HERBERT CARNEIRO, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais - TJMG.
Discurso
Comenta o tema: "Diálogo Intersetorial: perspectivas na efetivação de
modelos alternativos de justiça penal", dentro do 2º painel.
Reunião
89ª reunião ORDINÁRIA
Legislatura 16ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 17/10/2009
Página 60, Coluna 2
Evento Ciclo de debates: "Alternativas à Privação de Liberdade: outras formas de promover justiça".
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA. DIREITOS HUMANOS.
Legislatura 16ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 17/10/2009
Página 60, Coluna 2
Evento Ciclo de debates: "Alternativas à Privação de Liberdade: outras formas de promover justiça".
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA. DIREITOS HUMANOS.
89ª REUNIÃO ORDINÁRIA DA 3ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 16ª
LEGISLATURA, EM 6/10/2009
Palavras do Desembargador Herbert Carneiro
Boa tarde a todos e a todas. Resolvi falar de pé, primeiramente
para que eu mesmo não durma e, segundo, para não contribuir para o
sono de cada um dos senhores. De vez em quando, levantarei a voz,
naturalmente para despertá-los um pouco. Prometo ser o mais breve
possível. Desde que cheguei aqui, há quase 4 horas, com muita
satisfação, ouvi elogios e referências a algumas práticas que o
Tribunal de Justiça de Minas Gerais vem implementando no Estado.
Realçarei algumas dessas boas práticas, mas naturalmente não
poderia deixar de fazer uma consideração inicial. É a de que - eu
a faço, naturalmente, me enfileirando com todos que me precederam
aqui - o direito penal precisa ser repensado. Precisamos caminhar
para mudanças - como foi muito bem realçado aqui -, para mudança
de paradigmas, para uma nova cultura. Isso foi lugar-comum aqui.
Desde ontem, na fala do Prof. Cirino e nas de todos que tive aqui
o privilégio de ouvir, isso é um lugar-comum. O direito penal,
definitivamente, no Brasil, está indevidamente substituindo as
políticas públicas, fazendo aquilo que não é o seu papel de
“ultima ratio”. Ele tem sido, sim, a “prima” ou “tota ratio” do
Brasil, substituindo as políticas públicas.
Não tivesse ficado nada deste vertiginoso ciclo de debates, que
se iniciou nesta Casa ontem, o qual tenho como um coroamento de
todo um trabalho eficiente, desenvolvido pela Comissão Especial da
Execução das Penas da Casa - este ciclo de debates coroa todo um
trabalho do qual tive o privilégio e a honra de participar -,
diria que, para mim, já ficou aquilo que é lugar-comum, o que
todos nós sabemos. Nunca é demais cobrar de cada um de nós
reflexão: precisamos repensar, há uma convicção, uma certeza de
que o direito penal brasileiro precisa ser repensado, diminuído na
sua fúria punitiva.
Eu acresço a essa gratificação que tive, por essa constatação do
fracasso do direito penal, a legitimidade da fala da Maria Tereza
aqui, hoje.
A Maria Tereza, cidadã politizada, mais do que todos nós, com
certeza, demonstrou isso muito bem. E mostrou o privilégio que
tive de conviver com ela durante o tempo em que estive na Vara de
Execução. Ela tem uma consciência da cidadania e da civilidade
como ninguém. Eu diria que ela, aqui, hoje, fez valer o seu
direito de cidadã, de compor a Mesa dos trabalhos, dirigir-se à
autoridade pública de igual para igual e dizer que o sistema de
vistoria, de revista praticado no sistema penitenciário brasileiro
tem de ser repensado, extirpado. É preciso encontrar práticas
dignas e humanizadas e permitir que os visitantes adentrem o
sistema penitenciário sem que seja vilipendiada e ultrajada a
dignidade e a humanidade de cada um deles.
Maria Tereza, com certeza, a sua fala nesta tarde, dirigida às
autoridades - posso lhe garantir, diante da sua legitimidade e da
legitimidade que a sociedade lhe confere, tenho esta convicção -,
surtirá muito mais efeito do que qualquer ação civil pública ou
mandado de segurança que pudesse cobrar do sistema de justiça uma
reflexão ou até mesmo uma mudança de postura das nossas
autoridades. Eu saio daqui com duas convicções: primeiro, o
direito penal - para mim, esta é uma realidade antiga -, tanto
quanto o direito da execução da pena propriamente dita, da forma
como é praticada no sistema prisional brasileiro, sabidamente
falido, não cumpre o seu papel. Segundo, saio daqui também com o
conforto e a alegria de ter visto a Maria Tereza, da forma mais
legítima e democrática possível, colocar uma situação que precisa,
sim, ser mudada e repensada no sistema penitenciário mineiro,
especificamente.
