LAURA DA VEIGA, Doutora em Ciências Sociais Aplicadas à Educação pela Universidade de Stanford - EUA. Pesquisadora do Centro de Estudos de Políticas Públicas da Fundação João Pinheiro - FJP.
Discurso
Legislatura 17ª legislatura, 1ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 12/11/2011
Página 113, Coluna 2
Evento Seminário Legislativo: "Pobreza e Desigualdade".
Assunto DESENVOLVIMENTO SOCIAL.
Observação No decorrer do seu pronunciamento, procede-se à exibição de "slides".
41ª REUNIÃO ESPECIAL DA 1ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 17ª LEGISLATURA, EM 24/10/2011
Palavras da Sra. Laura da Veiga
Não estou acostumada a essa parafernália. Boa tarde a todos e a todas. É um prazer para mim ter sido convidada a participar deste seminário não só agora, como expositora, mas também ao longo do trabalho aqui descrito pelo Deputado André Quintão, com o qual estivemos envolvidos. Agradeço em meu nome e em nome da Fundação João Pinheiro, instituição na qual trabalho atualmente. Alguns dos pontos que mencionarei agora, conforme apresentação da Carla pela manhã, é um certo mantra, que ficamos repetindo, não para nos convencer, porque já estamos convencidos, mas para ampliar o público. Queremos ampliar a participação daqueles que têm capacidade de influenciar a política e a forma de agir do setor público, assim como dos que atuam junto às comunidades, organizando-as, ou representam movimentos sociais. Esse grande conjunto de pessoas, instituição e organizações viabilizarão aquilo que pretendemos que este país tenha, ou seja, uma sociedade mais justa, menos desigual e mais solidária. Nessa direção irá toda minha fala. Tentarei ficar dentro do prazo. Já estão mostrando que perdi alguns segundos.
Nas últimas três décadas, algo se observou no mundo inteiro, mesmo nos países mais avançados e principalmente neles, mesmo nos países como os nossos, considerados emergentes, que nem sequer atingiram em anos anteriores aquilo que poderíamos chamar de sistema de proteção social minimamente inclusivo e robusto. O ex-Ministro Patrus Ananias fez uma descrição rápida do nicho, da construção do sistema de proteção social brasileiro. Ele foi muito direcionado, no Brasil e em vários outros lugares, muito segmentadamente orientado para aqueles que participam dos mercados de trabalho. Então ele é urbano, muito orientado para os setores urbanos e, mais do que isso, orientado até para aqueles que têm vinculação formal com o mercado de trabalho. Mas o ponto que interessa destacar aqui é que, nessa concepção de proteção social e nas sociedades industriais até três ou quatro décadas atrás, o que mais se caracteriza não é que não existiam desigualdades sociais; elas existiam, mas eram muito marcadas pela inserção, o grande divisor de águas era uma relação que se caracteriza na sociologia como o que se relaciona à caracterização das classes sociais. Tem a ver com a posição laboral, com a quantidade de renda, com propriedades etc. Havia desigualdades, mas uma das características desse período anterior é que elas não assumiam o caráter de rompimento de vínculos. Esse é o ponto principal no qual a Carla já insistiu na parte da manhã e sobre o qual já houve falas aqui de outros expositores. Essa é a característica que as desigualdades hoje assumem. Além de todos os elementos de discriminação, de exclusão de pessoas, de acesso a bens e serviços, introduziu-se um outro componente, que é o chamado componente do rompimento dos vínculos.
O que chamamos de rompimento de vínculos? Agora mesmo, dando uma entrevista a jornalistas, dizia que hoje, quando um chefe ou uma chefe de família perde o emprego, o que se está rompendo aí não é somente deixar de receber a renda, mas um conjunto de relações de que a pessoa dispunha. Por exemplo, um conjunto de relações de trabalho, de amigos, de colegas, um ambiente onde circulava, onde parte de seu autorrespeito estava colocado. Quando essa pessoa perde o emprego e se torna desempregada, essa parte já se rompe, mas rompe-se mais ainda porque, em relação a sua família, da qual é provedor ou provedora, ela perde um pouco do respeito que o fato de garantir a subsistência da família traz. E vem um conjunto de outras consequências para essa família, isso passando por um roteiro de exclusão baseada, por exemplo, no rompimento dos laços de trabalho. Afetará a comunidade, a família, e, com isso, haverá um conjunto de consequências, uma se sobrepondo à outra, provocando o que se chama, na literatura, de exclusão social.
