MARIA COELI SIMÕES PIRES, Professora de Direito Administrativo da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
Discurso
Discursa sobre o tema: "A temporalidade da norma e o processo de
consolidação de Leis, vigência e revogação do direito adquirido".
Reunião
366ª reunião ORDINÁRIA
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 42, Coluna 2
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Marcílio França Castro, Magda Arantes, José Alcione.
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 42, Coluna 2
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Marcílio França Castro, Magda Arantes, José Alcione.
366ª REUNIÃO ORDINÁRIA DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª
LEGISLATURA, EM 11/6/2002
Palavras da Sra. Maria Coeli Simões Pires
Exmo. Sr. Deputado Eduardo Brandão, Presidente e coordenador
desta Mesa, por meio de quem cumprimento os parlamentares
mineiros; Exmo. Sr. Deputado Bonifácio de Andrada, grande
entusiasta do processo de consolidação das leis federais; Dr.
Eduardo Vieira Moreira, Secretário-Geral da Mesa da Assembléia; ao
cumprimentá-lo, quero lembrar dois expoentes desta Casa
Legislativa, que hoje encontram-se nos planos da luz: Dr. Adônis
Martins Moreira e Dr. José Sebastião Moreira, dois grandes
entusiastas desta temática. A eles, os agradecimentos pela
iniciação nos bastidores deste parlamento, nos caminhos da técnica
legislativa. Quero registrar os aplausos à Dra. Natália de Miranda
Freire, que, com ciência e muita paciência, aqui fez muitos
discípulos. Lembrando seu nome, homenageio Antônio Geraldo Pinto,
José Ferber de Ávila, Araújo, Menelick e toda a nova geração, que
aqui vejo, pessoas que abraçam a causa do Legislativo. Parabenizo
a Mesa da Assembléia pela iniciativa de realizar um evento de
tamanha importância. Agradeço à coordenação do fórum, por meio do
Dr. Marcílio França Castro, pelo convite para trazer algumas
reflexões sobre o tema.
Srs. Deputados, senhores técnicos, professores, demais
participantes, tentaremos fazer uma breve introdução do tema.
Depois, tracejaremos o quadro do ordenamento jurídico brasileiro,
embora despiciendo, depois de uma fala tão lúcida do nosso
palestrante. Teceremos, também, breves comentários sobre a tarefa
da racionalização das leis e tematizaremos o direito a partir de
três elementos que consideramos importantes: sociedade,
normatividade e tempo. Tentaremos aprofundar nossa reflexão sobre
a questão do tempo.
Sob a inspiração da modernidade, a idéia de ordem era conatural
ao Direito, visto este como um conjunto lógico, sistemático e
coerente de representações e de normas de conduta a retratar a
ilusão de uma sociedade homogênea. Mas já sob tal paradigma, a
profusão de leis, a fragmentação da disciplina normativa, a
incoerência, a obscuridade das prescrições compunham um quadro
caótico de diversos ordenamentos jurídicos. Nesse contexto, o
Brasil não é um exemplo isolado ou recente do indesejável fenômeno
da inflação legislativa.
Ocorre, porém, que, hodiernamente, razões quase universais tendem
a pressionar ainda mais os sistemas normativos, por força das
demandas de inclusão e da dinâmica estimulada pela complexidade
funcional da sociedade, pela heterogenia que esta assume e pela
perspectiva do Direito aberto, no contexto que se vem
convencionando como o da pós-modernidade.
Esta lógica de pressão sob ordenamento sugere mecanismos de
racionalização para contraposição, a desordem legislativa ou,
mesmo, um novo perfil de Direito positivo, informado por
princípios e, assim, capaz de maior plasticidade para socorrer as
múltiplas e variáveis demandas de normatização.
Quero dizer, portanto, não só de mecanismos de racionalização,
mas também refletir sobre a necessidade de um Direito mais enxuto,
mais firmado nos princípios, para que possa conseguir atender às
demandas de mudança, que são muito mais freqüentes.
Na linha da primeira alternativa, observa-se que algum tratamento
específico é dado à atividade de reorganização do ordenamento
jurídico, mediante a previsão de formas de significação e
depuração das leis, notadamente nos países europeus.
A experiência foi também relatada pelo Deputado Bonifácio de
Andrada.
Importantes resenhas sobre as soluções desenvolvidas pela
experiência externa nesses países europeus foi feita por Rodolfo
Pagano. Temo como certo também que novo esforço vem sendo
desenvolvido na consolidação de leis na França, no Canadá, na
Itália e no Brasil, mais recentemente. Passemos a uma panorâmica
sobre o nosso ordenamento jurídico.
Os números da pesquisa especializada sobre o ordenamento
brasileiro mostram a extensão da base normativa interna, uma
exorbitância que afronta qualquer critério de racionalidade.
Quadros apresentados por Ives Gandra Filho revelam que há cerca de
200.000 documentos legislativos federais, dos quais mais de 45.000
em vigor.