Ontem, ouvi o Prof. Cirino e, hoje, alguns palestrantes que foram
do direito penal mínimo ao abolicionismo do direito penal. Nós
estamos em um país plural, democrata, que prima pelo exercício da
cidadania - pelo menos assim está na Constituição Federal. Temos
de permitir naturalmente aos cidadãos, às autoridades constituídas
- e aqui eu faço a reflexão especificamente com relação ao Poder
Judiciário brasileiro - a convivência com divergências de ideias e
que formulemos, no debate livre da divergência das ideias, a nossa
jurisprudência. O Prof. Cirino, autoridade reconhecida no País
inteiro pelo seu propósito garantista, pelo seu amor, dedicação e
idealismo constitucional, disse aqui muito bem - e eu ouvi - que é
preciso que os Juízes brasileiros tenham mais coragem e atuem mais
à luz da Constituição Federal na interpretação, especificamente,
da lei penal. Eu posso dizer que isso é a mais pura verdade. Eu
darei dois exemplos. O regime integralmente fechado, previsto na
Lei Federal nº 8.072, vigorou no Brasil por 16 anos. E, por certo,
na consciência dos Juízes brasileiros. Muitos deles já o sabiam
inconstitucional, mas foi preciso que o STF, depois de uma demora
de 16 anos, dissesse que o regime integralmente fechado era
inconstitucional para que os Juízes brasileiros deixassem de
praticá-lo.
Eu, graças a Deus, faço parte de uma leva de Juízes que, antes do
amor à lei, tem o amor à Constituição brasileira. Desde longa
data, nunca apliquei regime integralmente fechado e sempre exerci
aquilo que a própria Constituição brasileira me possibilita: o
controle difuso da constitucionalidade no caso concreto.
Não esperei que o Supremo demorasse 16 anos para me dizer que o
regime integralmente fechado era inconstitucional. Da mesma forma,
agora, em relação ao integralmente fechado, foi preciso que o
Supremo declarasse e, logo em seguida, o Executivo cuidasse de
fazer uma lei, a Lei Federal nº 11.464, criando novos parâmetros
fracionais para possibilitar a progressão do regime nos chamados
crimes hediondos ou assemelhados a tal. Não vou entrar na
inconstitucionalidade da lei como um todo: me resumirei ao regime
integralmente fechado para dizer aquilo que pretendo.
Logo em seguida, após o reconhecimento da inconstitucionalidade
pelo STF, o nosso Congresso Nacional legislou com fúria e com
pressa para trazer a Lei Federal nº 11.464, para dizer que, se
agora é possível fazer progredirem de regime aqueles que
praticaram crimes hediondos ou assemelhados a hediondos, não se
pode igualá-los aos que cometeram crimes comuns, possibilitando a
eles a progressão de regime pela fração de 1/6 da pena cumprida.
Era preciso criar parâmetros diferenciados, e, imediatamente, o
legislador cuidou de criar 2/5 e 3/5. E, hoje, o Juiz brasileiro
trabalha com isso, ou seja, a jurisprudência se faz em cima disso.
Eu continuo a entender que, na maioria dos casos, ainda prevalece
1/6 da pena para a progressão de regime.
Outra realidade brasileira é o famigerado regime disciplinar
diferenciado, que veio com a Lei Federal nº 10.792, de 2003, a
mesma lei que trouxe o enaltecimento do interrogatório, como meio
de autodefesa e de prova no processo penal, obrigando o Juiz, na
prática do interrogatório, que é o ato mais importante do processo
penal, a respeitar a individualidade do cidadão e o seu perfil
psicossocial, fazendo um juízo não só dos fatos que importam no
processo, mas levando em conta também o conhecimento da formação e
da vida do interrogado. Essa mesma lei que trouxe esse aspecto
constitucional do interrogatório, trouxe o famigerado regime
disciplinar diferenciado, aplicado indistintamente a presos
condenados com sentença transitada em julgado e a presos
provisórios. Não vi ação nenhuma do Ministério Público nem da
Ordem dos Advogados do Brasil ou de algum dos legitimados
constitucionalmente para arguir a inconstitucionalidade do RDD.