Este é um dos principais traços disso: a multiplicação e a diversificação dos vetores de desigualdade nas sociedades modernas. Há vetores relacionados à etnia, à raça, ao sexo, ao ciclo de vida, se a pessoa tem ou não doenças. Tudo isso faz com que a pessoa passe por diferentes processos de exclusão ou, se estivermos buscando atuação numa outra direção, de busca da inclusão. Então estaremos trabalhando um pouco com essa polaridade exclusão-inclusão, entendido sempre que a exclusão não é somente uma questão meramente material, portanto o conceito de pobreza no sentido mais estrito é limitante para se pensar isso. Mas, se estamos falando em proteção, passaremos a pensar a proteção de forma mais ampla.
Há um autor, Prof. Gomà, que é de Barcelona, hoje político nessa cidade espanhola, que dirigiu toda a parte que corresponde às nossas áreas de assistência social no Brasil. Esse grupo desenvolveu uma ideia sobre como atuaríamos de forma mais inclusiva, numa sociedade mais inclusiva, e desenvolve alguns conceitos. Em primeiro lugar, quando falamos sobre exclusão social, estamos falando sobre um processo pelo qual pessoas e grupos veem bloqueado seu acesso aos mecanismos de desenvolvimento humano que lhes permitiriam uma vida autônoma, em padrões sociais determinados pelas instituições e pelos valores num contexto específico.
Vamos destacar alguns elementos nessa definição. Estamos falando sobre desenvolvimento humano, não estamos falando somente de ter ou não um trabalho, mas de uma concepção muito mais holística e muito mais ampla, que envolve dignidade; capacidades, às quais a Márcia se refere; a parte relacional, o autorrespeito e o acesso a benefícios e serviços. Estamos falando sobre muitas coisas mais. Estamos falando sobre vida autônoma, portanto estamos nos referindo à capacidade das pessoas de poderem se autodeterminar, podendo inclusive exercitar sua liberdade. Estamos falando sobre padrões sociais. Portanto, isso muda em função das sociedades e dos contextos nos quais vivemos.
Outro conjunto de aspectos que está nesse primeiro retângulo é que os contextos variarão em função da economia, da educação, das características demográficas, das práticas empresariais, das políticas públicas, das discriminações sociais, do meio ambiente, etc. Quando falamos em desigualdades regionais, estamos nos referindo a esse contexto. Normalmente estamos falando daquele conjunto de benefícios, de riquezas ou ausência de riquezas, desenvolvimento econômico, enfim, tudo isso que caracteriza uma região, um Município ou um território dentro de um Município. Quando falamos em desigualdades regionais nos Municípios ou intramunicípios – e logo mais ouviremos manifestações sobre a parte urbana -, essa questão está colocada nesse nível do problema.
Esses contextos criarão ou bloquearão oportunidades para as pessoas, famílias e grupos sociais. As exclusões e os fatores explicativos dos vetores de instituições podem passar por inúmeras outras características, por exemplo características de gênero. Ninguém escolhe nascer homem ou mulher, simplesmente nasce. É claro que é possível escolher outra coisa depois, mas a escolha de gênero não é feita necessariamente pela pessoa. Pode-se viver em uma sociedade onde isso seja importante ou não. Nas falas sobre as questões econômicas destacou-se que o gênero é importante e determinante no salário que as pessoas recebem. A escolarização não é mais tão importante porque as mulheres já superaram os homens em escolarização, mas a questão do gênero permanece quando se comparam salários de homens e de mulheres. Da mesma forma podemos ter a idade, classe social, qualidade da moradia e o tamanho da família como fatores que podem afetar a exclusão. Basta pensar que uma moradia pequena com uma família extensa terá poucos ambientes para que as pessoas possam viver uma vida mais saudável. Provavelmente não haverá lugares para estudar, por exemplo. Tudo isso são explicações. O fato de viver em famílias com deficientes físicos ou mentais também é importante. O local de residência como um local estigmatizado ou não, áreas carentes ou não carentes, áreas que têm infraestruturas de serviços públicos ou não, com mais ou menos insegurança, com maior ou menor presença de criminalidade; enfim, tudo isso afetará as possibilidades do exercício dessa autonomia e do desenvolvimento das pessoas que estão nesses locais.
Quais são as manifestações que observamos? Então, quando falamos do conjunto desses processos sociais, observamos o quê? Normalmente, a baixa escolarização, a precariedade laboral, a debilidade dos vínculos afetivos, os comportamentos familiares e comunitários desagregadores, a violação de direitos, a sobreposição de quadros de doenças e moradias de baixa qualidade. Mas isso mesmo já está sendo provocado por um conjunto de outros processos e mecanismos sociais que estão operando.
