Pronunciamentos

MARIA COELI SIMÕES PIRES, Professora de Direito Administrativo da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.

Discurso

Discursa sobre o tema: "A temporalidade da norma e o processo de consolidação de Leis, vigência e revogação do direito adquirido".
Reunião 366ª reunião ORDINÁRIA
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 42, Coluna 2
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Marcílio França Castro, Magda Arantes, José Alcione.

366ª REUNIÃO ORDINÁRIA DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 11/6/2002 Palavras da Sra. Maria Coeli Simões Pires Exmo. Sr. Deputado Eduardo Brandão, Presidente e coordenador desta Mesa, por meio de quem cumprimento os parlamentares mineiros; Exmo. Sr. Deputado Bonifácio de Andrada, grande entusiasta do processo de consolidação das leis federais; Dr. Eduardo Vieira Moreira, Secretário-Geral da Mesa da Assembléia; ao cumprimentá-lo, quero lembrar dois expoentes desta Casa Legislativa, que hoje encontram-se nos planos da luz: Dr. Adônis Martins Moreira e Dr. José Sebastião Moreira, dois grandes entusiastas desta temática. A eles, os agradecimentos pela iniciação nos bastidores deste parlamento, nos caminhos da técnica legislativa. Quero registrar os aplausos à Dra. Natália de Miranda Freire, que, com ciência e muita paciência, aqui fez muitos discípulos. Lembrando seu nome, homenageio Antônio Geraldo Pinto, José Ferber de Ávila, Araújo, Menelick e toda a nova geração, que aqui vejo, pessoas que abraçam a causa do Legislativo. Parabenizo a Mesa da Assembléia pela iniciativa de realizar um evento de tamanha importância. Agradeço à coordenação do fórum, por meio do Dr. Marcílio França Castro, pelo convite para trazer algumas reflexões sobre o tema. Srs. Deputados, senhores técnicos, professores, demais participantes, tentaremos fazer uma breve introdução do tema. Depois, tracejaremos o quadro do ordenamento jurídico brasileiro, embora despiciendo, depois de uma fala tão lúcida do nosso palestrante. Teceremos, também, breves comentários sobre a tarefa da racionalização das leis e tematizaremos o direito a partir de três elementos que consideramos importantes: sociedade, normatividade e tempo. Tentaremos aprofundar nossa reflexão sobre a questão do tempo. Sob a inspiração da modernidade, a idéia de ordem era conatural ao Direito, visto este como um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações e de normas de conduta a retratar a ilusão de uma sociedade homogênea. Mas já sob tal paradigma, a profusão de leis, a fragmentação da disciplina normativa, a incoerência, a obscuridade das prescrições compunham um quadro caótico de diversos ordenamentos jurídicos. Nesse contexto, o Brasil não é um exemplo isolado ou recente do indesejável fenômeno da inflação legislativa. Ocorre, porém, que, hodiernamente, razões quase universais tendem a pressionar ainda mais os sistemas normativos, por força das demandas de inclusão e da dinâmica estimulada pela complexidade funcional da sociedade, pela heterogenia que esta assume e pela perspectiva do Direito aberto, no contexto que se vem convencionando como o da pós-modernidade. Esta lógica de pressão sob ordenamento sugere mecanismos de racionalização para contraposição, a desordem legislativa ou, mesmo, um novo perfil de Direito positivo, informado por princípios e, assim, capaz de maior plasticidade para socorrer as múltiplas e variáveis demandas de normatização. Quero dizer, portanto, não só de mecanismos de racionalização, mas também refletir sobre a necessidade de um Direito mais enxuto, mais firmado nos princípios, para que possa conseguir atender às demandas de mudança, que são muito mais freqüentes. Na linha da primeira alternativa, observa-se que algum tratamento específico é dado à atividade de reorganização do ordenamento jurídico, mediante a previsão de formas de significação e depuração das leis, notadamente nos países europeus. A experiência foi também relatada pelo Deputado Bonifácio de Andrada. Importantes resenhas sobre as soluções desenvolvidas pela experiência externa nesses países europeus foi feita por Rodolfo Pagano. Temo como certo também que novo esforço vem sendo desenvolvido na consolidação de leis na França, no Canadá, na Itália e no Brasil, mais recentemente. Passemos a uma panorâmica sobre o nosso ordenamento jurídico. Os números da pesquisa especializada sobre o ordenamento brasileiro mostram a extensão da base normativa interna, uma exorbitância que afronta qualquer critério de racionalidade. Quadros apresentados por Ives Gandra Filho revelam que há cerca de 200.000 documentos legislativos federais, dos quais mais de 45.000 em vigor. Esse quadro apresenta-se ainda mais preocupante se tomado sob o prisma da variabilidade dos instrumentos normativos, mais de 20 formas, cuja compreensão só se faz possível a partir dos cortes temporais, tendo em vista os paradigmas