Esse quadro apresenta-se ainda mais preocupante se tomado sob o
prisma da variabilidade dos instrumentos normativos, mais de 20
formas, cuja compreensão só se faz possível a partir dos cortes
temporais, tendo em vista os paradigmas constitucionais. Ainda
impõe dificuldade maior a distinta natureza de que se revestem
tais documentos, em face dos comandos que lhes constituem a fonte
de validade. Têm força de lei; outros, não.
Assim, a tradição de proliferação legislativa, aliada à paradoxal
omissão do legislador em relação a questões cruciais, as
peculiaridades do ordenamento, entremeado de medidas excepcionais,
a usual técnica de revogação tácita, a criar incertezas, o vício
da lei extravagante, as remissões feitas de forma insuficiente e,
muitas vezes, com o propósito de enovelamento da normatividade, a
ausência de prática de republicação de leis alteradas
substancialmente. E, por fim, o desconhecimento por parte do
Legislativo do comportamento do Executivo na aplicação dos
comandos legislativos são fatores que comprometem sua compreensão,
o que frustra sobremaneira o ideal democrático e a materialização
do Direito e - por que não dizer? - inviabilizam a segura e
responsável atuação do Legislativo pela falta do domínio do
universo normativo no qual intervém.
Caio Mário da Silva Pereira chega a dizer que a proliferação
legislativa é o mais franco desmentido da presunção geral de
conhecimento das leis. E, de fato, se o próprio parlamento não
pode dominar todas as províncias da normatividade, o que dizer dos
cidadãos?
No entanto, há os que identificam como razão imediata das mazelas
do ordenamento o estilo da Constituição vigente. Há quem afirme,
referindo-se à Carta de 1988, que a solução para o caos da
legislação é jogar no armário essa obra de copismo de esquerda.
Equivocada visão. Mais que o modelo constitucional, a legislação
reflete o estado da própria sociedade, a crise do Direito e da
modernidade e a visão paradigmática do próprio tempo.
Tal quadro, observadas as proporções, é o mesmo que se delineia
no âmbito de Minas Gerais.
Diante da realidade nacional, justificado sob o pálio do
paradigma do Estado Democrático de Direito, o movimento de
Brasília é voltado para a valorização da técnica legislativa como
ciência e instrumento da democracia e para a racionalização ou
reorganização do ordenamento jurídico, conquanto se deva colocar
sob reflexão aprofundada a opção metodológica da consolidação.
Merece também aplauso o esforço que, na esteira da União, ganha
fôlego no âmbito de Estados como Minas Gerais.
Um novo alento à democracia se vislumbra neste momento em que a
matéria começa a ganhar importância na cadeia discursiva,
especialmente entre juristas, lógicos, sociólogos, políticos e
técnicos da produção legislativa. Nesse contexto, deve-se
assinalar que as decisões acerca da simplificação e da
reorganização do corpo Legislativo pertencem à esfera política,
mas o discurso sobre as formas de simplificar é de ordem técnico-
legislativa.
E é, sobretudo, para os técnicos e juristas que se apresenta o
desafio maior. Tal razão orienta o perfil do evento - fórum
técnico. Assim, buscando fugir à tentação do fetiche da matéria,
nesta Casa em que o tom político ecoa com força, tentaremos
conduzir nossa fala pelo álveo da tecnicalidade e, certamente, sem
sobressaltos. Talvez cause até sono.
Que desafio é esse que se coloca aos que se propõem à tarefa de
reorganização, racionalização ou consolidação do ordenamento?
Para se aquilatar tal desafio tematizando a consolidação, como a
recolha, a coordenação e a sistematização formal de leis em vigor,
e como dito pelo Prof. Bonifácio de Andrada, sem alterações ou
inovações substanciais, mister se faz recordar fala do Prof. João
Baptista Vilella, que, referindo-se ao desconforto psicológico
inerente à atividade do consolidador, lembra que lhe cabe um fazer
que suscita, nas suas expressões paradoxistas, o sonho do
impossível - formular sem produzir, reescrever sem alterar, dispor
sem impor, eliminar mas não extinguir, criar o novo e, no entanto,
manter o velho. Esse é o desafio.
A advertência de Vilella sugere especiais limites ao
consolidador, não obstante não se possa reduzir sua atividade ao
âmbito da estrita neutralidade. Tal sorte de limitação, contudo,
parece sugerir certa incompatibilidade entre a função legiferante
e criadora do parlamento e a atividade estritamente condicionada
de consolidação.
De qualquer modo, o desafio material que se coloca ao
consolidador é o de tomar o direito estático ou objetivo,
confrontá-lo com as sucessivas estatuições no tempo, atento
especialmente às tensões de incompatibilidades para identificação
das possíveis revogações e conformação do núcleo da opção
regulativa no seu conjunto. Essa conformação pode ser feita
segundo critério temático, de acordo com outro método de
ordenação, compartimentação, de distribuição topográfica dos
conteúdos normativos, ou, ainda, segundo combinações que respondam
às ordens de interesse da coletividade e às necessidades do
direito positivo. Isto é, o desafio é buscar a simplificação das
generalizações prevalecentes como ordenamento posto.
