Pronunciamentos

GILMAR DE ASSIS, Promotor de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde - CAO-Saúde/MPMG.

Discurso

Comenta o tema do painel: Justiça Terapêutica: perspectivas e desafios.
Reunião 23ª reunião ESPECIAL
Legislatura 17ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2013
Página 17, Coluna 1
Evento Ciclo de debates: Um novo olhar sobre a dependência química.
Assunto DROGA. SAÚDE PÚBLICA.
Proposições citadas RQC 5790 de 2013

23ª REUNIÃO ESPECIAL DA 3ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 17ª LEGISLATURA, EM 25/6/2013

Palavras do Sr. Gilmar de Assis


Palavras do Sr. Gilmar de Assis

Muito obrigado, Sr. Presidente. Bom dia a todos e a todas. Na pessoa do Presidente, Deputado Vanderlei Miranda, cumprimento todos os nossos colegas da Mesa e os Deputados. Inicialmente, farei uma reflexão e talvez eu não seja o mais indicado para participar do debate dessa justiça terapêutica, já que a nossa contribuição tem sido mais no foco, e vamos continuar fazendo isso. Assim, resgato um pouco da fala da Juíza Dra. Valéria, do fazer fazer, do discurso à prática.

Pastor Wellington, quero apresentar-lhe nossos agradecimentos pela oportunidade da indicação para fazer parte desta reflexão, destes debates, deste novo olhar sobre a dependência química.

Permita-me uma alocução, ainda que breve. Enquanto Coordenador do CAO Saúde, talvez ainda sem a ressonância do trabalho, principalmente de uma ação institucional por nós criada pela administração superior, positivada na Resolução nº 78, de 18/9/2012, criamos uma ação institucional de mediação sanitária: direito, saúde e cidadania. Não é do Ministério Público, mas pertence propriamente a toda a sociedade, integrada por diferentes atores, jurídicos ou não jurídicos, em espaços democráticos compartilhados. Uma ambiência de saberes nessa caravana da saúde, sobretudo nas 75 microrregiões sanitárias de Minas Gerais - já estamos na 44ª reunião de mediação sanitária -, onde o foco é sempre suprapartidário, sempre na perspectiva de que mais importante que a responsabilização sem solução de problemas é a solução de problemas com a responsabilização coletiva, da qual o Ministério Público deve fazer parte.

Não nos esquecemos do papel conferido na Constituição a esse mesmo Ministério Público, e que ele precisa, de forma solidária, democrática e resolutiva, com respeito às diversas instituições, imiscuir-se nesse papel de buscar soluções em consenso, legitimadas. E aí a saúde mental, a saúde prisional, a instituição das redes de atenção à saúde, o fortalecimento regional da saúde, a política dos hospitais de pequeno porte, o subfinanciamento, a gestão qualificada passam necessariamente por essa discussão, com a presença do Conselho Regional de Medicina - CRM -, da Comissão de Saúde desta Casa, do Tribunal de Contas, da Defensoria Pública, da Associação dos Hospitais de Minas Gerais, da Federação das Santas Casas e Entidades Filantrópicas de Minas Gerais, da Comissão de Direito Sanitário da OAB, da Comissão de Assuntos Jurídicos da Federassantas, do Judiciário, por meio do Fórum Nacional do Judiciário, por meio da Câmara Civil do Tribunal de Justiça, com os Desembargadores sempre no embate, sempre na luta, como a Desembargadora Vanessa Verdolim, o Desembargador Osvaldo Firmo, o Desembargador Geraldo Augusto, o Juiz Renato, Presidente do Comitê Executivo Estadual da Saúde em Minas Gerais.

Deixo como proposta - permita-me, Deputada Liza Prado - que também essa importante Comissão de Prevenção e Combate ao Uso de Drogas esteja conosco, em cada uma de nossas microrregionais, com a presença de Prefeitos, Secretários Municipais de Saúde, prestadores, numa agenda altamente positiva de fazer fazer, com respeito, com democracia.

Nós - eu falei nós - estamos mudando a realidade assistencial da saúde em Minas Gerais. Quer um exemplo? Vamos para a Macrorregião Oeste, em Divinópolis, onde a recorrência da judicialização estava muito grande, muito alta. Não que a judicialização em si seja nefasta, mas reconhecemos e fazemos o mea-culpa, que a judicialização reflexiva e não refletida pode levar e leva inexoravelmente à desestruturação, sobretudo dos mais fracos entes desse federalismo, os Municípios, que têm o seu plano orçamentário minguado, numa repartição tributária absolutamente injusta e desigual neste país. Nessa mediação, para nossa infelicidade, um verdadeiro outro TAC, em que o Ministério Público também tem de fazer a sua atuação mais resolutiva e seu mea-culpa.

