Pronunciamentos

MARCELO LEONARDO, Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Minas Gerais - OAB-MG.

Discurso

Discursa sobre o tema: "A Multiplicidade de Leis e as Dificuldades para os Operadores do Direito".
Reunião 181ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 33, Coluna 4
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Marcílio França Castro, Américo Avelino Barbosa.

181ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 10/6/2002 Palavras do Sr. Marcelo Leonardo Caríssimo Presidente, Deputado Wanderley Ávila; ilustre coordenador dos debates, Deputado Eduardo Brandão; colegas participantes deste painel do fórum técnico sobre a consolidação das leis e o aperfeiçoamento da democracia; participantes do evento; em primeiro lugar, agradeço o convite formulado a mim por esta Casa para participar deste fórum. Acredito que os organizadores do evento tenham sido extremamente felizes ao convidarem para falar, em primeiro lugar, o Prof. Menelick de Carvalho Neto, dando-me, em seguida, a palavra. Iremos, naturalmente, mudar de um plano para outro, planos diametralmente opostos. As colocações do Prof. Menelick, fora de dúvida, são as de um filósofo, de um cientista, de um pensador que merece todo o nosso respeito e admiração. O tema a mim apresentado para debate diz respeito à multiplicidade de leis e às dificuldades dos operadores do Direito. Então, tenho que descer muito ao dia-a-dia da aplicação, da interpretação da lei, do conhecimento da legislação, da sua vigência e os múltiplos problemas daí resultantes para aqueles que, genericamente, chamamos de operadores do Direito, legisladores, Juízes, membros do Ministério Público, advogados e todos aqueles que lidam com o dia-a-dia da aplicação das normas jurídicas. O Brasil é um país de Direito escrito, e, portanto, em geral, vamos buscar nas normas editadas a solução de determinados problemas, embora, na sua aplicação e interpretação, como é óbvio, tenhamos que levar em conta os princípios fundamentais. Se falarmos em multiplicidade de leis no Brasil, começamos já a pensar na Constituição de 1988, que hoje tem - estou com medo de errar várias vezes - 36 emendas; na Constituição do Estado de Minas Gerais, que tem 52 emendas; em uma legislação complementar federal que já chegou à Lei Complementar Federal nº 113, em que estão estatutos, leis orgânicas etc. Se falarmos em legislação federal ordinária, se não estou enganado, a última lei tem o número 10.470. Há um quadro feito em 1999 que registrava que tínhamos, no País, entre leis complementares, delegadas, ordinárias, decretos-lei, decretos de governos provisórios, decretos legislativos, mais de 28 mil leis, sendo mais de 14 mil de caráter geral. Isso, no plano federal. Entre estas, temos os múltiplos códigos brasileiros. Ao lado destes, o Código Civil, o Código Penal, os Códigos Processual Civil, Processual Penal, Comercial, Tributário, Consolidação das Leis do Trabalho, Código Eleitoral, e vai por aí afora, temos toda uma legislação complementar extravagante, especial, de origem federal. Se fizermos uma referência às medidas provisórias, antes da Emenda à Constituição nº 32, os operadores do direito chegavam à loucura. Era dificílimo conseguir saber o que estava em vigor, o que não estava em vigor, porque havia número diferente de medida provisória sobre o mesmo assunto. A partir de um determinado momento, começou a haver o número seguido da edição, a diferença entre as edições. Lembro-me de um episódio na minha área, direito penal e processo penal, relativo à Medida Provisória nº 1.571. A edição do mês de setembro tinha uma norma penal não incriminadora. Sempre houve o debate sobre o fato de que não podia existir uma norma penal incriminadora, embora o art. 62 não tivesse limites de conteúdo. Mas era uma norma penal não incriminadora. Ela saiu na edição de setembro e de outubro. Na de novembro, não veio mais o texto. Ficamos em uma situação complicada, porque norma penal tinha aplicação para o futuro e para o passado, e a medida provisória, mesmo modificada, tinha vigência para a frente. Ficava-se realmente num estado de completo desespero para conhecimento da legislação. Se fizermos abstração de decretos, regulamentos, resoluções, portarias, instruções normativas, regimentos internos, se pensarmos em um plano mineiro, temos, ao lado da nossa Constituição, com mais de 50 emendas, as leis complementares federais, estaduais até a nº 64, as leis ordinárias mineiras, a última é a 14.267, aprovada na semana passada. E Minas tem 853 municípios. Cada um, por sua vez, possui sua lei orgânica municipal e legislações ordinárias municipais. É óbvio que os operadores do direito, em geral, têm uma tremenda dificuldade de simplesmente conhecer as leis. Dizem que é muito fácil: “Basta consultar a Internet, no site da Presidência da República, que se verá o tópico “legislação”, ou entrar no “site” da Assembléia de