Pronunciamentos

MAGDA DE ALMEIDA NEVES, Fundadora do Movimento Feminino pela Anistia em Minas Gerais.

Discurso

Comenta o tema: "A Campanha pela Anistia Ontem e Hoje - O Processo", dentro do 2º painel.
Reunião 31ª reunião ESPECIAL
Legislatura 16ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 12/09/2009
Página 43, Coluna 3
Evento Ciclo de debates: "30 Anos de Luta pela Anistia Política no Brasil".
Assunto DIREITOS HUMANOS.

31ª REUNIÃO ESPECIAL DA 3ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 16ª LEGISLATURA, EM 27/8/2009 Palavras da Sra. Magda de Almeida Neves Gostaria de cumprimentar o Deputado Vanderlei Miranda, coordenador dos trabalhos, as autoridades, os meus colegas da Mesa, o Betinho Duarte, a Valéria Couto, a Gilse Cosenza. Começo a minha fala neste ciclo de debates “30 anos de luta pela anistia política no Brasil” lembrando Carlos Drummond de Andrade: “A anistia nos becos, nos quartéis, / nas mesas burocráticas, nos fornos, / na luz, na solidão: / só anistia. / Esta é a voz dos mortos sob o mármore, / a voz dos vivos no batente. Ouço / mil bocas em silêncio murmurando: / anistia. / Vem, pois, ó liberdade, com o teu fogo / e tua voz rebelde nos cabelos, / vem trazer os irmãos para o sol puro / e incendiar de amor os brasileiros”. Esse lugar que agora ocupo simbolicamente pertence a um grupo de mulheres que enfrentaram com força e coragem o silêncio e o medo imposto pela ditadura militar. Sem muito alarde, mas com persistência, construíram aos poucos uma tessitura de esperança naqueles tempos sombrios. Como 1975 foi declarado pela ONU o Ano Internacional da Mulher na luta pelos seus direitos, Terezinha Zerbini aproveitou o momento para fundar, em São Paulo, o Movimento Feminino pela Anistia. Em Belo Horizonte, desde 1976, um grupo de mulheres começou a se organizar para formar o núcleo do Movimento Feminino pela Anistia: Eleonora Menicucci, Zélia Rogedo, Ângela Pezzuti, Emely Salazar, Maria Luiza Meyer, Inês Teixeira, Efigênia de Oliveira, D. Ondina Nahas começaram a realizar visitas às casas de familiares de presos políticos, exilados, desaparecidos, convidando as mulheres a participarem do movimento. As primeiras reuniões foram realizadas na casa da D. Yedda Matta Machado e, posteriormente, Terezinha Zerbini foi convidada a vir a Belo Horizonte. Na casa de D. Yedda foi lançada a semente desse movimento. Aos poucos, esse pequeno grupo de mulheres foi-se consolidando e, durante todo o ano de 1976 e início de 1977, reuniões foram realizadas na sacristia da Igreja Carlos Prates, sempre à noite, contando com o apoio dos padres. Nessas reuniões, foi-se sedimentando a proposta de fortalecer e ampliar o mais possível o Movimento Feminino pela Anistia. Aos poucos, na tessitura da trama social, foram-se instituindo diversas ações, como distribuição de panfletos nas portas das igrejas, visitas aos presos políticos de Linhares, arrecadação de fundos para auxiliar os presos políticos com a venda de artigos de couro, denúncia das péssimas condições a que estavam submetidos, assistência às famílias. Muitas outras mulheres foram, aos poucos, se envolvendo com o movimento, constituindo-se uma verdadeira rede de solidariedade e coragem. Em julho de 1977, D. Helena Greco foi escolhida Presidente e Ângela Pezzuti Vice-Presidente, ocorrendo a ampliação do conselho existente desde 1976. Desde esse momento, D. Helena Greco assumiu o movimento pela anistia e, posteriormente, dedicou sua vida à luta pelos direitos humanos. Em 2005, foi uma das 52 mulheres brasileiras que integraram a lista do projeto 1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz. Muitas intimidações e repressões tentaram impedir as ações do Movimento Feminino pela Anistia - MFPA. Bombas foram jogadas na casa de D. Helena Grecco e na Igreja do Carlos Prates, que nos abrigou durante um tempo. Na época da realização da reunião pró- anistia no Colégio Santo Antônio, que conseguiu aglutinar vários setores da sociedade e contou com a presença de D. Terezinha Zerbini, foi denunciada a existência de uma bomba nas dependências do colégio. Era, na realidade, uma notícia falsa para intimidar o movimento, mas logo conseguimos que o DCE-UFMG nos cedesse sua sede na Rua Gonçalves Dias e fomos em passeata pelas ruas na luta pela anistia. Nessa época foi decisivo o apoio de um grupo de advogados que atuavam efetivamente junto ao MFPA, e gostaria de homenagear todos nas pessoas de Afonso Cruz e Geraldo Magela, que já não se encontram mais entre nós. Neste contexto foi criada a Secretaria dos Exilados em Belo Horizonte, na qual Ângela Pezzuti desempenhou papel fundamental: levantamento de todos os exilados mineiros com o detalhamento da situação política e jurídica de cada um, troca de correspondência entre a Secretaria e os exilados e a informação dos documentos necessários para volta ao Brasil. Foi elaborada uma cartilha com todas essas informações e enviada ao exterior. Marco significativo de toda essa trajetória foi a iniciativa da Associação Brasileira de Imprensa e do jornal “O Pasquim” de promover um concurso de cartazes com a finalidade de representar um forte apelo pela causa da anistia. Neide Pessoa, se inspirando nos versos da canção “Não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá”, foi vencedora com o cartaz que se tornou símbolo da anistia. O MFPA acumulou forças, e a crescente participação de vários setores da sociedade na luta pela anistia, ampla, geral e irrestrita contribuiu para a formação dos Comitês Brasileiros pela Anistia - CBAs -, em 1978. Por que