Foi preciso que a sociedade brasileira fizesse um movimento de
cobrança à Ordem dos Advogados para a propositura de uma ação de
inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado.
É preciso tirar do mundo jurídico essa excrescência. A dignidade
humana e a individualidade da pena não convivem com esse tipo de
atrocidade. Aliás, Fernandinho Beira-Mar já o experimentou por
mais de uma vez. Será que é isso que a sociedade brasileira quer
para o Fernandinho Beira-Mar? Será que a sociedade brasileira se
esquece que o Fernandinho Beira-Mar, com 30 anos de pena - a
sentença prevê isso -, terá direito a voltar ao seio da sociedade?
E o que espera a sociedade é que, com esse sentimento de vingança,
Fernandinho Beira-Mar venha aqui fora para nos agradecer?
Acredito que não. Espero que o STF não demore outros 16 anos para
reconhecer a inconstitucionalidade do regime disciplinar
diferenciado - RDD. Em Minas Gerais, nós, Juízes mineiros,
reunidos no Tribunal de Justiça, Juízes da execução, firmamos o
entendimento de que aqui não houvesse o RDD, embora algumas
penitenciárias - digo porque fui procurado com esse fim, pela de
Francisco Sá, por exemplo - já estivessem mais ou menos
aparelhadas para receber presos desse regime. Mas nos posicionamos
corajosamente contra o RDD.
O Sr. Presidente - Lá não há nem Defensor Público.
O Desembargador Herbert Carneiro - Por aí o senhor vê o grau de
abuso. Até fazendo um contraponto ao que foi dito pelo Prof.
Cirino ontem, tenho notícia de que, Brasil afora, Juízes corajosos
não fazem o controle difuso de constitucionalidade. Eles aplicam o
RDD. Mas São Paulo, Estado que tem o maior contingente prisional
do País - são 170 mil presos -, que tem uma fúria muito grande na
execução da pena, até porque lá estão cada vez mais fortes as
organizações criminosas, aplica o RDD indistintamente para presos
condenados e provisórios. Espero que o STF tome a postura de
dizer: “Isso é uma excrescência política, isso viola o princípio
da individualidade da pena, viola a dignidade da pessoa humana,
isso é pena cruel, vedada pela Constituição Federal, que deve ser
extirpada do mundo jurídico”.
Quero dizer que nem todos os Juízes são iguais. Mas, se nem todos
os Juizes não são iguais e a lei possibilita interpretação
diferenciada, naturalmente com bons fundamentos e com boas
justificativas pelo menos, sobrevivem assim, algumas delas até
resistem a recursos. Se essa é a prática, a minha experiência tem
dito: o Juiz só aplica, só interpreta a lei que tem. Então, vamos
naturalmente trabalhar especialmente para a descriminalização de
algumas condutas. Sou francamente favorável à descriminalização -
e falo abertamente - do porte de droga para uso próprio. Acho que
o legislador perdeu uma oportunidade muito grande. Quando poderia
descriminalizar essa conduta, preferiu “desterceirizar”, preferiu
manter, no art. 28, como se o Estado estivesse devidamente
aparelhado para tal, para a obrigatoriedade. É pena, está lá, o
tipo está previsto, há crime e a pena está imposta. Não caminhamos
para a descriminalização, caminhamos para a “descarceirização”:
retiramos a pena privativa de liberdade, mas mantivemos pena. E
dizem: frequência a cursos de recuperação do cidadão. Pergunto,
não obstante raríssimas e pouquíssimas práticas exitosas no
Brasil: onde estão esses cursos? Onde está a política pública que
oferece ao Judiciário a possibilidade do encaminhamento dessas
situações? Aqui em Minas Gerais devo fazer uma ressalva, e, aliás,
tenho feito isso no Brasil inteiro: para nós, orgulhosamente
mineiros, estamos caminhando para esse tipo de estrutura. O Estado
tem feito, sim, gestões eficientes, por exemplo, no que diz
respeito à aplicação das penas alternativas. É uma modalidade
alternativa oferecer as centrais de penas alternativas como órgão
auxiliar do Juiz.
