Pronunciamentos

LUDOVIKUS MOREIRA, Filósofo. Professor da Escola do Legislativo da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Professor de teatro.

Discurso

Comenta o tema: "Navegando nas áreas da ética".
Reunião 18ª reunião ESPECIAL
Legislatura 15ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 15/06/2006
Página 74, Coluna 2
Evento III Parlamento Jovem.
Assunto ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EDUCAÇÃO.

18ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 15ª LEGISLATURA, EM 5/6/2006 Palavras do Sr. Ludovikus Moreira Boa tarde! Que bom revê-los! O mundo está prestes a passar por um colapso porque o mercado destrói a natureza, gera a miséria, provoca o ódio e transforma tudo em mercadoria, em “commodity”, até mesmo o ser humano. Será o fim do ser humano coisificado pelo capital, pela ação do próprio homem? Parabenizo os jovens estudantes pela escolha conveniente e oportuna da ética para discussão neste Parlamento Jovem. Talvez os caras lá em Brasília, que não sabem que vocês existem, passem a se preocupar com o eco de suas vozes reverberando na Esplanada do Planalto Central. Agradeço à minha amiga Patrícia Duarte a brilhante sugestão do tema desta pequena palestra: “Navegando nas águas da ética”. Obrigado, Patrícia. Fiz questão de ficar aqui embaixo porque quero que os olhares esperançosos de vocês me inspirem e me dêem alento neste momento de desencanto, dado à ruína moral em que vivemos. E essa ruína moral está derramando pelas paredes lodo e lama, e não podemos mais respirar. Tudo isso porque nós, como brasileiros e habitantes deste mundo, não podemos respirar. O ar nos está sufocando cada vez mais. Esse mundo acolhe com bons olhos os vícios e rejeita e despreza as virtudes. Quando o mundo faz a opção e a escolha de acolher o vício do egoísmo, a competição a qualquer custo, os fins justificando os meios, faz-nos tripulantes apatetados de uma embarcação sem rumo. Ao contrário, deveríamos poder ser navegadores de uma embarcação que viajasse e velejasse em águas puras e límpidas, numa direção que tornasse a humanidade mais humana, e, assim, pudéssemos ver um horizonte de esperança. Como já dizia Shakespeare, o único remédio do desgraçado é a esperança. Todavia, como o mar está bravio, lancemos âncora nas ilhas gregas, pois foi onde tudo começou, inclusive a nossa cultura. Lá inventaram a democracia. E por que eles a inventaram? Porque queriam celebrar a felicidade e a justiça. Na celebração dessa experiência democrática na Grécia Antiga, vários fatores contribuíram: as tradições do mito, a organização da pólis, a experiência cultural e teatral, quando principalmente a arte e a música tentaram capturar a beleza ao tematizar os sonhos e as angústias humanas. E também fizeram uma grande coisa: popularizaram a escrita para que todos tivessem acesso às leis. Tudo isso aconteceu em razão de um grande prodígio humano: a lógica racional. Dessa lógica, surgiu um desenvolvimento hoje no mundo tecnológico e científico capaz da mais alta produtividade. Mas esse mesmo desenvolvimento produz exclusão e miséria. O que deu errado? Que desvio tomamos? A que rota o nosso navio está nos levando? Será que está nos levando, cada vez mais, para águas turvas? Perdemos a bússola ou a bússola nos aprisionou? Assim se agitou o filósofo Sócrates, quando a democracia grega começou a entrar em decadência por causa da corrupção, o que mais se fala hoje, nos jornais. Naquela época de decadência, enquanto os sofistas tinham respostas para tudo, Sócrates só tinha perguntas. Com Sócrates, a correnteza do relato histórico precipita-se para águas profundas, para depois tornar a jorrar com força renovada. Sócrates é uma espécie de recife, de mar de corrente, de ventania, para chamar a nossa atenção. Alerta-nos para que prestemos atenção em nossa existência. Chama a consciência para o momento do desenvolvimento do espírito do mundo. Em que mundo vivemos? E a sua pergunta fundamental será: “O agir tem o fim?”