MARIA APARECIDA RODRIGUES DE MIRANDA, Geógrafa. Ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Unaí - MG. Ex-dirigente das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. Ex-dirigente da Central Única dos Trabalhadores - CUT.
Discurso
Legislatura 17ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 12/04/2014
Página 43, Coluna 1
Evento Ciclo de debates: Resistir Sempre – Ditadura Nunca Mais: 50 anos do Golpe de 64.
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA. DIREITOS HUMANOS. REFORMA AGRÁRIA.
Observação O número que acompanha o Requerimento Sem Número, constante do campo Proposições, é para controle interno, não fazendo parte da identificação da Proposição referida.
Proposições citadas RQS 2522 de 2013
RQS 2592 de 2013
RQC 8347 de 2013
10ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 17ª LEGISLATURA, EM 31/3/2014
Palavras da Sra. Maria Aparecida Rodrigues de Miranda
Palavras da Sra. Maria Aparecida Rodrigues de Miranda
Boa tarde a todos e a todas, cumprimento a Mesa. Quero reconhecer a grandiosidade deste evento. Venho trazer a voz dos trabalhadores rurais, dos camponeses. Sou filha de sem-terra, sou sem-terra também, da região do Noroeste de Minas. Uma das regiões que, infelizmente, até hoje ocupam as páginas dos jornais de Minas Gerais devido à violência. O meu testemunho é de um período que foi chamado de transição. Eu tinha 2 anos quando a ditadura se instalou no Brasil, mas para nós, do campo, esse estado de coisas, essa situação se estendeu por muito tempo com toda a sua atrocidade. Aqui estamos ouvindo olhares sobre essa realidade, e na minha leitura muito dessa base de exploração, de desigualdade continua inalterada nas relações que vemos até hoje na questão da terra, do campo, da reforma agrária.
Antes de iniciar o meu depoimento, quero apresentar para vocês um trabalho de pesquisa que se chama Retrato da repressão política no campo: Brasil 1962 e 1985. Na minha opinião é um trabalho maravilhoso da Comissão da Verdade, que muito recentemente reconheceu publicamente, nesse grande esforço de trazer à luz essa memória, o campo como parte desse grande espetáculo da violência que o Brasil viveu e em cima da qual na realidade foi fundado - como foi o Brasil invadido pelos portugueses, como os povos que moravam aqui foram dizimados oficialmente e como até hoje os indígenas e os quilombolas, que representam esses primeiros povos, sofrem para ver reconhecidos os seus direitos. Esse livro foi uma das publicações da Comissão da Verdade em 2010, e o considero muito importante porque reconhece no contexto da ditadura militar como foi cruel essa realidade no campo brasileiro, e muito desconhecida.
Uma das coisas que quero testemunhar é como a questão do campo ficou esquecida na memória de todos nós, mesmo nessa memória coletiva de resistência. Isso não é por acaso. Parece existir um conluio silencioso que deixa à margem essa questão tão importante e revolucionária. Hoje pela manhã fiquei ouvindo os depoimentos de todos que falaram à Mesa, e é incrível, pois uma das reformas de base estopim do golpe militar foi exatamente a reforma agrária. Era uma das reformas mais perigosas e que mais ameaçavam esse poder, fundado no latifúndio, fundado em uma sociedade escravocrata. O direito à propriedade é algo tão forte, tão basilar desse modelo que continua até hoje intocado. Portanto, quando há uma publicação como essa, damos um passo, e seria bom se todos vocês conhecessem e divulgassem.
Esse dia de hoje também é bastante histórico nesse sentido. Eu estava como dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Unaí em 1981. Estou demarcando a partir dessa data porque o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Unaí foi fruto histórico de todas essas lutas relatadas aqui. O sindicato foi produto do trabalho da CPT, das comunidades eclesiais de base, de todo esse trabalho espalhado pelo Brasil inteiro. A Igreja Católica revia a sua posição e construía um processo de formação política, de escola de luta popular.
Nesse contexto nasceram vários sindicatos de trabalhadores rurais, nesse contexto nasceu minha experiência e a minha militância nesse campo. Naquele momento, por mais incrível que pareça, sindicalizar-se, ter direito a uma associação, fazer uma carteirinha de sindicato para reivindicar direitos básicos ainda era considerado crime. Tive várias contendas com juízes das comarcas, com delegados de polícia, na condição de presidente de sindicato. Incriminavam um trabalhador rural, um assalariado rural, um posseiro e um parceiro, simplesmente por ele se dirigir à sede do sindicato ao qual se associava.
O que acontecia naquele momento? Discutia-se abertura política e novamente se escutava o discurso da reforma agrária. Aparecia novamente essa grande demanda, mas, ao mesmo tempo, os latifundiários se organizavam com muita força. O simples fato de alguém se associar ao sindicato era considerado crime. Imaginem quanta ousadia era juntar trabalhadores rurais desprovidos de direito e de reconhecimento, criar uma organização própria e ainda dizer que tinham direito a um pedaço de terra para trabalhar. Isso tudo virou a marca de nosso sindicato. Começamos a organizar os posseiros, os parceiros, os assalariados, aquelas pessoas que não tinham voz ou qualquer reconhecimento, para que o seu direito fosse respeitado. Esse era o nosso compromisso.
Utilizamos, durante dois anos, o Estatuto da Terra, primeira lei criada dentro do regime militar. Havia apenas um item naquela lei que servia no momento, a função social da propriedade. Onde havia um conflito por terra, um conflito por direito, aquela fazenda poderia ser objeto de desapropriação para fins de reforma agrária. E assim aconteceu.
