Pronunciamentos

LUIZ CARLOS CASTELLO BRANCO RENA, Escritor. Pedagogo. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Professor e Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Processos Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas.

Discurso

Comenta o tema: "Violência no Ambiente Escolar", dentro do 2º painel.
Reunião 35ª reunião ESPECIAL
Legislatura 17ª legislatura, 1ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 15/10/2011
Página 132, Coluna 3
Evento Fórum Técnico: "Segurança nas Escolas: por uma cultura de paz".
Assunto EDUCAÇÃO. SEGURANÇA PÚBLICA.

35ª REUNIÃO ESPECIAL DA 1ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 17ª LEGISLATURA, EM 4/10/2011


Palavras do Sr. Luiz Carlos Castello Branco Rena

Bom dia a todas e a todos. Cumprimento o Deputado João Leite e os demais integrantes desta Mesa. Saúdo todos os que estão neste Plenário por uma discussão tão importante, nesta manhã de 4 de outubro. Agradeço a oportunidade de estar aqui, mesmo porque tive o prazer de reencontrar uma professora que dividiu comigo o esforço do meu percurso formativo na Faculdade de Educação, a Profa. Maria Lisboa, que eu não via há mais de 25 anos.

Quando fui convidado para participar deste evento, relutei um pouco. Gosto muito de trabalhar com crianças. Peço-lhes que esqueçam um pouquinho a apresentação feita pelo Deputado e vejam aqui um professor. Não consigo falar sobre este tema sem lembrar o Cássio, meu colega, professor de Educação Física, assassinado brutalmente por um estudante. Não consigo falar deste tema sem lembrar o Sandro, menino de 16 anos, negro, que estava dando os primeiros passos para sair da teia do narcotráfico, envolvido, implicado num projeto de extensão da PUC Minas de Betim, em parceria com a Arca. Esse garoto foi atingido por nove tiros, agonizou durante uma noite inteira e não resistiu. Não consigo falar sobre este tema sem me lembrar das vítimas. Não podemos esquecer as vítimas, nenhuma delas. Não consigo esquecer a cena do sepultamento do Sandro, em que estavam a mãe e os educadores que acompanhavam esse garoto. A orientação foi: “Sepultem rápido, o melhor é sepultá-lo depressa”.

Ofereço o meu esforço de pensar essa questão, o meu esforço de estar aqui, nesta manhã, a esse professor e a esse menino, lembrando todos os outros professores, meninas e meninos que caíram na teia da violência e não conseguiram escapulir dela.

Trago-lhes uma reflexão que fiz recentemente, há alguns meses, num evento do Tribunal sobre o ECA. Acresci a essa minha reflexão algumas propostas, já que este fórum pretende pensar saídas, respostas para uma questão muito complexa. A fala da Profa. Miriam nos mostrou o tamanho do problema, as suas várias faces. Vou deixar alguns pontos de lado, abordarei determinados aspectos. Vou concentrar-me nas propostas.

Este professor começou a dar aulas em abril de 1980. Passei, durante muito tempo, por escolas públicas, escolas estaduais, como contratado. Passei por escolas particulares de grande porte de Belo Horizonte, fui professor de filhos de Deputados, de filhos de Governadores, de filhos de grandes empresários. Fui parar no Norte do Mato Grosso e no interior de Goiás para trabalhar com comunidades rurais. Voltei para Belo Horizonte, hoje estou na PUC. Nesses 30 anos de percurso, estou nessa universidade há 10 anos. A violência não é um fato novo para a escola, nunca foi. No primeiro ano em que trabalhei com 18 turmas de 5ª série, quando assumi o ensino religioso da escola estadual, em 1980, assisti a várias coisas na Escola Estadual Odilon Behrens, onde comecei a aprender a ser professor. Só aprendemos a ser professores no momento em que encaramos uma turma. A violência não é um fato novo, nem a violência como gesto dos adolescentes e das crianças, nem a violência como gesto do professor. Tive e tenho colegas violentos. Precisamos reconhecer que atos e gestos violentos não partem só das crianças e dos adolescentes, muitas vezes a violência que assistimos vindo de lá para cá é uma resposta a nossa ação violenta. A escola se consolida, infelizmente, como palco da violência porque a sociedade banalizou a violência. Passamos a conviver com ela assim como convivemos com o trânsito difícil. Hoje demorei uma hora e meia de Betim até aqui. Nós nos acostumamos com isso.

A violência também tem sua raiz numa política da invisibilidade. Somos levados pela correria e pelo cotidiano da escola, que recebeu várias outras tarefas além da sua mais fundamental e começou a tratar os nossos meninos e meninas como seres invisíveis. Fico pensando se essa anulação da subjetividade, esse desconhecimento da particularidade, daquilo que cada um tem de próprio, assim como a atitude de ignorar o sujeito único e particular que está diante de mim, não estão no elenco dos fatores que produzem a violência na escola.