. É claro que não posso tirar Sócrates do seu contexto histórico. O mundo hoje está muito distante do que foi o mundo grego de Sócrates, de Platão ou de Aristóteles, mas certas coisas pensadas por eles continuam a valer no mundo contemporâneo, como a ética. Essa palavra, transliterada do termo grego “ethos”, era o pilar da cidade-estado de Atenas, pois os gregos perceberam que, sem ética, seria impossível instituir uma comunidade política. Os gregos defenderam a ética, a etimologia e a extensão semântica da ética, dando-lhe exatamente o sentido e o significado de um abrigo protetor, de uma morada, de um lugar capaz de abrigar a ação humana livremente. Eis porque a raiz da ética é a liberdade. A liberdade não pode ficar à deriva, senão o barco desgoverna. Quando se descuida da rota, do leme, Sócrates aparece para ajudar no manejo de uma melhor rota. É como se o filósofo antecipasse o verso “Navegar é preciso, viver não é preciso”, pois o que importa é a peleja em busca do melhor. Sócrates veio para brigar com os sofistas, que faziam com que tudo ficasse à deriva. Eram considerados os mais peritos em política; agiam como certos políticos de hoje; sabiam da sua incoerência, da sua falta de princípios, mas se apresentavam de forma pomposa, autoconfiante; exibiam-se com auto-suficiência e arrogância incomparáveis, pois julgavam suprir as necessidades daquela época. E os gregos não percebiam que a sofística causava mal à democracia, pois tudo, na época, concentrava-se: o ouro, a riqueza, a exuberância, o gozo da vida, a frivolidade, a arte, a ciência, tudo estava em Atenas. Hoje, não é assim o devaneio de Nova Iorque, Londres, Tóquio, São Paulo e de outras grandes metrópoles? Muitos políticos não consideram o máximo o nosso desenvolvimento? Apesar da antropofagia socrática, ocorreu a decadência do Estado ateniense. Sócrates aniquilou a sofística, mas ela já tinha feito seu estrago. A sofística é uma espécie de monstro fantástico, pois despertou a reflexão, mas também arrancou Atenas da sua eticidade substancial. A ética ficou vacilante com a sofística; esta, por sua vez, seduzia, atraía a si a juventude. De cidade em cidade, os sofistas abriam suas escolas, e a juventude se arrastava atoleimada para o ensino da sofística. Quem tinha a posse da retórica da sofística possuía o instrumento necessário para abrir qualquer porta. Hoje, por exemplo, será que a pessoa que se expõe na mídia, na televisão, está fazendo o mesmo papel da sofística? Afinal, qual é o malefício da sofística? Os sofistas notam que o que era absolutamente certo, o determinante para a vida política, a lei, passa a ser algo que vacila, relativo, porque é contrário à vontade individual. Então, tudo se torna vacilante. E quando se está vacilante relativo, no que se pode agarrar? Os sofistas apostaram no prazer. Hoje, qual é a nossa aposta, se somos muito mais consumidores que cidadãos? Em busca dos valores, vamos, então, velejar nas águas mais profundas da ética. Na Grécia, o mito e a crença são as primeiras fontes de valores. A verdade do mito penetra no mundo grego por meio das narrativas inspiradas nas musas e nos deuses, em uma relação estreita entre estes e os homens. Todavia, os deuses estão acima dos homens, porque estes são inferiores e precários. Por isso aceitam o destino imposto pelos deuses. O mito é uma experiência primitiva do sagrado. É o exercício da magia, do encantamento com o estranho e com o diverso. O mito, então, confere sentido à existência, quando dita a normalidade e a conveniência das coisas mais importantes. Ele é uma bússola. O homem é o que é por vontade dos deuses. O mito tem uma força, um poder legislador e julgador revestido no destino do sagrado. Essa lógica só será destravada com o surgimento da democracia e da filosofia, quando