constitucionais. Ainda impõe dificuldade maior a distinta natureza de que se revestem tais documentos, em face dos comandos que lhes constituem a fonte de validade. Têm força de lei; outros, não. Assim, a tradição de proliferação legislativa, aliada à paradoxal omissão do legislador em relação a questões cruciais, as peculiaridades do ordenamento, entremeado de medidas excepcionais, a usual técnica de revogação tácita, a criar incertezas, o vício da lei extravagante, as remissões feitas de forma insuficiente e, muitas vezes, com o propósito de enovelamento da normatividade, a ausência de prática de republicação de leis alteradas substancialmente. E, por fim, o desconhecimento por parte do Legislativo do comportamento do Executivo na aplicação dos comandos legislativos são fatores que comprometem sua compreensão, o que frustra sobremaneira o ideal democrático e a materialização do Direito e - por que não dizer? - inviabilizam a segura e responsável atuação do Legislativo pela falta do domínio do universo normativo no qual intervém. Caio Mário da Silva Pereira chega a dizer que a proliferação legislativa é o mais franco desmentido da presunção geral de conhecimento das leis. E, de fato, se o próprio parlamento não pode dominar todas as províncias da normatividade, o que dizer dos cidadãos? No entanto, há os que identificam como razão imediata das mazelas do ordenamento o estilo da Constituição vigente. Há quem afirme, referindo-se à Carta de 1988, que a solução para o caos da legislação é jogar no armário essa obra de copismo de esquerda. Equivocada visão. Mais que o modelo constitucional, a legislação reflete o estado da própria sociedade, a crise do Direito e da modernidade e a visão paradigmática do próprio tempo. Tal quadro, observadas as proporções, é o mesmo que se delineia no âmbito de Minas Gerais. Diante da realidade nacional, justificado sob o pálio do paradigma do Estado Democrático de Direito, o movimento de Brasília é voltado para a valorização da técnica legislativa como ciência e instrumento da democracia e para a racionalização ou reorganização do ordenamento jurídico, conquanto se deva colocar sob reflexão aprofundada a opção metodológica da consolidação. Merece também aplauso o esforço que, na esteira da União, ganha fôlego no âmbito de Estados como Minas Gerais. Um novo alento à democracia se vislumbra neste momento em que a matéria começa a ganhar importância na cadeia discursiva, especialmente entre juristas, lógicos, sociólogos, políticos e técnicos da produção legislativa. Nesse contexto, deve-se assinalar que as decisões acerca da simplificação e da reorganização do corpo Legislativo pertencem à esfera política, mas o discurso sobre as formas de simplificar é de ordem técnico- legislativa. E é, sobretudo, para os técnicos e juristas que se apresenta o desafio maior. Tal razão orienta o perfil do evento - fórum técnico. Assim, buscando fugir à tentação do fetiche da matéria, nesta Casa em que o tom político ecoa com força, tentaremos conduzir nossa fala pelo álveo da tecnicalidade e, certamente, sem sobressaltos. Talvez cause até sono. Que desafio é esse que se coloca aos que se propõem à tarefa de reorganização, racionalização ou consolidação do ordenamento? Para se aquilatar tal desafio tematizando a consolidação, como a recolha, a coordenação e a sistematização formal de leis em vigor, e como dito pelo Prof. Bonifácio de Andrada, sem alterações ou inovações substanciais, mister se faz recordar fala do Prof. João Baptista Vilella, que, referindo-se ao desconforto psicológico inerente à atividade do consolidador, lembra que lhe cabe um fazer que suscita, nas suas expressões paradoxistas, o sonho do impossível - formular sem produzir, reescrever sem alterar, dispor sem impor, eliminar mas não extinguir, criar o novo e, no entanto, manter o velho. Esse é o desafio. A advertência de Vilella sugere especiais limites ao consolidador, não obstante não se possa reduzir sua atividade ao âmbito da estrita neutralidade. Tal sorte de limitação, contudo, parece sugerir certa incompatibilidade entre a função legiferante e criadora do parlamento e a atividade estritamente condicionada de consolidação. De qualquer modo, o desafio material que se coloca ao consolidador é o de tomar o direito estático ou objetivo, confrontá-lo com as sucessivas estatuições no tempo, atento especialmente às tensões de incompatibilidades para identificação das possíveis revogações e conformação do núcleo da opção regulativa no seu conjunto. Essa conformação pode ser feita segundo critério temático, de acordo com outro método de ordenação, compartimentação, de distribuição topográfica dos conteúdos normativos, ou, ainda, segundo combinações que respondam às ordens de interesse da coletividade e às necessidades do direito positivo. Isto é, o desafio é buscar a simplificação das generalizações prevalecentes como ordenamento posto. Por outro lado, o