E, como o Secretário disse muito bem, em Minas Gerais,
lamentavelmente, ainda há Juízes e Promotores de Justiça que
entendem que pena alternativa é impunidade e não deve ser
aplicada. Na semana passada mesmo, fiz intervenções junto a dois
deles, a pedido do Presidente do Tribunal de Justiça, tentando
sensibilizá-los de que temos uma estrutura multidisciplinar
colocada à nossa disposição pela Secretaria de Defesa Social, por
meio da Superintendência de Prevenção, com psicólogos, assistentes
sociais, um corpo técnico competente para nos auxiliar. E o Juiz
diz, a pedido do Promotor de Justiça, “vamos aplicar a pena
pecuniária, a pena de multa; a prestação de serviço à comunidade é
impunidade”.
Diante desse quadro e dessa reflexão, digo, resumidamente: para
que os Juízes possam aplicá-las, é preciso que as leis venham.
Como disse aos nobres Deputados Durval Ângelo, João Leite e demais
membros da Comissão de Direitos Humanos, o Projeto de Lei no 4.208
está em tramitação no Congresso Nacional, mas, Prof. Virgílio, não
sai por nada. Trata ele das prisões cautelares e colocaria um fim
no abuso que se pratica hoje em relação às prisões preventivas e
provisórias no Brasil, a ponto de depararmo-nos com decisões
judiciais que dizem que a sustentação da prisão está no prestígio
do Judiciário. Ora, no dia em que o Judiciário brasileiro se
prestigiar em cima da prisão, é preferível acabar com ele. É
preciso que o Judiciário brasileiro prime, sim, pela dignidade e
humanidade das pessoas, pela consciência permanente de que a
liberdade pode ser restringida temporariamente, mas que
naturalmente, com essa restrição, não se pode definitivamente
tirar do cidadão a dignidade e a humanidade. Mas esse projeto de
lei não anda no Congresso Nacional. Nos termos dele, crimes de
pequeno e médio potencial ofensivo não autorizam mais prisão
preventiva ou qualquer tipo de prisão. Ou seja, o cidadão que
cometer um furto, um crime de pequeno ou médio potencial ofensivo
não vai para a cadeia; vai ficar sob prisão domiciliar, em casa, a
aguardar a decisão do processo. E a decisão do processo só poderá
vir, naturalmente se ele reunir as condições para a aplicação de
uma pena restritiva de direito. Mas o que acontece hoje é
exatamente o contrário: prende-se todo o mundo; ao final, o Juiz
converte a pena privativa de liberdade em restritiva de direito e,
quando se vê, o cidadão ficou mais tempo na cadeia do que
prestaria de serviço à comunidade ou do que deveria pagar de
prestação pecuniária. Mas quem possibilita isso? É a nossa
legislação, que, como estou dizendo, pode ser interpretada para o
bem ou para o mal. Graças a Deus, tenho na consciência a convicção
de que, vencido mas não convencido, eu a estou interpretando à luz
da Constituição Federal. Há uma homenagem permanente que o
intérprete e o aplicador da lei devem fazer: não há lei ou punição
que possa ser aplicada sem a baliza, única e exclusiva, na
dignidade e na humanidade das pessoas.
Faço aqui um registro: a sociedade brasileira assistiu agora a um
discurso mais democrático na Conferência Nacional de Segurança
Pública, de que tive o privilégio de participar. Com o
envolvimento dos 5 mil Municípios brasileiros, por suas
representações, do poder público à sociedade civil organizada,
foram coletados 17 mil documentos no âmbito desse debate público.
Não houve, nos 17 mil documentos, o mais mínimo registro de que o
brasileiro quer a pena de morte ou a prisão perpétua.
A legitimidade deste ciclo de debates é grande diante do paradoxo
que o brasileiro vive entre respeitar a Constituição e respeitar a
dignidade e a humanidade das pessoas. De outro lado, por todos os
interesses mencionados aqui, dos financeiros aos políticos, é
preciso fazer uma opção entre o que está na Constituição e o que a
sanha e a fúria do direito penal nos impõe no dia a dia. O
Congresso Nacional editou a Lei nº 12.015, que trata da dignidade
dos crimes sexuais com uma rapidez sem igual, colocando a nós,
intérpretes, uma dificuldade. Aquilo que era atentado violento ao
pudor agora é estupro. Foi dito aqui ontem. Passam a mão numa
menina dentro do ônibus, e é mais um atentado violento ao pudor,
mas, na minha visão, não é crime hediondo, é regime semiaberto, e
a pena é mínima. Dou um jeito até de substituir. Mas isso agora é
estupro, e vale tanto para o homem quanto para a mulher.
