colocado na Constituição. Hoje, encontra-se essa palavra, em dois momentos, na Constituição brasileira: quando se refere ao trabalho da mulher e à educação de criança. Temos que resistir para manter essas conquistas. Em todos os movimentos sociais, a presença da mulher é definitiva. No MST, a participação da mulher, há três anos, teve, como homenageada pelo Movimento Popular da Mulher, em Minas Gerais, Deolinda, Líder do Movimento dos Sem-Terra. A mulher esteve presente em todas as lutas democráticas. Mas a presença da mulher nas lutas sociais, sua presença como metade da população brasileira, metade das eleitoras do País, não transporta para o poder, principalmente para o poder político, essa força.
A Lucília, com certeza, abordará o assunto em seu livro. A inclusão de quotas, na legislação eleitoral, é um instrumento de que a mulher dispõe para a sua entrada nos partidos políticos e nas composições de chapas eleitorais. Isso ainda não se insere no cotidiano, não fazemos disso um mecanismo totalmente natural. O maior passo no caminho da emancipação feminina, além do voto, foi, sem dúvida, a inserção da mulher no mundo do trabalho. Mas também aí lutamos contra muitos preconceitos, haja vista a questão da exigência do atestado de ligadura de trompas para se conseguir um cargo. Nossa sociedade ainda não assumiu a função social da maternidade como sendo uma necessidade, achando que seu cumprimento é um papel da mulher.
A presença mais expressiva da força do trabalho feminino ainda se faz na prestação de serviço, no setor comercial e no comércio, em cargos mais baixos de funções administrativas. A presença da mulher no poder é mínima. Por exemplo, nesta Casa, a Assembléia Legislativa, em que há vagas para 77 Deputados, há apenas 5 Deputadas. Dessas cinco mulheres, quais serão as que têm a concepção feminista na condução da história?
Na década de 70, temos o movimento participativo da mulher no Movimento Feminino pela Anistia, o que demarca o seu posicionamento numa luta política.
A partir da década de 70, houve um enorme avanço nas conquistas das mulheres, sendo essa decretada a década da mulher. O ano de 1970 foi o Ano Internacional da Mulher, o que impulsionou a luta feminista pela sua organização.
A partir dos anos 80, conseguimos uma assessoria junto aos Governos para se criar um espaço de apoio à mulher, com políticas públicas de apoio à mulher.
Nos últimos 30 anos, a mulher esteve em todas as frentes de luta: no Movimento pela Anistia, no movimento das diretas Já, no “impeachement” e na Constituinte.
A organização sindical, que nos anos 30 era um espaço bastante masculino, começava a contar com a presença tímida da mulher, que era a grande presença em quatro categorias: as professoras, as domésticas, as costureiras e as comerciárias.
Essas categorias tinham suas bases formadas quase que maciçamente por mulheres. Não se transferia isso quando se falava na questão da direção da entidade. As direções de entidades sindicais também são espaços restritos dos homem. Mas, agora, são outros quinhentos da história. Para se construir uma nova sociedade, em que mulheres e homens se relacionem de maneira mais igual, é necessária a compreensão de que a luta da mulher está entrelaçada com a luta de classes. E dessa forma coloca-se o desafio para buscarmos um Brasil cheio de justiça social, de igualdade de gênero e raça, em que um ser humano não oprima o outro, um Brasil socialista. Muito obrigada.