Pronunciamentos

JOSÉ MURILO DE CARVALHO, Cientista político. Professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

Discurso

Comenta o tema: "A Formação do Brasil-Nação".
Reunião 119ª reunião ORDINÁRIA
Legislatura 14ª legislatura, 2ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 08/04/2000
Página 22, Coluna 3
Evento Ciclo de Debates: Repensando o Brasil 500 Anos Depois.
Assunto CALENDÁRIO.
Observação Participantes dos debates: Mauro Lúcia Gomes, Kátia Greco, Igor Thiago Moreira Oliveira, Liana Márcia de Barros Lisboa.

119ª REUNIÃO ORDINÁRIA DA 2ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 16/3/2000 Palavras do Sr. José Murilo de Carvalho Boa-tarde. Agradeço o convite da Assembléia Legislativa de Minas para estar aqui, discutindo esse tema importante, e passo diretamente aos comentários que gostaria de fazer. O tema que me foi dado é a discussão da formação do Brasil no contexto dos 500 anos da conquista dessas terras pelos portugueses. Já de início, deixo expressa minha visão de que não se trata de celebrar nada em relação aos 500 anos. Na realidade, não temos razões para celebrar, pois o País tem vivido, há muito tempo, problemas sérios. É preciso aproveitar essa oportunidade para fazer um balanço dos problemas fundamentais do País e entendê-los do ponto de vista histórico, para sermos mais eficazes na solução desses problemas no futuro. José Bonifácio, em 1823, mandou uma representação à Assembléia Constituinte Legislativa do Império do Brasil sobre a escravidão. Nessa representação, dizia que o principal obstáculo à construção de uma Nação brasileira era a existência da escravidão. A escravidão, ao tornar os brasileiros desiguais, impedia isso. Uma parcela da população, ou seja, 30%, na época, era de escravos. Enquanto existisse essa desigualdade, dizia ele, não seria possível construir uma Nação brasileira. Diria que, hoje, o que impede a formação de uma Nação brasileira, que é o equivalente à escravidão da época de José Bonifácio, ou seja, equivalente ao que chamavam de cancro que corrói as entranhas do corpo social brasileiro, é a desigualdade social. Essa é a opinião geral do País. O próprio Presidente da República já disse que o Brasil não é subdesenvolvido, mas é, na verdade, um País injusto, e essa injustiça está nas desigualdades, que são várias. Darei apenas alguns dados, para refrescar a memória de todos, relacionados a isso. O Brasil tem o 8º PIB do mundo; no entanto, se dividirmos esse produto “per capita”, o País passaria para o 34º lugar. O índice de desigualdade social do Brasil, medido pelos economistas por meio de um índice que se chama GINE, é o mais alto do mundo. A pobreza neste País, medida pelos critérios da Organização Mundial de Saúde, que considera pobres aqueles que recebem menos do que US$70,00, 54% dos brasileiros são pobres, isto é, 85 milhões de brasileiros são pobres. No Nordeste, eles representam 80%; no Sudeste, 39%. Já se vê aí a enorme desigualdade interna. Não há apenas um grande volume de pobres, mas há, também, grande desigualdade regional. Com relação ao analfabetismo, há ainda quase 15% de analfabetos no Brasil. No Nordeste, esse índice é de 29%, enquanto, no Sudeste, é de 8,6%. Há outro centro de desigualdade. No Nordeste rural, esse índice chega a 46%; no Sudeste rural, é de 25%, ou seja, a metade. No que se refere à desigualdade por raça, o analfabetismo dos brancos é de 9%; dos negros, 22%; dos pardos, 22%. Pelo critério econômico, até 1 salário mínimo de renda, os brancos representam 33%; os negros, 58%; os pardos, 61%. A partir de 5 salários mínimos, inverte-se a pirâmide: brancos, 15%; pretos, 3%; pardos, 3,7%. Com relação à renda média em salários mínimos: brancos, 4,9%; pretos, 2,4%; pardos, 2,2%. Esses dados são apenas para reforçar, esclarecer e dar uma evidência, mesmo que seja rápida, para esse ponto que levantei de a desigualdade ser hoje o grande obstáculo à construção de uma Nação brasileira. Em razão disso, portanto, digo que a elite celebrar os 500 anos é mistificação, e o povo, auto-ilusão. Como historiador, cabe-me perguntar se ao longo de 500 anos há ainda essa persistência. O Brasil cresce, não há dúvida, somos o oitavo PIB do mundo. Por