os homens encontram a resposta racional para todas as coisas de que precisam para os negócios humanos, no mundo real. Os fatos, então, passam por uma explicação, e o destino humano será definido pelo próprio homem na pólis, e não mais pelos deuses, no Olimpo. Quando o homem toma a si o poder de definir seu destino, surge o vírus da desconfiança. Quem, agora, garante qualquer coisa? Qualquer um pode emitir sua opinião. A ética é conduzida a formular a primeira noção científica da natureza. Com isso, ela deixa de ser a expressão do consenso, da multidão, da opinião, para ser algo segundo a razão, a natureza, a qualidade das coisas. Porém isso não basta. Ou seja, não basta apenas ser racional. É preciso algo mais. Sócrates é quem vai abrir a porta da embarcação desconhecida. Ele diz que o agir é teleológico. O que é isso? Que o agir tem um fim e esse fim, afirmou o filósofo, visa ao bem. Porque o bem é que dirá da validade da ação humana. Portanto não basta a razão. É preciso o valor da razão. A partir dessa nova bússola, os gregos fazem a escolha por alguns valores fundamentais para sua democracia. Eles vão privilegiar a igualdade, a liberdade, a justiça, a coragem e a generosidade. Essa escolha não é aleatória. A igualdade resolverá o problema do despotismo. Em grego, déspota é “despótés”, que significa pai. Pai é aquele indivíduo que tem o poder de vida e de morte sobre todos da família e o mando sobre todos os bens materiais. Essa autoridade privada não poderá penetrar na “pólis”, onde os cidadãos são isonômicos. O que significa isso? São todos iguais perante a lei. Estão todos submetidos igualmente à mesma lei. A liberdade não só resolve o problema da religião, porque lá existem uma série de deuses, de várias religiões - e qualquer um pode ter a crença que quiser, desde que não interfira nas coisas públicas - , como também irá deixar que cada cidadão defenda o seu interesse na ágora, onde os assuntos para o bem da comunidade serão discutidos com coragem, sob o abrigo da justiça, que é a faculdade necessária para que o cidadão faça o balizamento daquilo que é justo ou injusto. Finalmente, a generosidade é o valor que a comunidade assume para si, porque ninguém vive sozinho. Decidimos viver em comunidade porque só podemos ser felizes nas relações uns com os outros. Naquela época, os gregos formularam uma lei dentro da virtude da generosidade. Se por acaso houvesse uma grande estiagem e apenas alguns poucos agricultores tivessem uma boa colheita, eles seriam obrigados a dividir seus frutos com os demais cidadãos. Imaginem vocês, hoje, em Brasília, um Deputado qualquer propor que uma pequena parcela do lucro dos Bancos fosse devolvida aos brasileiros em forma de emprego ou de um primeiro emprego. Parece uma quimera, um sonho. Por quê? Porque não sabemos o que é a generosidade ou a solidariedade. Como vimos, a democracia grega ruiu. Eles não apenas perderam a referência dos valores, devido à sofística, como também pela vinda dos romanos, os imperialistas. Com eles, novos valores vieram à tona. A justiça deixa de ser aquilo que era justo, segundo a igualdade, a liberdade e a generosidade para ser a lei de César. Porque César é divino. Os Césares são divinos. Eles trazem uma lei divina. Eles trazem a “pax” romana e a “dura lex sed lex” - a lei é dura, mas é lei. E trazem ainda o “panis et circense” - pão e circo. Por que isso acontece? A partir daí, não se questiona mais se a lei é justa ou injusta nem se o pão e o circo alienam as pessoas. No caso, os césares podem dominar tranqüilamente. Por essas causas e outros fatores, a humanidade padece sob tiranias e monarquias por quase 2 mil anos. Antes de respirar novamente os ares democráticos, acontece um milagre no mundo. Surge Jesus Cristo que traz uma idéia inovadora que nem os gregos ou os romanos conheciam. Traz a idéia de que todos os seres humanos são