Devemos lembrar sempre um ponto que foi enfatizado nas exposições da manhã: isso é uma criação daquela sociedade. Aquilo são escolhas que foram feitas. São trajetórias que foram percorridas. Não é nada natural. Ninguém nasce desigual. A sociedade nos torna desiguais, o que é diferente. Ninguém nasce para ser discriminado. A sociedade cria mecanismos e discrimina pessoas. Então, da mesma forma, a sociedade protege certos grupos e não protege outros. Então, há situações de violação de direitos.
Então, se é assim, se é a sociedade que constrói, se somos nós que construímos, se é a ação humana que constrói, essa ação humana deve ser capaz de refazer esses caminhos. Nessa direção, então, vem essa última informação que está neste quadro: as mudanças só dependem de ações sociais e políticas.
A Sposati pergunta, em certo momento, em um texto de sua autoria: o que se espera da proteção social? Ela afirma que, em uma sociedade de mercado, o que se espera, a resposta mais comum é ter renda para poder resolver situações em que alguém se sinta fragilizado. Ou seja, essa resposta diz que, se você tem renda, vai ao mercado; se está com a cabeça meio “dançada”, vai a um psiquiatra; se está com um problema de saúde, procura um médico; se sua criança começou a manifestar alguns comportamentos disruptivos, você leva a psicólogos ou a alguns educadores; etc.
Contudo, esse tipo de resposta, mais típico de uma sociedade de mercado, está escondendo duas questões centrais, e uma delas já foi mencionada aqui. Uma delas é que a proteção social não é uma mercadoria, não é pacotinho de coisas, que você vai lá e compra. Você não compra vínculos. Aliás, alguns acham que compram relações afetivas, mas, normalmente, depois descobrem que não compraram. Compraram, mas foram enganados. É propaganda enganosa, porque relações afetivas, vínculos são construídos por meio da interação, das ações humanas etc. Portanto, não estamos falando de um pacotinho de serviços e benefícios, não estamos falando só disso. Por isso a Carla insistiu na sua fala e se referiu muito aos chamados aspectos intangíveis da proteção, o que significa que realmente você não está lidando com essas questões psicossociais, vínculos e afetividade. Quando falo em afetividade, não me refiro a Mariazinha gostar do João. Não se trata disso, mas de todo um conjunto de relações pessoais que fazem com que, aliás, nos sintamos protegidos.
Também a proteção envolve uma sociedade menos desigual - queremos ter uma sociedade menos desigual - e supõe o compromisso coletivo para construir sistemas de proteção mais abrangentes e inclusivos. Também foi dito aqui um ponto muito importante que devemos ter em mente. Proteção social não é somente uma obra feita por um setor das políticas públicas. É o seguinte: dizer que os assistentes sociais do Cras resolverão o problema, isso não seria possível nem se a assistente social fosse superassistente e nem, provavelmente, com toda uma enorme capacidade. Ela deve ser milagreira porque, no que se refere só ao setor humano, provavelmente não consegue dar conta da quantidade e da dificuldade dos problemas com o quais se defronta.
Estamos falando de desenvolvimento da pessoa, e esse desenvolvimento passa pela participação plena e pelo desenvolvimento das dimensões econômica e de renda. É preciso haver, sim, crescimento econômico, porque, sem crescimento econômico e sem geração de postos de trabalho, de nada adianta educar, porque não haverá lugar para as pessoas. Essas coisas têm de caminhar juntas.
É preciso haver, ainda, desenvolvimento político e de cidadania - político em sentido mais amplo que o mero exercício da atividade política, como é o caso daqueles que são eleitos para um mandato, ou seja, o caso dos Deputados. Digo político em se tratando de relação de poder, isto é, político numa sociedade que busque reduzir os mecanismos de dominação e exclusão. A cidadania é o acesso efetivo aos direitos.
Outras questões já foram abordadas, como a transversalidade na articulação das respostas, a integralidade na visão holística dos problemas sociais e a proximidade territorial. Existe a necessidade de programas, ações e políticas atenderem às demandas. Numa área como a do Vale do Jequitinhonha, os problemas enfrentados terão algumas características relacionadas à exclusão, o que provavelmente não iremos encontrar no Sul de Minas. O desafio das grandes metrópoles é lidar com populações que enfrentam discriminações e violações de direito, com uma enorme diversidade. Por outro lado, os Municípios pequenos, de dois, três mil habitantes, a população, ainda que seja pobre, porque é uma sociedade mais rural, é menos diversificada, portanto as ações são mais concentradas. Um dos problemas mais comuns é o abuso de crianças e a exclusão acarretada pela pobreza, mas os problemas também podem ser bastante diferenciados. Ou você está num território onde impera o tráfico ou você está num território pacificado. Eu não citaria o exemplo do Rio de Janeiro pelo fato de achar que o processo de pacificação ainda não foi concluído. As áreas rurais, apesar de serem pobres e terem poucos recursos, ainda não estão sob o domínio desse tipo de insegurança.