Durante décadas assistimos a uma política deliberada de pauperização da escola. Os banheiros se tornaram inutilizáveis. As quadras não puderam ser usadas durante muito tempo porque estavam cheias de buracos. De alguns anos para cá, começamos a assistir à tentativa de retirar as escolas da situação de pauperização material, mas ainda há um longo caminho a ser feito. Ainda há muitas escolas pedindo pelo fundamental, pelo básico. Essa política de pauperização das escolas também pode ser vista como produtora da violência.

Acho que não precisamos perder muito tempo pensando nas raízes da violência, pois a Profa. Miriam trouxe muitos fundamentos para pensarmos nisso. Apontarei algumas coisas que podem ser um caminho. Humildemente sugerirei algumas mudanças de atitude e iniciativas.

A Profa. Miriam falou sobre a cultura da violência. Temos muitos sinais evidentes de como essa cultura se torna cada vez mais arraigada e disseminada. Então, impõe-se-nos a tarefa de mudá-la. Tenho consciência de que mudar a cultura não é tarefa para uma geração. Se há alguém pensando que sairá deste fórum localizando e identificando respostas para amanhã, irá frustrar-se. Temos uma tarefa pela frente que impõe atitudes, pensando no curto prazo, no médio prazo e no longo prazo. E essa tarefa de mudar a cultura é para algumas gerações. Preciso convencer as três adolescentes que tenho em casa de que precisam dar continuidade ao que estou tentando construir no meu esforço como professor e educador. Tenho que compartilhar isso com as gerações futuras.

Dentro desse esforço de mudar a cultura, precisamos nos convencer, e a todos que conseguirmos, quase em um esforço de conversão - sabem aquele sujeito que acabou de descobrir o caminho para a relação com o sagrado e ver que aquilo é muito bom, portanto quer convencer todos à sua volta a fazer o mesmo caminho? -, a praticar a cultura do cuidado. Precisamos resgatar a ideia de que cuidar do outro é gostoso, faz bem para a alma, para o corpo, para as relações - o cuidar dentro da família, na escola, do namorado ou da namorada, do parceiro ou da parceira. Precisamos resgatar a ideia do cuidado. Devemos apostar na possibilidade de que conflitos podem ser mediados. Tive muitos estudantes parceiros, como o Marco, que está ali no fundo - é muito bom vê-lo aqui -, que fizeram a experiência da mediação de conflitos e trouxeram vivências muito ricas, conquistas muito importantes - pequenas conquistas em experiências de mediação de conflitos nas comunidades, as quais os jornais não publicam, sobre as quais a mídia não joga luz. Precisamos fortalecer esse programa, investir recursos nele e envolver as universidades. A ideia de que o conflito pode ser mediado precisa ser fortalecida.

Na verdade, esse é o esforço da aprendizagem da democracia. Estamos quase com 30 anos da redemocratização do Brasil, mas ainda não conseguimos viver esse processo nas microrrelações. Quantas vezes, nas relações com minhas filhas, percebo-me autoritário, antidemocrático. E sou uma pessoa que pegou o finalzinho da ditadura e sabe o que é viver em um país sem democracia. E quantas vezes me pego assim... Vivemos todo esse processo de redemocratização, mas não conseguimos traduzir isso nas microrrelações, nas quais incluo a relação professor-aluno, as relações pedagógicas que ocorrem no chão das salas de aula, como disse a Beatriz.

Mecanismos de punição e exclusão são insuficientes para resolver o problema. Estou convencido disso depois desses 30 anos de percurso. Neles, incluo os mecanismos de punição policial. Recentemente, fui iniciar um projeto de extensão em uma escola do Bairro Citrolândia, em Betim, que vive nas manchetes das páginas policiais dos jornais. Ao chegar lá, encontrei uma viatura policial que foi buscar um menino da 5ª série sob a acusação de ter roubado a professora. A viatura, depois de pegar o menino e a pedagoga da escola, estava indo pegar a família para levá-los até a delegacia e fazer a ocorrência. Nunca esquecerei essa cena. No dia em que eu, professor, precisar chamar uma autoridade policial para solucionar os conflitos que aparecem, estarei assinando meu atestado de incompetência. Estarei dizendo para essa criança ou adolescente, para essa família e para a comunidade em que a escola está inserida que não dou conta do recado. Terei que devolver meu diploma para a faculdade de educação.