É nesse contexto, caro Deputado Durval Ângelo, em mais esta
iniciativa desta Casa Legislativa, que orgulha a todos os
mineiros, que está inserido este debate. Diria muito mais do que
debate; é uma cobrança, uma exigência de cada um de nós que se
compromete com a civilidade, com o nosso tempo, com a dignidade,
com a humanidade das pessoas, para mudarmos uma postura, para
acabarmos com um paradigma e criarmos outro que possa nos fazer a
todos mais felizes.
Falarei rapidamente sobre boas práticas, pois não posso perder
essa oportunidade, Deputado, e, em três minutos, concluo. Foi dito
aqui, eu disse e reitero. Ouvi, com muita satisfação, a alusão que
se fez à Apac. Sou um entusiasta, um idealista e um crente das
Apacs. Das Apacs não como um método, porque, quando se fala em
método, fica parecendo que se faz refer~encia a uma regra; não
como modelo, porque a palavra modelo dá a sensação de correção do
que não tem mais como ser consertado. Na minha visão, a Apac é uma
boa prática que vive com a idiossincrasia de cada comarca onde se
pretende implantá-la, com a sensibilidade do Prefeito, do
Presidente da Câmara, dos clubes de serviço e, fundamentalmente,
da sociedade civil organizada. Se não houver a consciência do que
foi dito aqui ontem, da punição e da necessidade, do que disse o
Dr. Mário da Conceição, enquanto vivemos neste estado de leis,
nesta ordem jurídica que está posta, se há o crime e se há a
punição, enquanto isso não é mudado, enquanto o discurso
abolicionista, meu caro Prof. Virgílio, não vinga por completo,
enquanto temos que conviver com este sistema, vamos cuidar de
humanizá-lo, vamos cuidar de implementá-lo, não só reconhecendo a
dignidade do recuperando que está lá, mas também a dignidade das
pessoas que estão aqui fora. A Apac faz isso.
E aí estamos todos nós. Dizem que o sistema penitenciário
brasileiro está falido - e está mesmo - e que a dignidade das
pessoas lá dentro está vilipendiada. Mas a nossa dignidade também,
como membros de uma sociedade e de um Estado, está vilipendiada.
Não acredito que a sociedade brasileira se compraz e se felicita
com as atrocidades que acontecem dentro do nosso sistema
penitenciário.
As Apacs têm feito a diferença. É boa prática porque envolve
muitos. Cria no recuperando a consciência da punição no sistema
que temos e fundamentalmente incute nele a responsabilidade pelo
seu próprio destino, o que não acontece no sistema penitenciário
convencional. Lá não se tem consciência da punição, muito menos
responsabilidade e compromisso. Estou cansado de ouvir jovens
dizerem: “Doutor, estou dentro do sistema, pra mim tanto faz como
tanto fez na vida. Tenho a certeza de que, na primeira
oportunidade, encontro a fuga e vou agarrá-la com unhas e dentes”.
Na Apac, isso não acontece. A Apac envolve a comunidade, envolve a
família, envolve toda a sociedade em um problema que é de todos
nós. Não podemos mais ficar no discurso do escapismo, achar que
segurança pública, no que diz respeito ao viés mais trágico dela,
que é o sistema prisional, é responsabilidade só do Estado. Não; é
responsabilidade de todos nós. A resposta da qualidade do sistema
que se aplicar ao Fernandinho Beira-Mar virá para todos nós.
Portanto, esse é meu recado e meu reforço em relação às Apacs.
Precisamos verdadeiramente de institucionalizar as Apacs, que não
devem ser um projeto de um Presidente do Tribunal de Justiça que
será esquecido por outro que encontrar outro foco ou do governo do
Estado, que tinha uma previsão de aplicar, durante este ano,
R$9.000.000,00, mas o valor aplicado não chegou a R$9.000.000,00.