Minas. Assim, estaremos raciocinando com grandes centros. Sou Presidente da OAB - MG há cinco anos. Temos, em Minas, 853 municípios e cerca de 300 comarcas. A OAB tem subseções em 141 cidades. Não consegui interligar todas as subseções da OAB-MG, porque não temos provedor de Internet em todas as cidades mineiras. O maior provedor do Estado de Minas Gerais, de maior abrangência estadual, com o qual a OAB recentemente fez contrato, é a UAI, do grupo “Estado de Minas”, que está presente em 102 cidades. Então, é extremamente difícil, se pensarmos em 170 milhões de brasileiros, com 2 ou 3 milhões que têm acesso à Internet. Então, não se pode raciocinar assim, dentro do nosso Estado, que é a segunda ou terceira economia do País, dependendo do fator a ser considerado. A pesquisa de texto e de vigência das leis - se está em vigor ou não, qual a data de vigência, a revogação ou derrogação, o velho comentário sobre aquele dispositivo final “revogam-se as disposições em contrário”, e a proposta de que é preciso haver revogação expressa, senão não vai mudar nada, se a lei nova estiver em conflito com a anterior, uma revoga a outra - nos leva a pensar na dificuldade decorrente desse quadro gigantesco de atos normativos legislativos que compõem o ordenamento jurídico brasileiro e contribuem para os múltiplos problemas que são levados ao Poder Judiciário na aplicação e interpretação das leis, nas divergências de decisões e jurisprudências, que até levam a propostas como a de edição de súmula vinculante para suprir deficiências de uma legislação que muitas vezes não se consegue entender satisfatoriamente. Gostaria de pontuar alguns casos curiosos, para tornar mais agradável a exposição. O nosso saudoso Orlando Magalhães de Carvalho, professor de Teoria Geral do Estado da Faculdade de Direito da UFMG, ex-Reitor da Universidade, mestre de sucessivas gerações na Casa de Afonso Pena, em meu caso pessoal, foi professor do meu pai e, depois, meu professor, ainda fui seu colega como professor na escola durante muitos anos, sempre citava uma piada para os seus alunos sobre um livreiro inglês. O livreiro inglês recebeu um francês que foi comprar uma edição da Constituição francesa. E o livreiro inglês disse: “Não trabalhamos com publicações periódicas”. Temos esse problema. Hoje, o aluno de direito já compra a edição 2002 do Código desatualizada. Na semana passada, quando, felizmente, a UFMG voltou a funcionar, eu disse aos meus alunos: “Vocês têm que comprar a edição 2002 do Código, mas ela já está desatualizada, podem ter certeza”. Um segundo exemplo curioso aconteceu comigo no início de minha vida profissional. Fui fazer uma audiência em Patrocínio, por volta de 1977. Havia várias testemunhas que seriam ouvidas. Uma das pessoas que havia sido intimada não compareceu. Então, o Juiz mandou buscá-la. O Oficial de Justiça trouxe a testemunha, e o Juiz decretou sua prisão por 15 dias. Aí, eu, cuidadosamente - porque era advogado novo e preocupado -, disse a ele: “Doutor, essa lei que o senhor está citando já está revogada”. O Juiz tinha um codigozinho velho, o dispositivo já estava revogado, e ele não podia mais ordenar a prisão da testemunha faltosa. Só poderia aplicar-lhe uma multa. A falta de cuidado na elaboração legislativa é outro drama que todos nós enfrentamos. Em 1990, aconteceu um fato inédito. A Lei nº 8.137, de 1990, que trata dos crimes tributários, em seu art. 18, introduziu um artigo novo no Código Penal Brasileiro dando-lhe um número e ordenando, em seguida: “Renumerem-se os demais”. Foi uma gritaria geral. Até o samba ia ficar prejudicado porque cita o famoso 171, que trata do estelionato, em suas músicas. E o 171 ia virar 172. Foi uma coisa terrível. Foi necessário fazer um barulho tremendo. A lei era de dezembro e, em fevereiro, o Congresso aprovou a Lei nº 8.176 e revogou aquele art. 18, deixando o Código Penal do jeito que ele é. Até os presos do Brasil conhecem o Código. Se perguntarmos a algum preso qual é o seu caso, ele responde: “Doutor, o meu é 155.”. Já sabe que é o furto. Ou: “O meu é o 121”, ou seja, homicídio. No entanto, alguém teve a falta de cuidado de dizer: “Renumerem-se os demais.”. Outra situação curiosa é a pressão, como disse o Prof. Menelick, feita pela televisão brasileira na elaboração legislativa. Em 1998, tivemos o famoso escândalo de falsificação de remédios. Na mesma hora, o Congresso se mobilizou e editou a Lei nº 9.677. A ementa da lei dizia o seguinte: “Transforma em crime hediondo a falsificação de remédios”. A gente lia o texto de cima para baixo, de baixo para cima, do art. 1º ao último, e não havia nenhuma definição para crime hediondo. Aí, veio a dúvida: iríamos interpretar a lei pela ementa? A ementa vale, não vale, o que fazemos com isso? Dois meses depois, veio a Lei nº 9.695, que alterou a lei de crimes hediondos para incluir a falsificação de remédios. Eles tinham se esquecido de fazer isso quando