Por outro lado, o desafio, sob a perspectiva temporal, é,
sobretudo, o de conciliação do passado e do presente para
adequação do ordenamento e para a anulação da distância
cronocultural das regras, de modo a adequar as determinações
preceituais da legislação ao sentido vigente no sistema.
Pois bem, a tarefa de reorganização ou consolidação das leis
obedece a um “iter”, a tecnicalidades e a métodos específicos,
obedece a critérios variáveis de abrangência, envolve
procedimentos e limites operacionais ou condicionamentos próprios
acerca de conteúdos, conforme seja alçada ao parlamento, ao
Executivo, ou a órgãos técnicos, e atende a critérios de
simplificação e de ordenação. Há várias opções de consolidação.
Do ponto de vista metodológico, o primeiro passo há de ser o
conhecimento do universo normativo, a sua disposição cronológica
geral, seguindo-se a disposição cronológica específica segundo o
critério eleito. Só então é possível dar curso às operações
técnicas de racionalização, a começar pela identificação do
direito efetivamente em vigor. Na seqüência do ponto de vista
técnico, pode-se falar, por exemplo, em categorização de operações
relativas à sistemática, como exclusão de normas intrusas, fusão
de disposições repetitivas, relativas à linguagem como
normalização de grafia, atualização de denominações,
homogeneização terminológica, eliminação de ambigüidades. E, no
tocante às relações entre as normas, podemos falar em eliminação
de normas declaradas inconstitucionais, atualização e adequação do
texto tendo em vista derrogações expressas.
Não é nosso propósito, contudo, discutir esses aspectos, objeto
de cogitações por parte de outros palestrantes. O corte de nossa
exposição sobre a racionalização das leis deve ser feito pela
linha da temporalidade. Mesmo porque, em todo “iter” processual de
simplificação ou racionalização, não se pode abstrair da
temporalidade, seja ela a de edição do direito, seja a do
presente, seja ainda e especialmente a do futuro, já que toda
reorganização do direito tende a prepará-lo para o tempo vindouro.
O elemento tempo, contudo, há de ser conjugado com outros que
integram o direito.
Para tecermos um pano de fundo para as considerações que
pretendemos desenvolver daqui para frente, puxaremos, então, três
fios diferentes que fazem a trama do direito: sociedade,
normatividade e tempo.
De fato, o direito, um dos mais sofisticados instrumentos
civilizatórios, existe como mecanismo e resultado da evolução da
sociedade e do Estado considerado em relação ao tempo e ao espaço
que o circunstanciam.
A sociedade, em suas múltiplas dimensões e heterogenia compõe, na
linguagem de Luhman, um sistema global de comunicação, do qual o
direito participa, seja como ordenação temporalmente válida, seja
como concepção de valores para firmação de consensos, seja, ainda,
como prática, o que, em última análise, invoca a
tridimensionalidade do direito (fato, valor e norma), em
contraposição às visões reducionistas do jusnaturalismo, do
positivismo e do realismo jurídico.
A correlação entre direito e sociedade impõe permanente tensão
nessa linha relacional, sendo significativa a que se dá
especialmente ao influxo de intenso câmbio de expectativas
comportamentais que disputam seleção para se concretizarem no
campo da experiência jurídica.
Trata-se do que Luhman, ao desenvolver sua concepção acerca do
direito, chama de redução de expectativas comportamentais. Segundo
ele, “o comportamento social em um mundo altamente complexo e
contingente exige a realização de reduções que possibilitem
expectativas comportamentais recíprocas”.
A redução dessas expectativas, no nível temporal, equivale à
normatização, isto é, à estabilização das expectativas sociais.
Daí Christiano Paixão Araújo Pinto direcionar o direito a uma
função básica: “a generalização congruente de expectativas
comportamentais normativas”. E, porque essa generalização e
congruência se fazem segundo o critério da mais alta seletividade,
o direito positivo vige, ganha validade formal e força de
apoderamento da experiência jurídica.
Tal função, que se cumpre pela positivação do direito, é
informada pela imparcialidade do legislador na generalização de
expectativas, diferentemente da imparcialidade do juiz, que se dá
pela escolha da norma individual para cada uma das situações que o
direito deve abrigar, sem exclusão. Eis porque o desafio do
legislador é generalizar a expectativa, em contraposição ao papel
do juiz, que é o de particularizar a solução segundo as
expectativas generalizadas.
A seleção de expectativas, ou sua positivação, varia de acordo
com o processo histórico que a circunstância reflete, o crescente
nível de complexidade da estrutura social, de acordo com
mecanismos novos de validação e legitimação da normatividade.