É preciso que isso vire lei.
O Sr. Presidente - Esses são valores insuficientes. Não se
consegue ter 30% da aplicação do previsto.
O Desembargador Herbert Carneiro - Tão insuficientes, Deputado,
que hoje, há quarenta e poucas Apacs implantadas, em fase de
implantação e em funcionamento. Em relação ao sistema prisional,
essa comparação não é muito boa, mas é importante: com 47 mil
presos no Estado, a Apac abriga menos de mil presos. Precisamos
evoluir nessa política. Precisamos profissionalizá-la e
institucionalizá-la de verdade. Tenho feito esse apelo
permanentemente à Assembleia, que é a casa do povo, e tenho o
instrumento legal para fazer isso na Lei de Execução Penal
estadual que temos. Somos um dos três Estados do País que tem Lei
de Execução Penal. É preciso que pensemos na Apac como algo na
lei. Quando falamos de lei, pensamos em orçamento, em previsão
orçamentária e vemos efetividade política.
Está aqui meu nobre colega Luiz Carlos, muito bem reconhecido
aqui pelo Deputado Durval Ângelo, um guerreiro, um amante das
Apacs. Ele implantou uma Apac modelar em Lagoa da Prata e está
aqui com uma missão dada pelo Presidente do Tribunal de Justiça de
fazer essa articulação entre os Juízes, porque não são todos que
gostam das Apacs. Primeiro, o Tribunal de Justiça tem que colocar
na cabeça desse pessoal, Prof. Virgílio, desde a hora em que o
Juiz entra no Poder Judiciário, na Ejef, a necessidade de alterar
a lei para que o Juiz seja avaliado de maneira positiva e
meritória, com a aplicação da responsabilidade social, um pouco da
atividade judicante. Que ele não fique achando que prestação
jurisdicional é só emitir sentença. Somente isso não resolve. A
sentença, às vezes, cria mais problemas que solução. Basta dizer
que o processo é de dois, e um terá que sair perdendo. É preciso
que o Tribunal de Justiça tenha essa consciência de criar nos
Juízes essa responsabilidade social, de não passar pela comarca
como um mero agente político produtor de sentenças e cumpridor de
metas de acordo com o CNJ.
No que diz respeito às penas alternativas eu disse e realço,
temos uma parceria que precisa também ser cada vez mais
fortalecida pelo Poder Judiciário e pelo sistema de defesas
sociais. Está aqui a Dra. Fabiana, que é a condutora desse
processo por parte da defesa social, da prevenção de
criminalidade, que luta e que me diz: “Doutor, temos dificuldades
com alguns Juízes que não gostam de penas alternativas, que
desprezam a nossa equipe multidisciplinar e preferem aplicar
prestação pecuniária que não sabem nem se terá executividade e
efetividade.” Precisamos, então, aplicar mais nas centrais de
penas alternativas. O CNJ tem dado algumas ordens para o Poder
Judiciário, algumas delas boas, Prof. Virgílio. Participei e sou
membro de uma comissão do Conselho Nacional de Justiça. Vi lá a
construção de uma resolução que diz que os Tribunais estão
obrigados a especializar varas de penas alternativas.
O Sr. Presidente - Obrigado a visitar cadeia e penitenciária.
O Desembargador Herbert Carneiro - Estava na lei, mas precisou o
CNJ determinar. Trabalhei durante sete anos numa vara de execução
convivendo com pena privativa de liberdade e pena restritiva de
direito que se misturavam. Havia momento em que não sabíamos com o
que estávamos lidando. É preciso especializar. Há 21 experiências
no Brasil. Nesse particular Minas Gerais ainda não andou porque o
Tribunal de Justiça não quis que andasse. Não temos uma vara
especializada nessa área. Precisamos, no mínimo, ter uma vara
especializada nas cidades-polo do Estado. Juiz de Fora comporta
uma; Uberlândia, outra; Montes Claros, outra. Esta Casa pode, sim,
cumprir esse seu papel. Ela discute, de dois em dois anos, a nossa
lei de organização. O Deputado João Leite tentou agora criar, mas
sofreu resistência e foi barrado. Foi vetada a proposta dele de
especialização. Então, precisamos, no que diz respeito às penas
alternativas, caminhar para as especializações e o fortalecimento,
por meio do Executivo, dessa estrutura multidisciplinar. Virá, em
breve, uma resolução do CNJ dizendo o que os tribunais terão de
fazer, que ele está recomendando que eles o façam.
