Pronunciamentos

JOSÉ JAIRO GOMES, Procurador Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais - TRE.

Discurso

Comenta o tema: "Minirreforma eleitoral", dentro do 2º painel: "Inovações da legislação eleitoral".
Reunião 16ª reunião ESPECIAL
Legislatura 16ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 12/06/2010
Página 80, Coluna 1
Evento Ciclo de debates: "Legislação Eleitoral e Eleições 2010".
Assunto ELEIÇÕES.

16ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 16ª LEGISLATURA, EM 1/6/2010 Palavras do Procurador Eleitoral José Jairo Gomes Bom-dia! Agradeço o convite e parabenizo o Prof. Romanelli, pois foi o primeiro, no Instituto dos Advogados, a ter a ideia de realizar este seminário, que tem grande sucesso no meio jurídico. Ontem, disse que Minas Gerais realmente tem levado esses debates a sério, basta ver que, seguindo a minirreforma do ano passado e após a aprovação da lei, houve um excelente congresso no TRE em que se debateu a Lei nº 12.034. Aprovada a lei Ficha Limpa no Congresso, já temos um debate a respeito, o que mostra a maturidade de nossa democracia. Agradeço à Assembleia, especialmente ao Deputado Dalmo Ribeiro Silva, que, com muita dignidade, tem representado o povo do Estado. Antes de entrar no meu tema, trago à lembrança um fato veiculado na imprensa ontem por Márcio Thomaz Bastos, ex-Ministro do Presidente Lula, que foi contratado pelo PT para coordenar a campanha da Dilma Rousseff. Nessa entrevista, amplamente divulgada pelos jornais, como a “Folha de S. Paulo” e outros veículos, ele disse que todos os candidatos já estão em campanha há algum tempo e também que há um descompasso entre a lei e a realidade. Nós, que atuamos na área jurídica, vemos com preocupação uma afirmação como essa, primeiro, por ser uma confissão de que os candidatos estão em campanha, apesar de ainda não terem admitido isso explicitamente. Nessa entrevista, ele afirma que os candidatos, inclusive os três candidatos à Presidência da República estão em campanha. Por enquanto, a lei veda isso e até a propaganda extemporânea. O Ministro disse que há um descompasso entre a lei e a realidade. É preciso saber o que é lei e o que é realidade. Como as leis eleitorais são feitas pelo governo, se há um descompasso, por que ele não cuidou de corrigi-lo? No governo Lula, tivemos, pelo menos, três leis eleitorais relevantes: a Lei nº 11.300, a Lei nº 12.034 e, agora, a lei do Ficha Limpa. Como o governo tem uma base forte no Congresso, poderia ter o cuidado de minimizar esse descompasso entre a lei e a realidade. Efetivamente, não é disso que desejo tratar. Dizer que há um descompasso entre a lei e a realidade é algo antigo no Direito. Quem lê um livro famoso, do início do século passado, do francês François Gény, “Science et Technique”, vê que ele já falava sobre o descompasso entre o Código Civil francês e a realidade. No prefácio desse livro, Raymond Saleilles dizia que era preciso interpretar o Código, mas que não era necessário segui-lo em sua literalidade. Ele dizia: “Par le Code, au de la du Code”, ou seja, “pelo Código, mas além do Código”. Talvez, efetivamente, seja isso o que falta em nossa vida política institucional, ou seja, um pouco de hermenêutica. O que é lei e o que é realidade? É evidente que a realidade a que nos referimos é a política. Muitas vezes, a realidade política é simplesmente desconhecida até mesmo pelo legislador que a criou, pois o que vemos é um descompasso entre a realidade e aquele dispositivo inserido na lei. E as leis eleitorais apresentam um problema muito sério, pois nem sempre são feitas de acordo com uma sistematização, considerando-se as demais leis. Muitas vezes, ignoram até mesmo a Constituição Federal. Deve ser relevada a hermenêutica eleitoral. É preciso estabelecer efetivamente uma forma de interpretação e, de uma vez por todas, um microssistema eleitoral em que haja racionalidade. E isso não é para que nós, operadores do direito, fiquemos mais confortáveis, mas para que os senhores, atuantes do processo eleitoral, políticos e mandatários, tenham mais segurança no que fizerem. Vejam todos que barafunda é esse negócio de prestação de contas. Hoje em dia, um Vereador é quase vítima da prestação de contas. Já vi contas de R$50,00 e de R$80,00 não serem aprovadas. É necessário o estabelecimento de um sistema eleitoral racional, mas parece que o brasileiro não é vocacionado para a racionalidade. Tive um professor que dizia isso. É preciso parar para pensar o sistema, para que o próprio eleito tenha uma certa tranquilidade e não seja apontado como responsável por isto e por aquilo. Prego que haja uma hermenêutica eleitoral