Se há inegável relação entre direito e sociedade, há de se
reconhecer, também, a relação do direito com o tempo, uma vez que
a temporalização da expectativa é o próprio sentido da positivação
do direito. Daí, tendo em vista a inafastável referência do tempo
à norma e aos fenômenos jurídicos, a importância de se compreender
a concepção do termo jurídico.
Oscar Tenório, analisando a relação entre tempo e norma, mostra a
indissociabilidade desses elementos como noção fundamental do
direito, sustentando que “o tempo é um dos pressupostos da norma
jurídica”.
De fato, a lei - no dizer de Recaséns Siches, “vida humana
objetivada” - tem dimensão temporal, que lhe fixa o nascimento e a
morte.
O fenômeno jurídico, à sua vez, assentado na norma e sempre
circunstanciado por tempo e espaço, atrai, também, a discussão
acerca desses núcleos, transcendendo o campo de formação da lei
para a seara de sua aplicação. O tempo jurídico é, assim, elemento
científico do direito como produção, aplicação e controle ou
interpretação e, como tal, é tratado ao influxo de sucessivos
paradigmas de conhecimento.
O tempo foi sempre considerado elemento primordial na organização
das sociedades, seja sob inspiração utilitarista, seja como objeto
do conhecimento filosófico, a partir mesmo da dimensão trágica da
temporalidade do homem, uma vez que medir o tempo é cortejar a
morte, é admitir a finitude...
Assim, a percepção do fenômeno do fluxo do tempo segue a evolução
da ciência, como lógica associação homem-tempo. Daí a
multiplicidade de categorias temporais: o tempo do racionalismo, o
do criticismo, o do idealismo, o do positivismo, o do marxismo, o
tempo coletivo, o tempo fenomenológico, o tempo existencial, entre
tantos.
Malgrado a multiplicidade de teorias sobre o tempo, a visão de
linearidade estabeleceu o primado, assentando-se o tempo jurídico
na concepção unitarista da temporalidade, visão que tem
prevalecido no direito, mesmo contra novas tendências da ciência.
Sabe-se que a maneira como a ciência encara o tempo, nos dias
atuais, vem sofrendo mudança radical. Tendência que se faz mais
nítida quando se tomam em conta as contingências da pós-
modernidade, sob cuja influência a noção de tempo experimenta
drástica reconfiguração, graças aos avanços da tecnologia de
comunicação (v. g. Internet), de mitigação das fronteiras
nacionais e espaciais (v. g. globalização) e o surgimento de novas
formas de conhecimento, não limitadas pelo rigor da lógica
clássico-aristotélica.
Sabe-se, igualmente, que o direito vem, no entanto, apresentando
resistência à apropriação das novas formulações, preso a antigas e
superadas concepções. Qualquer tentativa de reconfiguração da
dimensão temporal do direito é recebida pela dogmática com reações
hostis, enquanto os institutos jurídicos continuam informados pela
noção linear e monolítica do tempo. Desse modo, apoiada em
premissas da concepção unitária do tempo, persiste a teoria
tradicional do tempo jurídico, tomado como noção espacializante -
o tempo dividido em pedaços como o próprio espaço.
O tempo jurídico, segundo a concepção clássica e a insuficiência
das premissas do unitarismo temporal. Sob tal enfoque filosófico,
o tempo jurídico é considerado em dupla perspectiva: estática e
dinâmica. A primeira vislumbra-se no plano da normatividade
abstrata, que é, em si, estático; a segunda diz respeito ao campo
fenomenológico do direito.
No campo estático, o tempo jurídico figura como elemento de
edição do direito, e, por isso, de interpretação histórica, de
sustentação do controle jurídico-formal da própria normatividade e
como critério de integração e permanência desta no ordenamento.
Nessa perspectiva, o passado prefigura o presente e o futuro. O
tempo jurídico dinâmico revela-se no plano da aplicação, no qual a
norma ganha fluidez e variabilidade próprias da seara fática.
É dizer: é no momento em que a norma jurídica escapa ao tempo da
abstração para alcançar a concreticidade ou facticidade que se
projeta a dinâmica do tempo jurídico.
Essas figurações tradicionais, apesar de importantes, são
insuficientes. É que o próprio trato com a normatividade em
abstrato não pode prescindir de múltiplas dimensões temporais, e a
aplicação da lei ao caso concreto invoca não apenas a
temporalidade desse caso, mas a historicidade dos sujeitos
envolvidos, a temporalização da lei tomada como momento da conduta
humana e a temporalidade coletiva, entre outras dimensões, o que
desafia a capacidade do direito para a maior diversidade e
abrangência de respostas e, por vezes, para enfrentar as
contingências que escapam à linearidade das matrizes de regulação.
E há que se enfatizar: não se constrói o direito, nem se maneja
sua normatividade, nem se produz conhecimento no campo jurídico
com abstração da temporalidade de referência dos sujeitos
envolvidos, que, para além do tempo jurídico estrito e linear,
trazem a temporalidade do eu, no presente, numa das possíveis
molduras conceptuais de temporalidade mais abrangente. Ninguém
abandona seu próprio tempo em nada que faz, nem o consolidador.