desafio, sob a perspectiva temporal, é, sobretudo, o de conciliação do passado e do presente para adequação do ordenamento e para a anulação da distância cronocultural das regras, de modo a adequar as determinações preceituais da legislação ao sentido vigente no sistema. Pois bem, a tarefa de reorganização ou consolidação das leis obedece a um “iter”, a tecnicalidades e a métodos específicos, obedece a critérios variáveis de abrangência, envolve procedimentos e limites operacionais ou condicionamentos próprios acerca de conteúdos, conforme seja alçada ao parlamento, ao Executivo, ou a órgãos técnicos, e atende a critérios de simplificação e de ordenação. Há várias opções de consolidação. Do ponto de vista metodológico, o primeiro passo há de ser o conhecimento do universo normativo, a sua disposição cronológica geral, seguindo-se a disposição cronológica específica segundo o critério eleito. Só então é possível dar curso às operações técnicas de racionalização, a começar pela identificação do direito efetivamente em vigor. Na seqüência do ponto de vista técnico, pode-se falar, por exemplo, em categorização de operações relativas à sistemática, como exclusão de normas intrusas, fusão de disposições repetitivas, relativas à linguagem como normalização de grafia, atualização de denominações, homogeneização terminológica, eliminação de ambigüidades. E, no tocante às relações entre as normas, podemos falar em eliminação de normas declaradas inconstitucionais, atualização e adequação do texto tendo em vista derrogações expressas. Não é nosso propósito, contudo, discutir esses aspectos, objeto de cogitações por parte de outros palestrantes. O corte de nossa exposição sobre a racionalização das leis deve ser feito pela linha da temporalidade. Mesmo porque, em todo “iter” processual de simplificação ou racionalização, não se pode abstrair da temporalidade, seja ela a de edição do direito, seja a do presente, seja ainda e especialmente a do futuro, já que toda reorganização do direito tende a prepará-lo para o tempo vindouro. O elemento tempo, contudo, há de ser conjugado com outros que integram o direito. Para tecermos um pano de fundo para as considerações que pretendemos desenvolver daqui para frente, puxaremos, então, três fios diferentes que fazem a trama do direito: sociedade, normatividade e tempo. De fato, o direito, um dos mais sofisticados instrumentos civilizatórios, existe como mecanismo e resultado da evolução da sociedade e do Estado considerado em relação ao tempo e ao espaço que o circunstanciam. A sociedade, em suas múltiplas dimensões e heterogenia compõe, na linguagem de Luhman, um sistema global de comunicação, do qual o direito participa, seja como ordenação temporalmente válida, seja como concepção de valores para firmação de consensos, seja, ainda, como prática, o que, em última análise, invoca a tridimensionalidade do direito (fato, valor e norma), em contraposição às visões reducionistas do jusnaturalismo, do positivismo e do realismo jurídico. A correlação entre direito e sociedade impõe permanente tensão nessa linha relacional, sendo significativa a que se dá especialmente ao influxo de intenso câmbio de expectativas comportamentais que disputam seleção para se concretizarem no campo da experiência jurídica. Trata-se do que Luhman, ao desenvolver sua concepção acerca do direito, chama de redução de expectativas comportamentais. Segundo ele, “o comportamento social em um mundo altamente complexo e contingente exige a realização de reduções que possibilitem expectativas comportamentais recíprocas”. A redução dessas expectativas, no nível temporal, equivale à normatização, isto é, à estabilização das expectativas sociais. Daí Christiano Paixão Araújo Pinto direcionar o direito a uma função básica: “a generalização congruente de expectativas comportamentais normativas”. E, porque essa generalização e congruência se fazem segundo o critério da mais alta seletividade, o direito positivo vige, ganha validade formal e força de apoderamento da experiência jurídica. Tal função, que se cumpre pela positivação do direito, é informada pela imparcialidade do legislador na generalização de expectativas, diferentemente da imparcialidade do juiz, que se dá pela escolha da norma individual para cada uma das situações que o direito deve abrigar, sem exclusão. Eis porque o desafio do legislador é generalizar a expectativa, em contraposição ao papel do juiz, que é o de particularizar a solução segundo as expectativas generalizadas. A seleção de expectativas, ou sua positivação, varia de acordo com o processo histórico que a circunstância reflete, o crescente nível de complexidade da estrutura social, de acordo com mecanismos novos de validação e legitimação da normatividade. Se há inegável relação entre direito e sociedade, há de se reconhecer, também, a relação do direito com o tempo, uma vez que a temporalização da expectativa