A primeira desapropriação de terra de Minas Gerais, para fins de reforma agrária, foi em São Francisco, no Norte de Minas, organizada pelo nosso companheiro Elói Ferreira da Silva, que em 1984 foi assassinado em razão de sua luta. Elói Ferreira da Silva foi uma das nossas referências porque desenvolvia o trabalho de organizar trabalhadores rurais, em diversas faces da exploração, e canalizar isso para uma luta política por direitos e por reforma agrária. Elói foi assassinado logo após receber uma medalha de honra do governo do Estado de Minas Gerais. Ele a recebeu em 16 de dezembro. Nessa homenagem ele dizia que a luta dele era por justiça. Dizia ser contra a violência, que estava ameaçado de morte, mas que acreditava na força do povo. Alguns dias depois, Elói foi assassinado. Presenciamos a crueldade deste estado brasileiro. Muitas vezes a omissão do Estado se torna uma ação violenta. O caso do Elói nem a julgamento foi.
Em 1985, no meio dessa luta, meu pai foi assassinado, numa fazenda chamada Riacho dos Cavalos, Mandiocal, no Município de Bonfinópolis. A minha mãe foi baleada pelo próprio fazendeiro. Mais uma vez, fomos reivindicar ao Estado o seu papel de julgar e condenar o assassino. Ele foi julgado duas vezes e praticamente inocentado. Assistimos a uma situação muito delicada. Meu pai e minha mãe se tornaram criminosos e estavam sendo julgados naqueles dois julgamentos.
Dado o tempo que temos para fazer este depoimento, quero trazer meu testemunho aqui e dizer que a Comissão da Verdade em Minas Gerais tem como uma de suas tarefas recuperar a história do campo de Minas Gerais. Houve lutas muito importantes em várias regiões do Estado. Algumas delas estão registradas aqui; outras ainda estão no anonimato.
Espero que essa Comissão da Verdade tenha o apoio da Assembleia Legislativa e de todos que estão aqui, para que possamos continuar o resgate da memória. Era isso que eu tinha a dizer. Agradeço-lhes a oportunidade. Obrigada.
O presidente - Muito obrigado, Cida, pelo depoimento.
É bom ressaltar também que, durante o regime militar ou a ditadura militar, nas décadas de 1970, 1980, foram expulsos do campo brasileiro cerca de 50 milhões de pessoas. Houve um êxodo rural absurdo, fruto da ditadura, chamado de Revolução Verde. Foi a época do milagre econômico, a época em que promoveram a expulsão de trabalhadoras e das trabalhadores rurais. A estimativa foi a expulsão de 50 milhões de pessoas, porque se incentivou, a partir daquele momento, a entrada do chamado agronegócio, que são os latifúndios e as grandes empresas agrícolas.
Aqui, em Minas Gerais, no cerrado, eles amarravam correntes em trator e iam pelo cerrado afora, derrubando o que tinha para o plantio de eucaliptos. Em convênios que fizeram com empresas, elas pagavam uma mixaria por ano, por hectares de terra. Era dado o prazo, em contratos - que duraram e duram até hoje -, de 30, 50 anos. Alguns terminaram agora. Eles estavam na Justiça, porque terras do Estado foram oferecidas, em contratos, a essas empresas chamadas de reflorestadoras. Foi uma época terrível no campo, também nesse sentido. Foram expulsas 50 milhões de famílias. Isso explica muito a desigualdade social no Brasil, não é Durval Ângelo? Pessoas vieram para os grandes centros e se acomodaram em favelas. Elas não tinham formação técnica nem escolar para virem para os grandes centros.
Às vezes, ouvimos horrores sobre a ditadura; outras vezes, ouvimos que ela trouxe progresso. Isso é mentira, é falácia. Ela trouxe miséria, e uma das formas dessa miséria foi a expulsão de milhões e milhões de famílias brasileiras do campo. Esse malefício também tem de ficar registrado aqui. Hoje há dificuldades para dispormos de programas sociais que agreguem famílias e leve-as a produzirem novamente. É uma imensa dificuldade torná-las agricultoras familiares novamente.
Imaginem se há 50 anos, ao invés da Revolução Verde, entre aspas, tivéssemos feito eletrificação rural, programas de crédito para os trabalhadores, programas de comercialização de alimentos para os agricultores familiares, programas como o Água para Todos e programas de reforma agrária? Certamente, a condição do Brasil hoje, do ponto de vista da concentração de renda, seria muito diferente. Evidentemente, a ditadura trouxe a concentração urbana com seus diversos problemas, como o da mobilidade urbana. Isso é fruto de um regime militar, de uma ditadura, momento em que não se podia discutir com ninguém o modelo real de desenvolvimento do nosso país.
Do ponto de vista social, é preciso criticar a ditadura. É preciso criticar a ditadura também quanto às questões de liberdade e tudo o que temos dito do ponto de vista econômico. Ela foi uma falácia e um malefício para os mais pobres no Brasil. Isso é preciso ser dito também.
Fazendo parte das comemorações dessa luta contra o regime militar, contra a ditadura, aproveito para chamar quem puder comparecer, os telespectadores da TV Assembleia, para o lançamento do livro Nós dois, de Nita Freire e Paulo Freire, às 19 horas, no Memorial da Anistia, entrada atrás da antiga Fafich, entre as Ruas Primavera e Carangola. Esse lançamento é uma realização do Sind-UTE, da CUT e tem o apoio do meu mandato.
Com a palavra, o Sr. Sirlan de Jesus.