alteraram as penas da infração. Ao lado disso, vivemos um problema de diferenças entre vontade do legislador e vontade da lei. Temos na área da justiça penal no Brasil um problema complicadíssimo que está gerando as maiores discussões. Não foi desejo do Congresso Nacional, mas é verdade. Em julho do ano passado foi aprovada a Lei nº 10.259, que criou os Juizados Especiais Federais. Essa lei diz que, para efeito dos Juizados Especiais Criminais Federais, consideravam-se pequenas infrações penais os crimes punidos com pena de até dois anos. Essa lei ficou com “vacatio legis” até janeiro deste ano. De lá para cá, surgiu o debate: esse novo conceito vale para a justiça estadual ou não? O legislador não queria que valesse, pois disse: “Para os efeitos dessa lei”. Indo aos princípios constitucionais do ordenamento jurídico a que se referiu o Prof. Menelick de Carvalho, com sua habitual proficiência, começamos a discutir o princípio de isonomia: não se pode dar tratamento desigual para a mesma infração. Por exemplo, se as duas leis tiverem aplicação distinta, teremos o seguinte escândalo: se eu desacatar um policial estadual, da Policia Militar, ele pode me prender em flagrante, instaurar o inquérito, e serei processado pelo crime de desacato. Mas, se eu desacatar um agente da Polícia Federal, ele não pode me prender em flagrante, só poderá fazer um TCO e mandar para o juizado, onde posso fazer uma transação, pagar uma cesta básica, e está resolvido o caso. A infração era a mesma. Na interpretação desse dispositivo, hoje metade do País entende que a norma se aplica a todos os Juizados Especiais, estaduais ou federais. Como efeito disso, mais de 50% dos casos da área penal foram para o juizado. Hoje, podemos extinguir as Câmaras Criminais do Tribunal de Alçada do Estado sem problema nenhum, porque a competência delas acabou; está nas turmas recursais dos juizados. Isso não foi desejo do legislador. Hoje, alguns tribunais recomendam que se aplique, outros dão recomendação contrária, causando um festival de problemas. Há um grande debate sobre violência doméstica, e o Congresso entendeu que devia admitir a adoção daquela medida cautelar, possível no juízo cível, para afastar o agente do fato do lar, diante de eventual instauração de um procedimento criminal. Foi votada a Lei nº 10.455, mas o texto ficou tão malfeito que o Presidente da República e o Ministro da Justiça ficaram diante de uma dificuldade: se vetasse, iriam falar que o Presidente estava combatendo uma lei que trata da violência doméstica; se não vetasse, o texto seria absolutamente complicado para ser aplicado pelo Poder Judiciário. Então, vetaram o artigo da vigência para cair na regra de introdução ao Código Civil, de 45 dias, prometendo que iam mandar uma outra lei para o Congresso consertar. Já está quase completando um mês, e nada ainda foi feito. Esse dispositivo entrará em vigor daqui a pouco. Tudo isso faz com que, do ponto de vista pragmático, raciocinemos que a idéia de consolidação das leis ou de racionalização é, sem dúvida nenhuma, uma idéia boa que pode facilitar a vida dos operadores do direito em geral e que tem sua razão de ser. No plano federal, com base no parágrafo único do art. 59 da Constituição, tivemos a edição da Lei Complementar Federal nº 95, de 1998. Eu, muito desconfiado, ontem, antes de me deitar, resolvi ver se essa lei ainda está em vigor. Consultando a Internet, vi que ela já foi alterada, há a Lei Complementar Federal nº 107, de 24/4/2001, que mudou vários artigos da Lei Complementar nº 95. Daí, fui me preocupar com o regulamento. Vi os comentários, achei um artigo do Ives Gandra Martins Filho, mestre pela UNB, um dos teóricos do assunto sobre consolidação das leis, em que cita o regulamento, o Decreto nº 2.954, de 29/1/99. Eu me assustei por já haver outro com pouco mais de dois meses de vigência, o Decreto nº 4.176, de 28/3/2002, que regulamenta a consolidação das leis no plano federal. A história da consolidação, no plano federal, está regulada pela Lei Complementar Federal nº 95, com as alterações da Lei Complementar Federal nº 107, e o regulamento da matéria, hoje, se eu não estiver enganado, é o Decreto nº 4.176, de 28/3/2002. Tudo isso para se chegar à conclusão de que, nesse cipoal de leis em que vivemos, não há como querer que o Poder Judiciário brasileiro resolva aplicar, com a singeleza dos recursos, esse ordenamento jurídico aos princípios fundamentais. Vai ser difícil saber o que está e o que não está em vigor, o que foi revogado e o que foi derrogado. Teremos dificuldades até de acesso. Daí, por que nos parece extremamente válido, considerando as limitações próprias de um processo dessa natureza, pensar-se num programa de consolidação da legislação, quer no plano federal, quer no plano estadual. Sem dúvida, do ponto de vista do cotidiano da vida jurídica, vai-se facilitar a vida dos operadores do direito. Muito obrigado.