é o próprio sentido da positivação do direito. Daí, tendo em vista a inafastável referência do tempo à norma e aos fenômenos jurídicos, a importância de se compreender a concepção do termo jurídico. Oscar Tenório, analisando a relação entre tempo e norma, mostra a indissociabilidade desses elementos como noção fundamental do direito, sustentando que “o tempo é um dos pressupostos da norma jurídica”. De fato, a lei - no dizer de Recaséns Siches, “vida humana objetivada” - tem dimensão temporal, que lhe fixa o nascimento e a morte. O fenômeno jurídico, à sua vez, assentado na norma e sempre circunstanciado por tempo e espaço, atrai, também, a discussão acerca desses núcleos, transcendendo o campo de formação da lei para a seara de sua aplicação. O tempo jurídico é, assim, elemento científico do direito como produção, aplicação e controle ou interpretação e, como tal, é tratado ao influxo de sucessivos paradigmas de conhecimento. O tempo foi sempre considerado elemento primordial na organização das sociedades, seja sob inspiração utilitarista, seja como objeto do conhecimento filosófico, a partir mesmo da dimensão trágica da temporalidade do homem, uma vez que medir o tempo é cortejar a morte, é admitir a finitude... Assim, a percepção do fenômeno do fluxo do tempo segue a evolução da ciência, como lógica associação homem-tempo. Daí a multiplicidade de categorias temporais: o tempo do racionalismo, o do criticismo, o do idealismo, o do positivismo, o do marxismo, o tempo coletivo, o tempo fenomenológico, o tempo existencial, entre tantos. Malgrado a multiplicidade de teorias sobre o tempo, a visão de linearidade estabeleceu o primado, assentando-se o tempo jurídico na concepção unitarista da temporalidade, visão que tem prevalecido no direito, mesmo contra novas tendências da ciência. Sabe-se que a maneira como a ciência encara o tempo, nos dias atuais, vem sofrendo mudança radical. Tendência que se faz mais nítida quando se tomam em conta as contingências da pós- modernidade, sob cuja influência a noção de tempo experimenta drástica reconfiguração, graças aos avanços da tecnologia de comunicação (v. g. Internet), de mitigação das fronteiras nacionais e espaciais (v. g. globalização) e o surgimento de novas formas de conhecimento, não limitadas pelo rigor da lógica clássico-aristotélica. Sabe-se, igualmente, que o direito vem, no entanto, apresentando resistência à apropriação das novas formulações, preso a antigas e superadas concepções. Qualquer tentativa de reconfiguração da dimensão temporal do direito é recebida pela dogmática com reações hostis, enquanto os institutos jurídicos continuam informados pela noção linear e monolítica do tempo. Desse modo, apoiada em premissas da concepção unitária do tempo, persiste a teoria tradicional do tempo jurídico, tomado como noção espacializante - o tempo dividido em pedaços como o próprio espaço. O tempo jurídico, segundo a concepção clássica e a insuficiência das premissas do unitarismo temporal. Sob tal enfoque filosófico, o tempo jurídico é considerado em dupla perspectiva: estática e dinâmica. A primeira vislumbra-se no plano da normatividade abstrata, que é, em si, estático; a segunda diz respeito ao campo fenomenológico do direito. No campo estático, o tempo jurídico figura como elemento de edição do direito, e, por isso, de interpretação histórica, de sustentação do controle jurídico-formal da própria normatividade e como critério de integração e permanência desta no ordenamento. Nessa perspectiva, o passado prefigura o presente e o futuro. O tempo jurídico dinâmico revela-se no plano da aplicação, no qual a norma ganha fluidez e variabilidade próprias da seara fática. É dizer: é no momento em que a norma jurídica escapa ao tempo da abstração para alcançar a concreticidade ou facticidade que se projeta a dinâmica do tempo jurídico. Essas figurações tradicionais, apesar de importantes, são insuficientes. É que o próprio trato com a normatividade em abstrato não pode prescindir de múltiplas dimensões temporais, e a aplicação da lei ao caso concreto invoca não apenas a temporalidade desse caso, mas a historicidade dos sujeitos envolvidos, a temporalização da lei tomada como momento da conduta humana e a temporalidade coletiva, entre outras dimensões, o que desafia a capacidade do direito para a maior diversidade e abrangência de respostas e, por vezes, para enfrentar as contingências que escapam à linearidade das matrizes de regulação. E há que se enfatizar: não se constrói o direito, nem se maneja sua normatividade, nem se produz conhecimento no campo jurídico com abstração da temporalidade de referência dos sujeitos envolvidos, que, para além do tempo jurídico estrito e linear, trazem a temporalidade do eu, no presente, numa das possíveis molduras conceptuais de temporalidade mais abrangente. Ninguém abandona seu próprio tempo em nada que faz, nem o consolidador. Nesse