Nesse sentido, as lições do filósofo Ivan Domingues, acerca da
necessidade, da contingência e da liberdade no tempo histórico
podem ser apropriadas para auxiliar na compreensão da
historicidade do direito. Pode, especialmente, ajudar na
compreensão da possibilidade de abertura da textura da ordem
jurídica, já que a normatividade, assim como a história, não pode
ser tomada como artificialização de uma unidade em perspectiva
reducionista, fechada e totalizante do fenômeno jurídico. Em
outras palavras: trata-se, no direito, da impossibilidade de
cortes de tempos jurídicos lineares ou distendidos, do mesmo modo
que é impossível reconhecer “uma história sem acontecimentos, sem
ações e sem homens”.
Luhman, à sua vez, apóia-se numa noção de tempo como
interpretação social da realidade, desvinculada da experiência
existencial e bem distinta da categoria temporal baseada na idéia
de cronologia, sustentando ser o presente “o único ponto de
partida e chegada, sendo o passado e o futuro linhas de
horizontes”. Isso tem uma repercussão na reflexão sobre a
normatividade. O passado não prefigura o futuro. Ele pode
interceptar o futuro, mas este continua em aberto, para acontecer
como tem de acontecer. Segundo sua concepção, por igual, é
radicalmente transformada a função do passado.
Na mesma linha, o futuro, que era apenas mera presentificação de
uma escolha já decidida anteriormente ou um resultado de
interceptação no presente, apresenta-se, segundo Luhman, aberto a
um sem-fim de possibilidades, radicalmente diferente do passado.
Daí porque posso ter leituras bastante novas de normas bastante
velhas. O presente é vivido como um ponto de inflexão instantâneo
entre passado e futuro.
Sobre a importância do futuro para o direito, recapitula Ost: “As
sociedades humanas são ávidas pela serenidade. Elas a procuraram
durante muito tempo no passado. Em conseqüência de enorme
reviravolta, elas a procuraram do lado do futuro, apoiando-se nas
virtualidades”. (Tradução livre.)
Há, portanto, relativização do passado e do futuro como
decorrência da mudança de percepção do tempo e, no direito
positivo, há uma repercussão importante dessa nova conexão de
tempo. E os estudiosos fazem uma alerta para a necessidade de
compreensão dessa mudança.
Nesse sentido, Paixão enfatiza que “o futuro substitui o passado
enquanto horizonte temporal predominante”.
Vamos fazer aqui um parêntese, para dizer que a interpretação
histórica tem sua importância relativizada. É muito mais
importante colocar a norma sob a perspectiva do futuro.
Eis que o passado perde sua força de determinação ou conformação
do presente e do futuro. Defende, assim, que o tempo e o direito
não podem mais ser concebidos na base de uma continuidade
estrutural linear da natureza, como se os horizontes estivessem
precondicionados, como se não pudesse o futuro ter outras
possibilidades.
Nessa vertente, vem a calhar o estudo desenvolvido (1985) por
François Ost, que, a par de denunciar o caráter fragmentário da
teorização nesse campo, abre novas perspectivas para a elaboração
de uma teoria do tempo jurídico propriamente dito - e voltada para
a discussão sobre os modos de articulação das distintas
temporalidades no campo do direito.
Ele começa por notar que a dogmática jurídica não desenvolve uma
teoria global sobre o tempo no direito, limitando-se a analisar o
problema de um ângulo técnico específico, qual seja o da validade
e da eficácia da lei no tempo, não havendo uma visão sistemática
da relação entre tempo e direito na literatura especializada.
Ost não pretende esgotar a análise das várias temporalidades
jurídicas, mas apenas dar conta dessa multiplicidade, de maneira a
evidenciar a categoria temporal como elemento carente de mais
profundas investigações sob a óptica jurídica.
O estudo de Ost é, assim, forma de ruptura epistemológica, com a
percepção jurídica estabilizada e instrumental do tempo.
Para introduzir o estudo específico das diversas temporalidades
jurídicas, Ost traz à luz a contribuição de Husserl, que relaciona
as categorias do presente, do passado e do futuro com as três
funções do poder: executiva, judiciária e legislativa: “O
Executivo atua no tempo presente. Em contrapartida, surge o Juiz
como o homem do passado. Sua missão consiste em dizer o direito
estabelecido a propósito de fatos pretéritos. Enfim, o tempo do
legislador é aquele do futuro. Pela atuação do legislador, o
futuro permanece aberto”.
A complexificação atual da teoria da tripartição das funções
estatais não nega validade às idéias acima sumuladas, sendo,
antes, fator indicativo da necessidade de se aprofundar a análise.
Pois bem, com esse pano de fundo, Ost distingue sete
temporalidades jurídicas diversas que podem ajudar na concepção da
normatividade:
1ª - Tempo de fundação: É um tempo dito original, místico,
fundador de um grupo social e transfigurado em sua constituição,
que aspira à perenidade.