Não estou dizendo que policial não pode ser parceiro, pois pode e quero que seja, mas em outro contexto, em outro ambiente. E fico feliz de ver aqui, participando desta discussão, vários trabalhadores da polícia, que, muitas vezes, arriscam sua vida para proteger um garoto. Podemos ser parceiros, mas na escola, ao encarar um problema, tenho que resolvê-lo. E o gestor público, que é tão responsável quanto eu por aquele ambiente, por aquela instituição, por aquela organização, tem que dividir comigo essa responsabilidade. Qual é a saída? Não sei. Não existe receita. Cada caso, cada situação, cada escola tem um cotidiano e uma história que eu preciso reconhecer e respeitar na hora de construir a solução para aquele momento. Não há receita. Gostaria de sugerir que reconhecêssemos as crianças e os adolescentes como parceiros e atores sociais indispensáveis para a construção das soluções para o problema da violência. Não adianta querermos resolver isso sozinhos insistindo na ideia de que o adulto tem mais experiência, de que o adulto consegue pensar melhor, de que o adulto organiza mais as ideias. O adolescente e a criança têm o seu jeito de funcionar, mas, se tivermos a paciência e a humildade de sentar e dizer “meu filho, quero te escutar”, vocês vão se surpreender, assim como eu. Precisamos nos perguntar. A metade desta plateia, que está na minha frente, deveria ser de garotos. Ao final vou deixar uma provocação para a Assembleia Legislativa e para todos nós.

Queria fazer outra sugestão. Se, dentro de uma escola, consigo perceber que existe um garoto sinalizando que está trilhando um caminho em que ele substitui a palavra pela violência, em que ele substitui a possibilidade de negociar pela imposição do seu desejo; que pode construir uma história e um caminho de agressão e violência à comunidade; e que pode constituir um risco para seus pares, a escola deveria ter a obrigação de oferecer um acompanhamento individualizado a esse menino. E não são tantos assim. Acostumamo-nos com a ideia de que são muitos porque a mídia nos bombardeia todos os dias com um caso. E os casos de sucesso, de meninos que deram certo? Esses não aparecem. Digo-lhes que não são muitos. O gestor público da educação deveria cumprir a tarefa de assegurar condições a essa escola para que garanta a esse menino um acompanhamento individual, a fim de ser cuidado antes que seja tarde. Que ele seja cuidado, que seja objeto da minha atenção, que possa olhar no meu olho e sentir o prazer que tenho de estar ao seu lado, de sentir que é cuidado, gostado, amado. Esse gesto poderia mudar a trajetória de muitos meninos e meninas.

Então lhes deixo a reflexão de que, talvez, no esforço de pensar em uma política de ataque à questão da violência, comecemos a dispensar atenção individualizada aos meninos que precisam, a qualificar o professor para lidar com situações de violência que não têm data marcada nem hora para acontecer. Muitas vezes, o professor é pego de surpresa e não sabe o que fazer. Nesse sentido, a Assembleia, a Secretaria de Educação e o MEC deveriam convocar - não convidar - as instituições de ensino superior que preparam professores para as redes estadual e municipal de ensino e obrigá-las a rever o projeto pedagógico. Além do fechamento sistemático do curso de licenciatura, os que existem estão levando para as salas de aula professores que não dão conta de encarar essa realidade. As instituições de nível superior precisam rever o seu jeito de trabalhar. É preciso qualificar os professores, a direção das escolas e os gestores público para saberem lidar com a violência produzida pelos professores e encarar que eles atuam com violência.

Para encerrar, a escola é o espaço privilegiado da contradição. Tem tudo o que a Miriam disse, não podemos negar. Mas estou convencido de que a escola é o lugar de construção de vínculos, que amplia o horizonte do sujeito e onde há uma forma de sociabilidade que não exite em nenhum outro lugar. Não podemos negar, sabotar, recusar isso às nossas crianças e aos nossos adolescentes. É o lugar da festa. Mesmo se não quisermos, eles transformam a escola numa festa. É também o lugar da alegria, que, na verdade, é o outro nome da escola. A origem etimológica da palavra “escola” é “alegria”.

Para fechar, quero fazer uma provocação. Que a Assembleia, que tomou a iniciativa de realizar fóruns com o mundo adulto nas regiões do Estado e em Belo Horizonte, providenciasse os recursos, as condições necessárias para fazermos isso com a juventude, discutirmos essa questão. Como ela pode ser nossa parceira no enfrentamento da violência? Como podemos dar conta desse recado, tendo-a como principal ator desse cenário? Coloco-me à disposição para ajudar a pensar nisso. Obrigado.

A Sra. Presidente – Obrigada, Prof. Luiz Carlos Rena, da PUC Betim. Moro em Betim e fico orgulhosa, professor, de ouvir tantas autoridades ilustres. Gostaria de pedir à assessoria da Casa que as sugestões do Prof. Luiz Carlos fossem acrescentadas às propostas a serem encaminhadas, no final do nosso fórum. É extremamente importante, como ele disse, discutir com as universidades e a juventude o projeto pedagógico para o magistério. Certamente a PUC e outras universidades poderão fazer esse debate com os nossos jovens. O grande desafio que temos hoje é exatamente incluir os jovens nessa discussão.