sentido, as lições do filósofo Ivan Domingues, acerca da necessidade, da contingência e da liberdade no tempo histórico podem ser apropriadas para auxiliar na compreensão da historicidade do direito. Pode, especialmente, ajudar na compreensão da possibilidade de abertura da textura da ordem jurídica, já que a normatividade, assim como a história, não pode ser tomada como artificialização de uma unidade em perspectiva reducionista, fechada e totalizante do fenômeno jurídico. Em outras palavras: trata-se, no direito, da impossibilidade de cortes de tempos jurídicos lineares ou distendidos, do mesmo modo que é impossível reconhecer “uma história sem acontecimentos, sem ações e sem homens”. Luhman, à sua vez, apóia-se numa noção de tempo como interpretação social da realidade, desvinculada da experiência existencial e bem distinta da categoria temporal baseada na idéia de cronologia, sustentando ser o presente “o único ponto de partida e chegada, sendo o passado e o futuro linhas de horizontes”. Isso tem uma repercussão na reflexão sobre a normatividade. O passado não prefigura o futuro. Ele pode interceptar o futuro, mas este continua em aberto, para acontecer como tem de acontecer. Segundo sua concepção, por igual, é radicalmente transformada a função do passado. Na mesma linha, o futuro, que era apenas mera presentificação de uma escolha já decidida anteriormente ou um resultado de interceptação no presente, apresenta-se, segundo Luhman, aberto a um sem-fim de possibilidades, radicalmente diferente do passado. Daí porque posso ter leituras bastante novas de normas bastante velhas. O presente é vivido como um ponto de inflexão instantâneo entre passado e futuro. Sobre a importância do futuro para o direito, recapitula Ost: “As sociedades humanas são ávidas pela serenidade. Elas a procuraram durante muito tempo no passado. Em conseqüência de enorme reviravolta, elas a procuraram do lado do futuro, apoiando-se nas virtualidades”. (Tradução livre.) Há, portanto, relativização do passado e do futuro como decorrência da mudança de percepção do tempo e, no direito positivo, há uma repercussão importante dessa nova conexão de tempo. E os estudiosos fazem uma alerta para a necessidade de compreensão dessa mudança. Nesse sentido, Paixão enfatiza que “o futuro substitui o passado enquanto horizonte temporal predominante”. Vamos fazer aqui um parêntese, para dizer que a interpretação histórica tem sua importância relativizada. É muito mais importante colocar a norma sob a perspectiva do futuro. Eis que o passado perde sua força de determinação ou conformação do presente e do futuro. Defende, assim, que o tempo e o direito não podem mais ser concebidos na base de uma continuidade estrutural linear da natureza, como se os horizontes estivessem precondicionados, como se não pudesse o futuro ter outras possibilidades. Nessa vertente, vem a calhar o estudo desenvolvido (1985) por François Ost, que, a par de denunciar o caráter fragmentário da teorização nesse campo, abre novas perspectivas para a elaboração de uma teoria do tempo jurídico propriamente dito - e voltada para a discussão sobre os modos de articulação das distintas temporalidades no campo do direito. Ele começa por notar que a dogmática jurídica não desenvolve uma teoria global sobre o tempo no direito, limitando-se a analisar o problema de um ângulo técnico específico, qual seja o da validade e da eficácia da lei no tempo, não havendo uma visão sistemática da relação entre tempo e direito na literatura especializada. Ost não pretende esgotar a análise das várias temporalidades jurídicas, mas apenas dar conta dessa multiplicidade, de maneira a evidenciar a categoria temporal como elemento carente de mais profundas investigações sob a óptica jurídica. O estudo de Ost é, assim, forma de ruptura epistemológica, com a percepção jurídica estabilizada e instrumental do tempo. Para introduzir o estudo específico das diversas temporalidades jurídicas, Ost traz à luz a contribuição de Husserl, que relaciona as categorias do presente, do passado e do futuro com as três funções do poder: executiva, judiciária e legislativa: “O Executivo atua no tempo presente. Em contrapartida, surge o Juiz como o homem do passado. Sua missão consiste em dizer o direito estabelecido a propósito de fatos pretéritos. Enfim, o tempo do legislador é aquele do futuro. Pela atuação do legislador, o futuro permanece aberto”. A complexificação atual da teoria da tripartição das funções estatais não nega validade às idéias acima sumuladas, sendo, antes, fator indicativo da necessidade de se aprofundar a análise. Pois bem, com esse pano de fundo, Ost distingue sete temporalidades jurídicas diversas que podem ajudar na concepção da normatividade: 1ª - Tempo de fundação: É um tempo dito original, místico, fundador de um grupo social e transfigurado em sua constituição, que aspira à perenidade. 