2ª - Tempo intemporal da dogmática jurídica: funda-se sobre a
pretensa autoridade e validade permanente dos princípios e regras
invocadas pela dogmática jurídica. Esse “presente omnitemporal”
faz tábula rasa do contexto histórico da enunciação e da aplicação
do direito positivo.
3ª - Tempo da instantaneidade: o instante isolado pode, como em
um passe de mágica, criar diversas situações jurídicas que
perduram no tempo, por força dessa magia inicial.
Parece que isso não tem relação com a nossa fala, mas imaginem
que o momento sagrado da promulgação da lei, e depois que ganha
vigência, é de instantaneidade. E é isso que lhe comunica a força:
um puro instante de razão, que tem o seu espaço.
4ª - Tempo de longa duração: liga-se à noção contínua do tempo. É
graças ao tempo de longa duração que se tem o nascimento dos
costumes, a acumulação de precedentes jurisprudenciais e a
consolidação de situações de fato. É também por força desse quarto
gênero que ocorrem no Direito fenômenos classificados por Ost como
negativos: destruição de provas, superação das razões da lei e
erosão dos textos normativos em vigor. O tempo faz com que as
normas envelheçam.
O pensamento jurídico moderno, amplamente orientado pelo
positivismo, não leva em consideração a variável do tempo de longa
duração, já que a missão do jurista esgota-se na simples análise
do direito positivo vigente. Atualmente, no entanto, essa
categoria do tempo tem sido utilizada pela escola do pluralismo
jurídico como instrumento de estudo de ordens jurídicas diversas
existentes sobre mesmo território, sobre a ordem jurídica das
favelas e das colônias. Esse é um tempo que vem ganhando
expressão.
5ª - Tempo prometeico: é o tempo do futuro, altamente valorizado.
No direito positivo, a temporalidade prometeica sustenta a idéia
de organização, de instrumentalização de alternativas e de
antecipação de regulamentações jurídicas e, sobretudo, o estilo da
legislação dirigente. Está voltada para o futuro.
6ª - Tempo revolucionário: a aceleração da história e o fervilhar
de novas idéias fazem com que o tempo não apenas se projete para o
futuro, mas dê à luz o próprio futuro.
7ª - Tempo de alternância entre o avanço e o retrocesso: esse é o
tempo mais freqüente nas cogitações do direito.
Após dar por findo o exame das sete variáveis temporais, Ost
tenta encontrar um elemento comum a todas elas, assinalando como
tal a aspiração à durabilidade e a sustentação de uma ordem de
permanência. Explica que o direito necessita de um tempo que,
renegando o que há de aleatório na existência, seja uma referência
para a regulação das relações sociais e para a solução das
contradições inerentes à sociedade.
Entretanto, a durabilidade que o direito tem como escopo não é
mera estratificação de solução numa linha cronológica. Assim
sendo, a interação, a confrontação e a comunicação dos diversos
paradigmas temporais podem oferecer ao intérprete e ao aplicador
do Direito soluções até então inéditas.
Outra não é a compreensão do fenômeno temporal e dos paradoxos
que ele guarda, revelada pela fala de Carvalho Netto, que alude ao
tempo “como o significado mesmo do ser do humano”. É o Menelick
quem diz: “o autor percebe o tempo, pregnando o objeto da ciência,
qualquer que seja ele, tendo em vista que a reflexão temporaliza
os conceitos”. Isso tem muito a ver com a proposta de releitura do
ordenamento jurídico. A reflexão sobre essa matéria temporaliza
esse próprio exercício, como temporaliza os próprios conceitos, e
explica-o como indisponibilidade, como passado reconstruído no
presente e como contingência, como futuro no presente, mesmo
projetado.
Nessa linha, Carvalho Netto mostra que, na relação com o tempo,
“a sociedade faz-se instável por si e assim produz contingência,
já que, no presente, tudo também pode ser diverso. Assim, a
legitimidade da sociedade moderna reside na impossibilidade de
nela se produzir uma representação natural e sem concorrência da
sociedade”. É impossível falarmos de um direito fechado e
absolutamente pacificado. É esse o tempo, em sua complexidade, que
deve compor os elementos da reflexão sobre a normatividade no
tempo.
As normas seguem a evolução da sociedade e se alimentam pelo
mesmo processo histórico de desenvolvimento, para além da linha
cronológica de um tempo contínuo. Desse modo, o binômio tempo e
direito está sempre presente, referente este à normatividade como
produção ou objeto de aplicação às relações, sendo igualmente o
tempo elemento fundamental nas considerações sobre extinção ou
modificação das leis, tudo a justificar o esforço da doutrina nos
domínios da discussão sobre o tempo jurídico.
E é sobretudo sob inspiração filosófica unitarista e no âmbito da
teoria clássica da temporalidade jurídica que se extinguem a
temporalidade estática e a dinâmica, que se desenvolvem as
formulações encontradiças na doutrina e na jurisprudência sobre a
vigência, a eficácia e a revogação da lei.