O meu tempo já acabou, mas gostaria de fazer uma chamada para um último ponto, que é uma Minas Gerais mais inclusiva. Chamarei a atenção para os principais agentes que deveriam estar atuando nessa proteção. Aliás, não compete somente à área da assistência fazer essa atuação. Se estamos falando de proteção e de promoção, isso significa uma atuação conjunta de políticas de natureza estrutural e macroeconômica, de políticas sociais universais de boa qualidade, como é o caso da saúde e da educação, e de um conjunto de outras políticas, entre elas a política da assistência social.
Se examinarmos o que está acontecendo em Minas Gerais, apesar do enorme esforço que tem sido feito pela União, pelo próprio governo estadual e pelas administrações municipais, veremos que o Estado ainda mostra um desempenho muito insuficiente na institucionalização do Sistema Único da Assistência Social - Suas.
Acabamos de fazer um cálculo através do IMRS, introduzindo um indicador de assistência social - um deles se refere à institucionalização da assistência. Cerca de 20% dos Municípios mineiros não estão fazendo o CPF mínimo da assistência. Há investimentos sim, mas o piso estadual da assistência social ainda não foi universalizado em todos os Municípios. Existem Cras em quase todos os Municípios, mas eles não têm qualidade necessária para dar respostas e não estão equipados do ponto de vista material e humano para atender as demandas com as quais se defrontam. Os Cras precisam de uma rede de atenção e não têm a rede de retaguarda, pois está desarticulada.
Temos um enorme caminho a percorrer para produzir, criar um sistema social mais consolidado, institucionalizado, de forma a afirmarmos que está sendo feita política pública, que há substituição de procedimentos das políticas de favores - clientelísticas - por políticas em que as pessoas que têm direito podem buscar um serviço que realmente atenda às suas necessidades. Outro aspecto importante é a ampliação das articulações entre os entes federados, o cofinanciamento, o planejamento e a execução de programas complementares e convergentes. Não podemos deixar de reconhecer e trazer para o âmbito da solução do problema as organizações e associações comunitárias. Não estou falando necessariamente de ONGs, mas de organizações que realmente têm legitimidade e representam grupos de jovens, tratando de seus problemas, ou seja, que representam a parte viva da sociedade. A tendência é que as organizações comunitárias e associações tenham pautas diferenciadas, muitas vezes divergentes e conflitivas. No entanto, é preciso, pela interlocução, transformar o conflito social em oportunidades de criação de ações específicas, como o Gorman diz. As associações lidam com a população e são ao mesmo tempo consequência do desenvolvimento associativo de determinado local.
Necessitamos que sejam incorporados ao processo os profissionais encarregados da execução de políticas, serviços e programas. São peças centrais para converter diretriz em serviço. Não adianta um plano maravilhoso, se não há carreira, recrutamento público adequado, profissionais qualificados, com certa estabilidade e remuneração adequada para fazer com que aquilo aconteça. As coisas não acontecem somente pela fala de um secretário ou de quem quer que seja, mesmo que seja tremendamente bem intencionado. Não se trata de boas intenções, e sim de condições de execução.
Existe também o problema de tentar envolver e trazer para o processo decisório os beneficiários de políticas e programas - é difícil falar de público-alvo, beneficiário ou usuário, pois sempre fico na dúvida. De qualquer maneira, são as pessoas que recebem, demandam e têm necessidade dos serviços que justificam a existência de determinados programas ou políticas. Eles devem ser incorporados, se possível de forma organizada. Senão, é preciso encontrar metodologias de escuta para saber como avaliam o serviço que recebem, porque têm condições de fazê-lo.
Aliás, não somente eles, pois estamos falando sobre processos nos quais possamos envolver os diferentes agentes, as diferentes políticas, assim como os processos decisórios, de planejamento e execução. Além disso, que aquilo que se fala da intersetorialidade ou das ações transversais encontre nesses espaços a tradução disso de forma concreta. Muito obrigada. Desculpem-me por ter extrapolado 2 minutos.
- No decorrer de seu pronunciamento, procede-se à exibição de “slides”.
O Sr. Presidente - Agradecemos à Profa. Laura da Veiga a valiosa participação, com brilhante e ilustre exposição.