2ª - Tempo intemporal da dogmática jurídica: funda-se sobre a pretensa autoridade e validade permanente dos princípios e regras invocadas pela dogmática jurídica. Esse “presente omnitemporal” faz tábula rasa do contexto histórico da enunciação e da aplicação do direito positivo. 3ª - Tempo da instantaneidade: o instante isolado pode, como em um passe de mágica, criar diversas situações jurídicas que perduram no tempo, por força dessa magia inicial. Parece que isso não tem relação com a nossa fala, mas imaginem que o momento sagrado da promulgação da lei, e depois que ganha vigência, é de instantaneidade. E é isso que lhe comunica a força: um puro instante de razão, que tem o seu espaço. 4ª - Tempo de longa duração: liga-se à noção contínua do tempo. É graças ao tempo de longa duração que se tem o nascimento dos costumes, a acumulação de precedentes jurisprudenciais e a consolidação de situações de fato. É também por força desse quarto gênero que ocorrem no Direito fenômenos classificados por Ost como negativos: destruição de provas, superação das razões da lei e erosão dos textos normativos em vigor. O tempo faz com que as normas envelheçam. O pensamento jurídico moderno, amplamente orientado pelo positivismo, não leva em consideração a variável do tempo de longa duração, já que a missão do jurista esgota-se na simples análise do direito positivo vigente. Atualmente, no entanto, essa categoria do tempo tem sido utilizada pela escola do pluralismo jurídico como instrumento de estudo de ordens jurídicas diversas existentes sobre mesmo território, sobre a ordem jurídica das favelas e das colônias. Esse é um tempo que vem ganhando expressão. 5ª - Tempo prometeico: é o tempo do futuro, altamente valorizado. No direito positivo, a temporalidade prometeica sustenta a idéia de organização, de instrumentalização de alternativas e de antecipação de regulamentações jurídicas e, sobretudo, o estilo da legislação dirigente. Está voltada para o futuro. 6ª - Tempo revolucionário: a aceleração da história e o fervilhar de novas idéias fazem com que o tempo não apenas se projete para o futuro, mas dê à luz o próprio futuro. 7ª - Tempo de alternância entre o avanço e o retrocesso: esse é o tempo mais freqüente nas cogitações do direito. Após dar por findo o exame das sete variáveis temporais, Ost tenta encontrar um elemento comum a todas elas, assinalando como tal a aspiração à durabilidade e a sustentação de uma ordem de permanência. Explica que o direito necessita de um tempo que, renegando o que há de aleatório na existência, seja uma referência para a regulação das relações sociais e para a solução das contradições inerentes à sociedade. Entretanto, a durabilidade que o direito tem como escopo não é mera estratificação de solução numa linha cronológica. Assim sendo, a interação, a confrontação e a comunicação dos diversos paradigmas temporais podem oferecer ao intérprete e ao aplicador do Direito soluções até então inéditas. Outra não é a compreensão do fenômeno temporal e dos paradoxos que ele guarda, revelada pela fala de Carvalho Netto, que alude ao tempo “como o significado mesmo do ser do humano”. É o Menelick quem diz: “o autor percebe o tempo, pregnando o objeto da ciência, qualquer que seja ele, tendo em vista que a reflexão temporaliza os conceitos”. Isso tem muito a ver com a proposta de releitura do ordenamento jurídico. A reflexão sobre essa matéria temporaliza esse próprio exercício, como temporaliza os próprios conceitos, e explica-o como indisponibilidade, como passado reconstruído no presente e como contingência, como futuro no presente, mesmo projetado. Nessa linha, Carvalho Netto mostra que, na relação com o tempo, “a sociedade faz-se instável por si e assim produz contingência, já que, no presente, tudo também pode ser diverso. Assim, a legitimidade da sociedade moderna reside na impossibilidade de nela se produzir uma representação natural e sem concorrência da sociedade”. É impossível falarmos de um direito fechado e absolutamente pacificado. É esse o tempo, em sua complexidade, que deve compor os elementos da reflexão sobre a normatividade no tempo. As normas seguem a evolução da sociedade e se alimentam pelo mesmo processo histórico de desenvolvimento, para além da linha cronológica de um tempo contínuo. Desse modo, o binômio tempo e direito está sempre presente, referente este à normatividade como produção ou objeto de aplicação às relações, sendo igualmente o tempo elemento fundamental nas considerações sobre extinção ou modificação das leis, tudo a justificar o esforço da doutrina nos domínios da discussão sobre o tempo jurídico. E é sobretudo sob inspiração filosófica unitarista e no âmbito da teoria clássica da temporalidade jurídica que se extinguem a temporalidade estática e a dinâmica, que se desenvolvem as formulações encontradiças na doutrina e na jurisprudência sobre a vigência, a eficácia e a revogação da lei. Qualquer que seja