Qualquer que seja a angulação das concepções de tempo, a
discussão da lei como opção regulativa abstrata e o ajustamento do
plano normativo ao da facticidade pressupõem a adequada
apropriação das noções de vigência e eficácia, malgrado
insuficientes para explicar os paradoxos da temporalidade.
Kelsen distingue validade e eficácia, associando a primeira idéia
à existência de uma norma que obriga no sentido do dever ser do
direito, à sua vez, assentada em uma norma fundamental hipotética,
que é a Constituição, e faz corresponder à segunda, que é a
eficácia, a condição de ser do direito. É o dever ser e o ser a
que se refere Kelsen.
Miguel Reale adota o termo validade em sua “lata” noção, dele
fazendo derivar a validade formal ou técnico-jurídica, inserida
nos domínios da vigência; a validade social no sentido de eficácia
ou efetividade, e a validade ética no sentido da fundamentação da
norma.
Vamos tratar, inicialmente, da vigência. A vigência está a dizer
da faculdade impositiva da norma, “da executoriedade compulsória
de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos
essenciais à sua feitura ou elaboração”. Trata-se do
reconhecimento no tempo de uma matriz de regulação - “a priori”
válida - ou, então, para dizer, com Luhman, da estabilização de
expectativas comportamentais selecionadas, mediante a sua
imposição como ordem geral.
Pode-se dizer, apropriando-se das idéias de Luhman, que a
validade formal ou vigência do direito posto diz respeito à forma
de seleção das expectativas e à sua generalização em abstrato; diz
respeito à condição da positivação do direito e à integração de
sua força como ordem geral que a todos submete.
Em outras palavras, a norma produzida segundo os critérios
estabelecidos pelo ordenamento passa a ter força obrigatória, após
fixada sua existência pela publicação e configurada a sua
vigência, conforme nela mesma estatuído.
Tais condições articulam-se em três grupos distintos: da
legitimidade subjetiva; da legitimidade “ratione materiae”; da
legitimidade de procedimento.
É certo que ao legislador cabe escolher o momento de entrada em
vigor da nova lei. Entretanto, na falta de disposição a respeito,
prevalece, no âmbito interno, a “vacatio legis” definida na Lei de
Introdução.
“E a própria lei de introdução e a doutrina relacionam-se em
posições específicas, que vão nos ajudar a tratar a questão da
vigência. Registro, no tocante às leis em vigor, que não cabe ao
Legislativo e ao Executivo decretar a sua inconstitucionalidade. A
matéria fica na alçada do Judiciário. O que se reconhece ao
Legislativo e ao Executivo é o poder de recusar eficácia a lei
flagrantemente inconstitucional, caso que cabe ao interessado, na
aplicação da lei, ir a juízo para provar sua legitimidade.
Feitas essas considerações sobre vigência, registram-se breves
considerações sobre a eficácia. Esta refere-se à aplicação ou
execução da norma jurídica e incide sobre conduta humana
temporalizada. Diz respeito ao cumprimento efetivo do direito por
parte da sociedade, ao reconhecimento do direito pela comunidade
ou, mais particularmente, aos efeitos que a regra produz. No
entanto, há leis que, mesmo vigentes, não ganham eficácia,
situando-se em verdadeiro limbo da normatividade abstrata, não
ganham curso no campo da realidade, não se revelam como momento de
conduta humana. Falo daquelas leis que violentam a consciência
coletiva, provocando reação da sociedade, das que entram em choque
com a tradição de um povo ou não guardam correspondência com os
valores imediatos dessa sociedade, daquelas que contrariam
tendências e inclinações no seio da coletividade. Em alguns casos,
não logram eficácia espontânea. Só são cumpridas de maneira
compulsória e, às vezes, nem desse modo são cumpridas. Vê-se que
tanto a vigência como a eficácia suscitam, irremediavelmente, o
cotejo da norma com a linha do tempo jurídico.
No tempo da vigência, o tempo jurídico opera como marco dessa
normatividade abstrata ou de imposição de escolhas e expectativas
comportamentais, ligando-se ao processo formativo e instintivo da
normatividade e ao reconhecimento da autoridade de sua emanação no
tempo, como ordem geral. No da eficácia, o tempo jurídico
acompanha o caráter experimental dessa normatividade. A norma,
como instrumento geral da sociedade, é informada pelo princípio da
permanência com continuidade, mas, tendencialmente rígida e
permanente, pode sofrer transformação ou extinção, por força da
inexauribilidade da fonte formativa do direito. No dizer de
Luhman, as normas jurídicas válidas tornam-se obsoletas ou mudam o
próprio sentido ou escolha entre as expectativas, possibilidades
ou funções, e, quando a sociedade muda radicalmente, novas normas
as substituem. Daí porque, na visão tradicional, as leis nascem,
duram, transformam-se e morrem pelo fluir natural ou por golpes,
que as assaltam no tempo por força das mudanças decorrentes de
demandas sociais. É certo também que as normas estarão mais
protegidas conforme representem expectativas enfaticamente
generalizadas e, assim, passíveis de plasticidade para adequação à
própria sociedade mutante.