atualizada, que considere, acima de tudo, a Constituição como tábua axiológica e como centro de gravitação do sistema, para que, pelo menos, possa haver uma certa segurança jurídica nesse meio. Não é preciso ficar na literalidade da lei, mas é preciso considerá-la dentro do campo da interpretação. Como diz Raymond Saleilles, “par la loi au delà de la loi”, pela lei, mas um pouco além dela, considerando a sistematização e a racionalidade que existem na ideia de sistema. Fazendo uma breve alusão ao projeto de lei recentemente aprovado no Congresso, o Ficha Limpa, realmente tem havido alguma discussão a respeito da sua constitucionalidade e, principalmente, de alguns de seus dispositivos. A primeira leitura que fiz, ressalvando alguns absurdos que nela constam, a considerei constitucional. Agora, a tarefa da interpretação é do jurista. O jurista deve interpretá-la de acordo com a Constituição, porque, na essência, talvez seja uma lei boa e, efetivamente, traz alguns avanços. Acho que o problema maior, antes de discutir se ela é constitucional ou não, é saber se é retroativa ou não. Esse é o ponto. Tem se acostumado no Brasil, e particularmente no Eleitoral, a se revogarem direitos fundamentais. Aquela Resolução n° 22.610 que, apesar de o Supremo Tribunal Federal, que respeitamos, ter afirmado ser constitucional, ainda considerando a sua constitucionalidade, não poderia ser retroativa por óbvio: como pode um sujeito realizar uma conduta em fevereiro e aparecer uma norma em outubro dizendo que aquela conduta realizada em fevereiro merece uma sanção? Estou falando de coisa básica, de civilização, talvez de educação moral e cívica. Daqui a pouco vão dizer que passear na Praça da Assembleia e encostar na escultura belíssima de Amilcar de Castro é crime. E quem encostou na escultura de Amilcar de Castro no ano passado será processado e punido. O que estamos dizendo é de um mínimo de observância de direitos humanos; coisa mínima, básica; coisa a que um país civilizado ou que se pretende civilizado deveria, pelo menos, ter atenção. Talvez, nesse Ficha Limpa, supondo como suponho sua constitucionalidade, o debate mais relevante é considerar se é ou não retroativa. Digo aqui, em público, que não admito em minha consciência que uma lei retroaja para sancionar quem quer que seja, ainda que seja o Capeta, “ainda que seja ele”, como diria Guimarães Rosa. Quanto a um sujeito que cometeu um fato no passado ser punido no futuro, tenho a impressão de que nem Hitler chegou a esse ponto. Mas esse debate certamente ainda ocorrerá. Existe nesse campo do Ficha Limpa uma confusão generalizada. Inelegibilidade não tem nada, absolutamente nada a ver com presunção de inocência. Quem está fazendo esse debate está ouvindo o galo cantar e não sabe onde, como dizem no interior de Minas, com muita sapiência. No Direito Civil, o fato de uma pessoa ser culpada e responder por perdas e danos ou ter de realizar uma conduta reparatória não significa que sua presunção de inocência seja quebrada. Então, o Eleitoral tem as suas categorias, sendo a inelegibilidade uma delas, mas isso não tem nada a ver com presunção de inocência. Um sujeito quando pede registro de candidatura para Deputado Estadual, se ele não apresentar a certidão criminal - vejam, pode ser São Francisco, que certamente não tem nenhuma condenação -, o registro será indeferido. Isso não tem nada a ver com presunção de inocência, ninguém está dizendo que ele é culpado, pelo amor de Deus. São categorias diferentes. Precisamos trazer a racionalidade para o debate eleitoral, porque, do jeito que vai, acabará acontecendo uma revolução neste país, porque as pessoas não se entendem. Há muito, os antigos, que eram mais sábios que nós, diziam que é preciso definir as coisas, que as palavras devem ter definição, que o discurso científico não pode ficar ao sabor do subjetivismo. Quando iniciamos um debate, é precisamos saber em que termos e com qual significado estão sendo tratadas algumas palavras. Algumas vantagens, porém, vislumbramos no Ficha Limpa. Além de deixar clara a possibilidade de o candidato que tenha vida pregressa duvidosa não poder registrar sua candidatura, existem outras. Refiro-me aos aspectos dogmáticos, aos aspectos do processo jurisdicional eleitoral. Por exemplo, certamente a lei evitará o volume exacerbado de ações e processos que existem na Justiça eleitoral. Quem opera nesse campo sabe que muitas vezes o mesmo fato gera 5, 6 ações, que gerarão 20, 30, 40 recursos. Ora, existe na lei do Ficha Limpa a possibilidade - que não precisaria estar na lei, poderia ter sido construída por interpretação, mas o Tribunal Eleitoral se recusou a fazer