a angulação das concepções de tempo, a discussão da lei como opção regulativa abstrata e o ajustamento do plano normativo ao da facticidade pressupõem a adequada apropriação das noções de vigência e eficácia, malgrado insuficientes para explicar os paradoxos da temporalidade. Kelsen distingue validade e eficácia, associando a primeira idéia à existência de uma norma que obriga no sentido do dever ser do direito, à sua vez, assentada em uma norma fundamental hipotética, que é a Constituição, e faz corresponder à segunda, que é a eficácia, a condição de ser do direito. É o dever ser e o ser a que se refere Kelsen. Miguel Reale adota o termo validade em sua “lata” noção, dele fazendo derivar a validade formal ou técnico-jurídica, inserida nos domínios da vigência; a validade social no sentido de eficácia ou efetividade, e a validade ética no sentido da fundamentação da norma. Vamos tratar, inicialmente, da vigência. A vigência está a dizer da faculdade impositiva da norma, “da executoriedade compulsória de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos essenciais à sua feitura ou elaboração”. Trata-se do reconhecimento no tempo de uma matriz de regulação - “a priori” válida - ou, então, para dizer, com Luhman, da estabilização de expectativas comportamentais selecionadas, mediante a sua imposição como ordem geral. Pode-se dizer, apropriando-se das idéias de Luhman, que a validade formal ou vigência do direito posto diz respeito à forma de seleção das expectativas e à sua generalização em abstrato; diz respeito à condição da positivação do direito e à integração de sua força como ordem geral que a todos submete. Em outras palavras, a norma produzida segundo os critérios estabelecidos pelo ordenamento passa a ter força obrigatória, após fixada sua existência pela publicação e configurada a sua vigência, conforme nela mesma estatuído. Tais condições articulam-se em três grupos distintos: da legitimidade subjetiva; da legitimidade “ratione materiae”; da legitimidade de procedimento. É certo que ao legislador cabe escolher o momento de entrada em vigor da nova lei. Entretanto, na falta de disposição a respeito, prevalece, no âmbito interno, a “vacatio legis” definida na Lei de Introdução. “E a própria lei de introdução e a doutrina relacionam-se em posições específicas, que vão nos ajudar a tratar a questão da vigência. Registro, no tocante às leis em vigor, que não cabe ao Legislativo e ao Executivo decretar a sua inconstitucionalidade. A matéria fica na alçada do Judiciário. O que se reconhece ao Legislativo e ao Executivo é o poder de recusar eficácia a lei flagrantemente inconstitucional, caso que cabe ao interessado, na aplicação da lei, ir a juízo para provar sua legitimidade. Feitas essas considerações sobre vigência, registram-se breves considerações sobre a eficácia. Esta refere-se à aplicação ou execução da norma jurídica e incide sobre conduta humana temporalizada. Diz respeito ao cumprimento efetivo do direito por parte da sociedade, ao reconhecimento do direito pela comunidade ou, mais particularmente, aos efeitos que a regra produz. No entanto, há leis que, mesmo vigentes, não ganham eficácia, situando-se em verdadeiro limbo da normatividade abstrata, não ganham curso no campo da realidade, não se revelam como momento de conduta humana. Falo daquelas leis que violentam a consciência coletiva, provocando reação da sociedade, das que entram em choque com a tradição de um povo ou não guardam correspondência com os valores imediatos dessa sociedade, daquelas que contrariam tendências e inclinações no seio da coletividade. Em alguns casos, não logram eficácia espontânea. Só são cumpridas de maneira compulsória e, às vezes, nem desse modo são cumpridas. Vê-se que tanto a vigência como a eficácia suscitam, irremediavelmente, o cotejo da norma com a linha do tempo jurídico. No tempo da vigência, o tempo jurídico opera como marco dessa normatividade abstrata ou de imposição de escolhas e expectativas comportamentais, ligando-se ao processo formativo e instintivo da normatividade e ao reconhecimento da autoridade de sua emanação no tempo, como ordem geral. No da eficácia, o tempo jurídico acompanha o caráter experimental dessa normatividade. A norma, como instrumento geral da sociedade, é informada pelo princípio da permanência com continuidade, mas, tendencialmente rígida e permanente, pode sofrer transformação ou extinção, por força da inexauribilidade da fonte formativa do direito. No dizer de Luhman, as normas jurídicas válidas tornam-se obsoletas ou mudam o próprio sentido ou escolha entre as expectativas, possibilidades ou funções, e, quando a sociedade muda radicalmente, novas normas as substituem. Daí porque, na visão tradicional, as leis nascem, duram, transformam-se e morrem pelo fluir natural ou por golpes, que as assaltam no tempo por força das mudanças decorrentes de demandas sociais. É certo também que