Por isso afirma Caio Mário que a lei em vigor permanece vigente
até que seja acolhida por força contrária. De fato, se não se
destina a vigência temporária, permanece em vigor até que outra a
modifique ou a revogue. Há revogações diversas. A mais comum é
aquela que se verifica pelo processo da própria revogação. Há
extinções diversas, mas a revogação é a forma mais comum e pode
ocorrer de modo total, tomando o sentido de ab-rogação,
abrangendo, além da lei, as disposições dela dependentes ou as
acessórias, ou, de modo parcial, caracterizando-se como a
derrogação.
Por outro lado, a revogação pode ser expressa ou tácita. A
primeira ocorre com a declaração extintiva inserta na lei, sendo
essa forma a mais pacífica e segura. A revogação tácita ou
indireta decorre de incompatibilidade entre a lei antiga e a nova.
Sob a tensão do tempo, a dinâmica da vida comunica ao direito - e,
assim, à lei - a lógica da permanência e da mutação e, por sua
vez, o direito influencia a realidade, de modo que vida e direito
reciprocamente se influenciam.
Por isso, o direito não se constrói em processo linear, sem
sobressaltos. Ao contrário, o direito positivo é vocacionado para
surpreender a realidade. Fluindo em seu curso normal, a lei nova
deve trazer efeito imediato sobre o maior número possível de
relações, tudo como corolário do princípio universalmente
consagrado de que a lei posterior revoga a anterior, mas tal
efeito instintivo é a regra, opera “ex nunc”, a partir do momento
em que nova vontade normativa substitui a precedente. Assim, a
linha do tempo da normatividade desenrola-se segundo a tendência
para disciplinar o presente e o futuro e, portanto, em posição de
neutralidade com relação ao passado.
A aludida neutralidade, contudo, há de ser compreendida no
sentido de que a normatividade estabelecida no tempo estático é
pregnada positivamente pelo tempo dinâmico, assim, sem vocação
para regência da realidade passada.
Já tomado sob a perspectiva dos entrechoques, o tempo jurídico
dinâmico migra para o campo da intertemporalidade conflitual,
situando-se neste ramo a questão da irretroatividade das leis e
dos limites de retrooperância da normalidade jurídica, em última
análise, as indagações sobre a aplicação de leis em conflito.
Exatamente por fugirem à linearidade, os esquemas normativos
incidentes sobre a realidade alimentada pela temporalidade
dinâmica podem atrair a chamada intertemporalidade conflitual.
É nesse campo que o traço de neutralidade do direito novo em
relação ao passado, como regulação de conduta, pode relativizar o
efeito “ex nunc” da lei nova, e a lei antiga pode, então, ter vida
mitigada no entretempo jurídico para resguardo do direito
adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada.
A constatação da possibilidade de relativização está pressuposta
na indagação de que a morte de uma lei e o nascimento de outra,
caindo no fluxo da realidade, que perdura, impõe a indagação
acerca da aplicabilidade da primeira ou da segunda, ou acerca da
aplicabilidade de um sistema jurídico intermédio ou de adaptação.
A identificação da lei aplicável quando instalado o conflito
intertemporal refoge, no entanto, aos domínios do Legislativo. A
ele cabe tão só respeitar os limites da retrooperância da lei nova
no seu mister de produção legislativa e, naturalmente, a ele se
reserva a faculdade de definição de um regime jurídico de
adaptação.
A solução da tensão entre segurança jurídica e justiça ou o
denominado conflito de leis no tempo desenvolve-se mediante o
ajustamento do plano normativo ao da facticidade no entretempo
jurídico como tarefa de interpretação e aplicação do direito, a
partir de operação que deve levar em conta as noções de tempo
capazes de explicar a historicidade do direito, da norma, do caso
concreto, dos sujeitos envolvidos e da sociedade a que se refere.
Ciência social e historicidade são inseparáveis. O direito é,
assim, historicidade. E variadas são as categorias temporais que
disputam a intercessão das múltiplas historicidades, não sendo
outra a noção que também se vislumbra na linguagem literária de
Marcílio França Castro, ao discorrer sobre o “tempo da vertigem”,
que não seja paradoxo da multiplicidade das dimensões temporais.
Nesse tempo labiríntico, um mesmo sujeito se multiplica em
vários, e suas histórias se dispersam em infinitas séries
temporais. Dessa multiplicidade, surgem paralelismos,
convergências, divergências. Todas as combinações de histórias são
possíveis: mesmo as que se negam, ou se aniquilam por contradição,
coexistem.
Eis porque os móveis de segurança jurídica e de justiça que
propulsam o direito são sempre, no presente, a instabilidade e a
contingência, numa sociedade plural no seu desejo, na sua
necessidade e na sua expressão.