essa interpretação - de que o mandato seja cassado na ação de investigação judicial eleitoral - Aije. Foi revogado o inciso XV do art. 22 e foi ampliado o inciso XIV do art. 22, para permitir a cassação do mandato já na Aije. Qual a consequência disso? No meu modo de ver, é uma consequência que já poderia estar no sistema desde 1990, mas só agora chegou. A consequência imediata será evitar que se ingresse com ação de impugnação de mandato eletivo - Aime - e recurso contra expedição de diploma - RCED. Ou seja, a consequência eventualmente jurisdicional desejada, que é eventualmente a cassação de diploma ou de mandato, já será obtida na Aije, sem que seja necessário ingressar com duas ações, e haver a multiplicação dos recursos. Isso tem outro efeito positivo: liberar a Aime, que é uma ação constitucional, para suas demais causas de pedir, que são relevantes. O debate eleitoral hoje está muito centrado no abuso de poder. Esqueceram-se da fraude, não se fala mais em fraude no direito eleitoral, sumiu a fraude do debate. Quando se fala nela, está sempre atrelada ao abuso de poder. Isso é uma loucura, porque existe fraude nas eleições. Não digo fraude em urna eletrônica. Repetindo, não estou falando em fraude em urna eletrônica, mas existem outras fraudes. Aconteceu aqui mesmo. Um sujeito era candidato a Prefeito. Ele tinha condenação criminal transitada em julgado. Ele sabia que seu registro não seria deferido desde o princípio. Mas foi candidato, e seu registro foi indeferido. Mas, por meio de recursos, ele foi se mantendo candidato. É um direito subjetivo dele manter-se candidato, quando seu registro é indeferido e enquanto não há uma decisão definitiva. Manteve-se candidato e, na quinta-feira, salvo engano, ele renunciou e colocou um filho no seu lugar, um ilustre desconhecido. Houve a substituição. Isso é uma fraude clara, aberta e desavergonhada, que a Justiça Eleitoral acabou aceitando. Por quê? Porque a lei que o Ministro Thomaz Bastos diz estar em descompasso com a realidade permite uma lei que o governo se recusou a modificar. Vejam, na lei do Ficha Limpa, além do seu aspecto tópico, que nem deveria estar sendo debatido, a mera hermenêutica, foi feito um rasgo muito grande na Constituição para se aprovar, por exemplo, aquela idéia da infidelidade partidária. Mas não conseguiram, na hermenêutica, uma interpretação para impedir que pessoas, por condenação criminal, fossem candidatas. Isso poderia ser resolvido na hermenêutica. Existem outros tópicos a respeito de novidades no âmbito eleitoral, e destaquei o financiamento de campanha. No Brasil, o financiamento de campanha adotou o sistema misto: o governo contribui com alguns recursos, e o candidato pode arrecadar mais no meio social. Mas há outro propugnado como sistema intermediário entre o financiamento privado total e o financiamento público total e tem sido chamado de sistema híbrido. Por ele, o candidato optaria pelo financiamento privado total ou pelo financiamento público total. Se optasse pelo financiamento público, o Estado arcaria com a despesa de campanha dele até determinado teto. Optando pelo sistema privado, não receberia nada do Estado, e arrecadaria recursos do meio. Esse sistema é de passagem, uma ideia que os cientistas políticos estão desenvolvendo. Discordo dela, pois o problema não é o sistema ser público total ou privado total. Considero o nosso sistema de financiamento bom: o Estado gasta um pouco, e o segmento privado gasta um pouco, afinal de contas a atividade política interessa ao Estado. Certa vez, a Profa. Edilene Lobo disse no Tribunal que tudo que se gasta com eleição é pouco para o Brasil, que agora é credor dos Estados Unidos. Tudo o que gastamos com eleição é pouco, sempre repito essa frase. O financiamento não pode ser exclusivamente público, porque temos de cuidar das nossas crianças. A escola brasileira está falida e as estradas viraram caminhos. Temos de investir em vários segmentos, mas não podemos deixar o meio político, a gerência do Estado acéfala. Havia separado pelo menos mais 30 páginas para expor aos senhores, talvez seriam necessárias mais 2 horas e meia de discurso, mas o tempo, regido por uma ampola fatal e inexorável, está atingindo o meu limite. É preciso elevar o nível do debate eleitoral não entre os candidatos, mas entre os operadores do direito, os hermeneutas, para que tenhamos uma legislação civilizada, que não mude a cada eleição e gere tanta insegurança no nosso meio. Pensando nisso, citarei o poema de um coreano que ouvi certa vez: “O vento sopra. Ah! Esse mundo, aquele mundo!” E o eleitoral vai ao sabor dos ventos. Muito obrigado. É um prazer estar aqui.