as normas estarão mais protegidas conforme representem expectativas enfaticamente generalizadas e, assim, passíveis de plasticidade para adequação à própria sociedade mutante. Por isso afirma Caio Mário que a lei em vigor permanece vigente até que seja acolhida por força contrária. De fato, se não se destina a vigência temporária, permanece em vigor até que outra a modifique ou a revogue. Há revogações diversas. A mais comum é aquela que se verifica pelo processo da própria revogação. Há extinções diversas, mas a revogação é a forma mais comum e pode ocorrer de modo total, tomando o sentido de ab-rogação, abrangendo, além da lei, as disposições dela dependentes ou as acessórias, ou, de modo parcial, caracterizando-se como a derrogação. Por outro lado, a revogação pode ser expressa ou tácita. A primeira ocorre com a declaração extintiva inserta na lei, sendo essa forma a mais pacífica e segura. A revogação tácita ou indireta decorre de incompatibilidade entre a lei antiga e a nova. Sob a tensão do tempo, a dinâmica da vida comunica ao direito - e, assim, à lei - a lógica da permanência e da mutação e, por sua vez, o direito influencia a realidade, de modo que vida e direito reciprocamente se influenciam. Por isso, o direito não se constrói em processo linear, sem sobressaltos. Ao contrário, o direito positivo é vocacionado para surpreender a realidade. Fluindo em seu curso normal, a lei nova deve trazer efeito imediato sobre o maior número possível de relações, tudo como corolário do princípio universalmente consagrado de que a lei posterior revoga a anterior, mas tal efeito instintivo é a regra, opera “ex nunc”, a partir do momento em que nova vontade normativa substitui a precedente. Assim, a linha do tempo da normatividade desenrola-se segundo a tendência para disciplinar o presente e o futuro e, portanto, em posição de neutralidade com relação ao passado. A aludida neutralidade, contudo, há de ser compreendida no sentido de que a normatividade estabelecida no tempo estático é pregnada positivamente pelo tempo dinâmico, assim, sem vocação para regência da realidade passada. Já tomado sob a perspectiva dos entrechoques, o tempo jurídico dinâmico migra para o campo da intertemporalidade conflitual, situando-se neste ramo a questão da irretroatividade das leis e dos limites de retrooperância da normalidade jurídica, em última análise, as indagações sobre a aplicação de leis em conflito. Exatamente por fugirem à linearidade, os esquemas normativos incidentes sobre a realidade alimentada pela temporalidade dinâmica podem atrair a chamada intertemporalidade conflitual. É nesse campo que o traço de neutralidade do direito novo em relação ao passado, como regulação de conduta, pode relativizar o efeito “ex nunc” da lei nova, e a lei antiga pode, então, ter vida mitigada no entretempo jurídico para resguardo do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. A constatação da possibilidade de relativização está pressuposta na indagação de que a morte de uma lei e o nascimento de outra, caindo no fluxo da realidade, que perdura, impõe a indagação acerca da aplicabilidade da primeira ou da segunda, ou acerca da aplicabilidade de um sistema jurídico intermédio ou de adaptação. A identificação da lei aplicável quando instalado o conflito intertemporal refoge, no entanto, aos domínios do Legislativo. A ele cabe tão só respeitar os limites da retrooperância da lei nova no seu mister de produção legislativa e, naturalmente, a ele se reserva a faculdade de definição de um regime jurídico de adaptação. A solução da tensão entre segurança jurídica e justiça ou o denominado conflito de leis no tempo desenvolve-se mediante o ajustamento do plano normativo ao da facticidade no entretempo jurídico como tarefa de interpretação e aplicação do direito, a partir de operação que deve levar em conta as noções de tempo capazes de explicar a historicidade do direito, da norma, do caso concreto, dos sujeitos envolvidos e da sociedade a que se refere. Ciência social e historicidade são inseparáveis. O direito é, assim, historicidade. E variadas são as categorias temporais que disputam a intercessão das múltiplas historicidades, não sendo outra a noção que também se vislumbra na linguagem literária de Marcílio França Castro, ao discorrer sobre o “tempo da vertigem”, que não seja paradoxo da multiplicidade das dimensões temporais. Nesse tempo labiríntico, um mesmo sujeito se multiplica em vários, e suas histórias se dispersam em infinitas séries temporais. Dessa multiplicidade, surgem paralelismos, convergências, divergências. Todas as combinações de histórias são possíveis: mesmo as que se negam, ou se aniquilam por contradição, coexistem. Eis porque os móveis de segurança jurídica e de justiça que propulsam o direito são sempre, no presente, a instabilidade e a contingência, numa sociedade plural no seu desejo, na sua necessidade e na sua expressão.