rememorar esses fatos neste evento dos 30 anos? Muitas são as razões. Tomo emprestadas as palavras de Heloísa Amélia Greco, participante ativa do MFPA, na sua tese de doutorado, intitulada “Dimensões Fundacionais da Luta pela Anistia”, que salienta “o direito à memória como dimensão da cidadania”, e também as palavras de Jacques Le Goff: “a memória onde cresce a presente história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação, e não para a servidão dos homens”. Dois elementos aparecem como de vital importância: cidadania e memória coletiva. Neste momento de reflexão sobre o significado do movimento pela anistia ampla, geral e irrestrita, minha narrativa busca as reminiscências de um passado carregado de ações instituintes e construído pela experiência individual e coletiva de cada uma dessas mulheres que ousaram interpelar seu tempo em busca de novos horizontes. E relembro um texto de Michelle Perrot: “As mulheres não são passivas nem submissas. Elas estão presentes aqui e ali (...) Elas têm outras práticas cotidianas, formas concretas de resistência à hierarquia e à disciplina, que derrotam a racionalidade do poder (...) elas traçam um caminho que é preciso reencontrar (...) uma história outra (...) uma outra história”. A Lei de Anistia, aprovada no Congresso Nacional e sancionada por João Batista de Figueiredo em 28/8/79, foi resultado da ampla mobilização de vários setores da sociedade, liderados pelo MFPA e pelos CBAs espalhados por todo o Brasil. Várias instituições também se mobilizaram, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que, no seu congresso de 1977, aprovou uma moção pela anistia geral. A aprovação daquela lei permitiu a volta dos exilados e a soltura dos presos políticos. Foi uma vitória importante e contribuiu de maneira significativa para o início de forte mobilização na sociedade brasileira pelas eleições diretas e pela redemocratização do País. Entretanto, a lei aprovada e sancionada por Figueiredo provocou diversos protestos. Se, por um lado, a anistia permitiu que perseguidos políticos e exilados voltassem ao País e que presos políticos fossem colocados em liberdade, a lei promulgada não garantiu a anistia que os movimentos e as diversas instituições propunham. O adjetivo “conexo” - existente no § 1º, que diz: “É concedida anistia a todos quantos (...) cometeram crimes políticos ou conexos com estes” - deu cobertura a todos aqueles que, em nome do Estado brasileiro, cometeram torturas e assassinatos. O “conexo” possibilitou que o Estado brasileiro não reconhecesse os crimes cometidos na ditadura militar em nome da defesa da segurança nacional do Estado ditatorial. Embora, nos últimos anos, as inúmeras iniciativas da Secretaria Especial de Direitos Humanos tenham objetivado esclarecer muitos dos crimes praticados e reparar as arbitrariedades sofridas por muitos brasileiros no período da ditadura militar, muito ainda precisa ser feito. Além de não punir os torturadores, o Brasil também não cumpriu outras exigências da chamada Justiça de Transição. Criada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Justiça de Transição prevê que os governos de países que passaram por um regime de exceção devem assumir quatro responsabilidades: acesso a informações e dados públicos para preservação da memória do período; reparação do prejuízo sofrido por cidadãos que tiveram seus direitos lesados pelo Estado; julgamento e punição dos responsáveis por crimes contra a humanidade imprescritíveis e não passíveis de anistia; e promoção de mudanças nas instituições de segurança pública. Dos quatro aspectos, o Brasil só enfrentou a questão da reparação. Permanecem ainda sob sigilo os arquivos do período militar, e não foram apurados os crimes contra os direitos humanos. Rememorar a luta pelos direitos e pelas liberdades democráticas faz parte de um legado que toda uma geração deixou inscrito na história brasileira e que não pode jamais ser olvidado. Como diz Adauto Novaes: “Esquecer o passado é negar toda efetiva experiência de vida; negar o futuro é abolir a possibilidade do novo a cada instante. Mais ainda, as ideias de justiça, liberdade, alteridade tornam-se abstrações vazias no espaço e no tempo, a partir do momento em que qualquer ação já se sabe eternamente feita e, absolutamente, irreparável” (in: “Tempo e História”, Companhia das Letras, pág. 9, 1992). Buscar enfrentar essas ações é um compromisso para o fortalecimento da democracia no Brasil, como já o fizeram outros países latino-americanos que passaram por ditaduras militares, como Chile, Argentina e Uruguai. Para finalizar, nas pessoas de D. Helena Greco e Ângela Pezzuti, Presidente e Vice-Presidente do MFPA, homenageio todas as mulheres - as que não pude citar nestas palavras e muitas anônimas - que contribuíram decisivamente naqueles anos, quando o medo dominava o cenário político brasileiro, e que, com coragem e determinação, ousaram infringir as amarras do poder dominante inscrevendo a luta pela anistia nos seus corações e mentes, como traduzido nos versos do poeta: “E todos os meus nervos estão a rogar / E todos os meus órgãos estão a clamar / E uma aflição medonha me faz implorar / O que não tem vergonha nem nunca terá / O que não tem governo nem nunca terá / O que não tem juízo (...) / O que será que será (...) / Que todos os avisos não vão evitar / Porque todos os risos vão desafiar / Porque todos os sinos irão repicar / Porque todos os hinos irão consagrar (...) / E todos os destinos irão se encontrar”. Anistia ampla, geral e irrestrita. Obrigada.