que crescendo dessa maneira o alvo não muda? Existe sempre a distância entre classes, raças, regiões, entre níveis de ocupação rural. Diria que, do ponto de vista histórico, temos quatro pecados capitais que ajudam a entender a persistência dessa desigualdade. A partir da base inicial de uma conquista do território, atualmente brasileiro, tivemos quatro processos que ajudam a entender essa persistência. O primeiro deles é a escravidão. Foi introduzida no Brasil desde os primeiros momentos. Usar a carta de Caminha como certidão de nascimento do Brasil é uma distorção muito grande da nossa história, porque essa carta marcou um momento de encontro, quase que idílico, dos conquistadores com a população nativa, que não reproduz o que se seguiu. E o que se seguiu foi a escravização dos índios e o extermínio. Havia aproximadamente 4 milhões de índios no Brasil e, ao final do período colonial, havia 800 mil. A escravidão continuou no processo de trazer para o Brasil 4 milhões de escravos africanos. Foi na base desses escravos africanos que a economia colonial brasileira e a economia do século XXIII se desenvolveu. A escravidão foi abolida há mais de 100 anos. No entanto, como dizia Joaquim Nabuco, seqüelas, metástases desse câncer ainda estão entre nós e se refletem na desigualdade de raças que acabo de mencionar. O outro pecado original é o latifúndio. O processo de colonização do Brasil foi um processo comercial. A primeira coisa que se fez foi começar a cortar árvores de pau-brasil para vender na Europa. A seguir, a atividade econômica que se tornou viável foi a produção de açúcar. E essa produção era feita em grandes engenhos que implicavam uma grande desigualdade na distribuição da terra e dos recursos. Essa desigualdade permaneceu até recentemente. A lei de terras do Brasil é de 1950. Exigia que se cadastrassem as terras públicas. Até hoje as terras públicas no Brasil não estão nem cadastradas; aliás muitas foram ocupadas por grilagem. O melhor sintoma das conseqüências desse processo é o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. No fundo, é uma vergonha para o Brasil chegarmos ao final de 500 anos, num país-elefante em termos de dimensão, com trabalhadores rurais que têm de lutar para possuir um pedaço de terra para trabalhar. O terceiro pecado capital é o patriarcalismo. A desigualdade entre homens e mulheres negou às mulheres direitos fundamentais, como os direitos civis, para não falar dos direitos políticos, que só foram introduzidos na década de 30 deste século. Essa desigualdade ainda persiste hoje, particularmente no que se refere aos salários desiguais para trabalho igual de mulheres e homens. O quarto pecado capital é o patrimonialismo. Isto é uma relação entre a sociedade e o Estado em que o bem público é apropriado privadamente. Essa relação também existiu desde o início do processo colonizador, quando Portugal, que não tinha elementos para colonizar o Brasil, em termos demográficos, passou a utilizar a cooperação das classes dominantes coloniais. Desenvolveu-se, então, essa relação entre o público e o privado, em que o público era apropriado privadamente por aqueles que possuíam condições de fazê-lo. Isso se reflete ainda hoje em fenômenos como o clientelismo político, ou o nepotismo político, que o Congresso Nacional acaba de sancionar. Além disso, temos os tetos dúplex e outros tipos de tetos que ainda hoje estão sendo votados e aprovados. Em relação ao teto dúplex, por exemplo, já fiz um cálculo e detectei que a distância entre o salário mínimo de R$170,00 reais, que eventualmente pode ser aprovado, e o teto máximo é de 67 vezes. Não acredito que haja qualquer outro país no mundo em que o salário mais alto seja 67 vezes maior que o mais baixo. E, se o teto dúplex de R$23.000,00 for usado para quem pode acumular, em relação a um salário de R$170,00, essa distância aumentará para 135 vezes. Somos os campeões mundiais. Esses são alguns fatores históricos que nos ajudam a entender por que persistem as desigualdades, que são os grandes obstáculos para a construção de uma nação brasileira. Isso não quer dizer que não haja progressos. Citaria, nos últimos anos, principalmente o progresso na área