Por último, falarei de algo que diz respeito a uma boa prática, e
a cada dia, tenho me apaixonado por ela. Refiro-me ao PAI-PJ,
Programa de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário,
aquele que durante o crime, no momento do crime ou posteriormente,
no curso do processo ou já no curso da execução da pena,
experimenta uma situação de transtorno mental, como já foi muito
bem comentado aqui pelo Dr. Rodrigo Torres. Esse cidadão quase
sempre pela justiça convencional, e a lei é assim, sujeita-se a
uma medida de internamento, fica acautelado indevidamente numa
cadeia pública da maneira mais desumana possível, e o Juiz
requisita a vaga ao sistema oficial, um hospital psiquiátrico,
judicial. Essa vaga não sai. O cidadão fica lá, alimentando-se de
fezes e de bichos. Esse problema não é do Estado, enquanto
Executivo, enquanto governo. Por outro lado, o Judiciário diz que
já cumpriu o seu papel, já deu a sua sentença, não tendo mais como
falar. Tem sim! O PAI-PJ tem demonstrado, desde 2001, embora
tratado simploriamente por meio de uma portaria. O Tribunal de
Justiça nem sequer baixou uma resolução. Trata um programa de
responsabilidade social, de cidadania e de civilidade da maneira
mais simplória possível, por meio de uma portaria. Tenho dito
isso.
O Sr. Presidente - Faremos uma lei tornando obrigatório.
O Desembargador Herbert Carneiro - Ontem peguei o final do
relatório da Comissão, Sr. Deputado, e saí daqui feliz da vida. Vi
lá a última frase que consta do relatório, referindo-se ao
compromisso desta Casa de fazer do PAI-PJ uma lei estadual.
O Sr. Presidente - Apresentar uma lei estadual.
O Desembargador Herbert Carneiro - Uma lei estadual para dar a
esses cidadãos a oportunidade, como já demos a mil deles que já
passaram pelo programa, a despeito do problema do surto, do
transtorno mental que experimentaram durante ou após o crime, de
serem tratados com dignidade, com cidadania, que lhes possibilite
aquilo que está muito claro no programa. E o programa é grande,
pois impõe ao Judiciário a convivência intersetorial, que tenha de
conviver com os técnicos, o que para nós é um tanto quanto
difícil, mas que está lá no PAI-PJ.
Temos de descer dos nossos pedestais, temos de conversar com os
técnicos, com os psiquiatras, com os psicólogos, com os
assistentes sociais, verdadeiramente, comprometendo-nos com o
resgate social daquele pessoal, dentro de uma política
antimanicomial, que para nossa sorte nasceu aqui em Minas, em
1998. Posteriormente, nossa lei mineira tornou-se lei federal.
Demos um exemplo para o Brasil inteiro da lei antimanicomial. Não
queremos mais Barbacena nas nossas vidas, não queremos mais Jorge
Vaz nas nossas vidas. Para isso, é preciso que haja engajamento de
muita gente - do Poder Judiciário, do Ministério Público, da
Defensoria Pública, da Ordem dos Advogados e, fundamentalmente, da
sociedade -, com uma nova cultura, com uma nova mentalidade de não
querer jogar debaixo do tapete, como se lixo fosse, o ser humano,
que naturalmente, não porque quisesse, pelo custo do crime ou da
execução da pena que lhe foi imposta, experimentou o transtorno.
Nem por isso tem de ser tratado como escória. São esses os
programas sobre os quais eu teria de falar, até porque o faço com
algum orgulho. Participo de todas as iniciativas do Judiciário
Mineiro, mas tenho a humildade de reconhecer que temos que avançar
e avançar muito. Esse ciclo de debate, na minha modesta visão, na
minha construção pessoal, serviu fundamentalmente para me levar a
mais essa reflexão, a mais essa consciência da necessidade de
criarmos um novo paradigma. É uma alegria sabermos que a Maria
Teresa, cada vez mais, torna-se, na intensidade da palavra, uma
cidadã, que pode e deve cobrar sempre das autoridades mudanças de
postura. Muito obrigado.