iguais. Contudo, somente com a Revolução Francesa de 1789, vemos novamente o valor da igualdade entre os homens. Os franceses, depois de muito conversarem sobre os seus destinos e de discutirem que planos implementar para que todos pudessem ser livres, iguais e fraternos, resolvem cortar a cabeça dos monarcas e dos cortesãos para instituírem a democracia e a república, coisa pública. O sucesso da revolução foi tão grande que alguns franceses queriam exportar esse modelo político para outros países. Era oportuno, porque vários Estados estavam em revolta. Assombrado, Robespierre, um dos líderes da revolução, diz: “A idéia mais extravagante que pode nascer na cabeça de um político é pensar que ele pode adentrar o território de um outro povo, com armas em punho, e obrigá-lo a adotar suas leis e seus costumes”. Pudera o Bush estar aqui, para ouvir isso. Na França, tudo caminhava para uma democracia direta, mas, no revés arquitetado pela classe burguesa, resolvem cortar, assassinar os principais líderes da Revolução Francesa. A partir daí, nasce a idéia de uma democracia representativa, a idéia da representação política. Essa idéia surge movida pela doutrina liberal, cujo primado é a livre competitividade entre os membros da sociedade. Esse é o espírito moderno que herdamos para o nosso Estado, ou seja, os valores da igualdade e fraternidade. Tudo isso escafedeu-se daquele ideário francês. Hoje a nossa democracia, um pouco apática e indolente, busca ser uma democracia participativa, porque a representação política está mergulhada em águas abismais e lamacentas. E o pior é o mercado. É o monstro fantástico, como a sofística, que assume a política e move a nova fonte de valores, que é a TV, nossa bússola. É o mercado que move a TV, mas agora chegou a vez de vocês. Peguem o remo e impulsionem o vigor da juventude. A tarefa não é fácil, porque o monstro do mercado está aí. O monstro extraordinário da TV está aí, impingindo um amontoado de informações sensacionalistas e expondo uma profusão de asneiras e bestices. Soma-se a isso a escolha no mundo pelo que é útil. O que podemos fazer quando a escolha é só o econômico, se, na perspectiva econômica, a ética torna-se simplesmente a transcrição ideológica dos interesses econômicos da classe dominante na sociedade? Se privilegiamos só o econômico, cadê o cultural, o social, o meio ambiente e o próprio político? E o que dizer de nossos políticos corruptos? Aristóteles falará, por exemplo, da honestidade. Ele diz que a honestidade é a guardiã da política e que os cidadãos devem ser intolerantes com os desonestos. Para os empresários e banqueiros, Aristóteles falará a respeito da usura. Foram os gregos que inventaram a moeda, mas se entusiasmaram tanto que começaram a praticar a usura. Aristóteles diz que a moeda foi inventada para ser a mediania entre o valor das coisas, e não para gerar riqueza por ela mesma. Isso não era a qualidade da moeda. Um outro aspecto que serve para pensarmos é o sentido da vida, do qual ele também falou. Imaginem, há 2.400 anos, Aristóteles dizer que tudo o que o homem precisava para ter uma vida cômoda e confortável já havia sido inventado, que ele estava materialmente realizado e só lhe restava dedicar-se à elevação do espírito! Vocês têm a responsabilidade de não ter medo dos tubarões que estão por aí a soltas e atentos. O covarde pode ser facilmente devorado por traíras. Portanto, vocês precisam ter a coragem de dizer o que pensam, porque são jovens e, como se diz, não têm o rabo preso com nada, com interesses ou jogos perversos. Quero terminar citando Guimarães Rosa, que tem uma frase muito simples que é a síntese do pensamento socrático e de tudo o que eu disse a respeito da moral. Ele coloca na boca do Manuelzão, um matuto e caipirão do mato, do “Grande Sertão: Veredas”, que a gente quase somente faz o que a bobagem do mundo quer. Muito obrigado.