de educação fundamental, que, durante todo o período colonial, foi desprezada por Portugal. Também durante os períodos Imperial e Republicano, essa educação não era prioridade pública, e disso decorre o fato de chegarmos hoje a esse grau de analfabetismo. Se pegarmos como referência o índice de analfabetismo funcional, isto é, de pessoas com menos de quatro anos de educação, veremos que, no Nordeste, ele chega a quase 50%. Nesse campo, como já dizia, tem havido alguns progressos, e é preciso reconhecê-los; entretanto, em outros campos, o progresso não tem sido impressionante. Por exemplo, com relação à distribuição de renda, que sofreu um efeito positivo com o Plano Real, em seus anos iniciais, atualmente, os dados do IPEA mostram-nos que, de 1990 a 1998, os 50% mais pobres da população perderam participação na renda nacional, passando de 12,7% para 11,2%, enquanto que os 20% mais ricos ganharam participação, passando de 62,8% para 63,8%, o que trouxe um agravamento da desigualdade. Há vários outros problemas relativos aos direitos civis, mas vou refirir-me principalmente à violência urbana. Por viver no Rio de Janeiro, posso falar desse assunto “de cátedra”. Mas isso não acontece apenas lá. Tenho aqui as estatísticas de homicídios no Brasil, e nelas estão aparecendo, inclusive, novas cidades. O mais alto índice de homicídios no Brasil está em Vitória, no Espírito Santo. Também estão na lista Recife, Niterói e Campinas, além, naturalmente, de Rio e São Paulo. Nossas taxas de homicídio são comparáveis, na América Latina, apenas às da Colômbia, país que vive uma guerra civil. E isso vai contra o mito nacional de sermos cordiais. Esse povo cordial está se matando. O que aconteceu com nossa cordialidade? Outro motivo de orgulho nacional, que aparece em qualquer pesquisa, é a nossa natureza, que foi mencionada desde a carta de Pero Vaz de Caminha. Esse é um moto de toda nossa história, e de nossa exuberância tanto nos orgulhamos. Entretanto, também estamos destruindo essa natureza sistematicamente. Isso não acontece só no Rio de Janeiro. Quem morou em Belo Horizonte há mais tempo e conheceu a serra do Curral pode constatar que, hoje, metade dela já está cortada. No Rio de Janeiro, durante esta semana, não haverá praia para ser usada, porque estão todas poluídas. Isso acontece - essa é outra ironia da nossa história - num momento em que a participação política nunca foi tão alta, medida pelo voto, pela participação eleitoral. De acordo com dados de 1998, 51% dos brasileiros foram eleitores naquele ano. Poucos países democráticos têm a liberalidade, a expansão da participação eleitoral que é o direito do voto aos que têm 16 anos. Então o problema que se apresenta - e creio que a Assembléia Legislativa é o lugar adequado para discuti-lo - é que a democracia política restabelecida desde 1985 no Brasil, sobretudo desde a Constituição de 1988, não tem gerado os efeitos que levariam à melhoria dos direitos, a uma redução do processo de desigualdade que, como vimos, persiste e não se reduz. Esse, a meu ver, é um tema central entre nós. A democracia deve resolver o problema da desigualdade entre os brasileiros, eliminar esse obstáculo à construção de nossa Nação, isto é, de um povo que não seja apenas Estado, mas uma comunidade nacional de pessoas que se envolvam, que se identifiquem com o País, que se identifiquem não apenas quando a seleção brasileira está em campo ou quando as escolas de samba estão desfilando. Para construir esta Nação, esses problemas têm de ser resolvidos. A democracia tem de se mostrar capaz de resolvê-los e, se não o fizer, ela própria, a meu ver, estará em risco. Não creio que seja alarmismo falar dessa maneira, porque hoje, talvez, as dificuldades sejam maiores. O poder do Governo está sendo reduzido por contingenciamentos internacionais, que têm a ver com o processo de globalização. A competição internacional do Brasil é prejudicada em virtude da má qualificação da mão-de-obra. Esse problema tem de ser resolvido, nossa democracia tem de dar conta desse problema, ou, repito, a própria democracia estará em perigo. Esse deveria ser o tema adequado para discussão nesses 500 anos de nossa história. Muito obrigado.