Estamos buscando consensos mais ou menos uniformes e mudando todo um paradigma de atuação do Ministério Público em Minas Gerais.

Para nossa felicidade, com a nossa eleição para Coordenador Nacional do Ministério Público Brasileiro, que inclui o federal, aprovamos na semana passada, pelo Conselho Nacional do Ministério Público, projetos que implementaremos numa atuação mais resolutiva do Ministério Público brasileiro, mais uniformizada, numa ótica solidária com os diversos atores, numa perspectiva da tríade direito-saúde-cidadania, mudando as realidades sociais. É sair do discurso para a prática. Creio que vamos avançar nessa perspectiva.

Eu desafio o Promotor de Justiça, o gestor ou qualquer dos presentes a tentar mudar as realidades sociais de forma solitária. Não conseguirão. Somente através de uma articulação ou uma interação operacional e institucional democrática, um verdadeiro modelo de coalizão, é que conseguiremos sair do discurso à prática, com mudança das realidades sociais. O Promotor de Justiça não faz saúde pública pelo viés solitário da sua caneta ou pela judicialização unitária, sem reflexão. É preciso esse intercâmbio, é necessário o “empoderamento” de informações técnicas, com as quais os gestores precisam municiar a sociedade como um todo, a partir da transparência, do acesso às informações, hoje traduzido na Lei Federal nº 12.527. A partir do “empoderamento” de informações, todos nós qualificamos o processo decisório com uma melhor decisão refletida, sobretudo uma decisão solidária.

Ficamos muito felizes com essa nossa atuação na mediação, porque a SES, o Conselho Estadual de Saúde e o Colegiado de Secretários Municipais de Saúde já entenderam essa estratégia como uma nova ferramenta. Precisamos cada vez mais da inclusão de ferramentas que canalizem e otimizem uma atuação cada vez mais proativa. Para nossa sorte, apresentaremos esse modelo nacionalmente, no Conselho Nacional de Secretários de Saúde, no Ministério da Saúde, no Conselho Nacional de Saúde e até na Opas, que já se interessou pelo projeto como mais uma ferramenta do Estado Democrático de Direito.

O Ministério Público trabalha também, Sr. Presidente, com o Plano Nacional de Enfrentamento do Crack, iniciado quando da nossa Presidência no Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União e junto ao Grupo Nacional de Direitos Humanos. Recentemente, assim como Minas Gerais e todos os Estados da Federação, o Ministério Público instituiu o seu Comitê de Enfrentamento das Drogas, com ênfase no “crack”, numa perspectiva de transversalidade, que eu gostaria de ressaltar. Não se combate o “crack”, não se combatem as drogas pelo viés exclusivo da segurança pública ou da Justiça Criminal, mas também pela transversalidade com a área da saúde, da educação, da promoção de políticas públicas que sejam cada vez mais abrangentes. Vimos isso ontem na palestra da Juíza americana.

Entrando propriamente no tema do nosso ciclo de debates, ombreio com a fala da Dra. Valéria. A justiça terapêutica é um modelo penal no qual o consumidor de drogas ilegais escolhe entre receber a pena e receber um tratamento de saúde. Aí vem o primeiro desafio, já que o nosso ciclo de debates se refere-se a desafios. Com todo o respeito aos profissionais presentes do Conselho Regional de Psicologia, do Conselho Regional de Psiquiatria, explanarei o meu entendimento a seguir.

Saímos de um modelo absolutamente extremado, que já não era mais legítimo numa sociedade de Estado Democrático de Direito, que tinha uma política “hospitalocêntrica”, para um modelo também extremado, absolutamente aberto em ambientes ambulatoriais. Sempre penso que o equilíbrio é a melhor proposta. Por que digo extremado? Porque, ao sairmos para um modelo com ideologia, com muita mágoa - permitam-me a franqueza - hoje passamos para instâncias que disputam entre si, não buscam uma convergência, quando, na perspectiva da saúde mental, todos os modelos são importantes porque a abordagem deve ser singular, caso a caso. Não há um modelo pronto em saúde mental; não há um modelo que possamos estabelecer como padrão para o enfrentamento desse cenário caótico; há modelos e todos eles são importantes. Não podemos prescindir de nenhum, em determinados casos. Ainda que seja a primeira opção, há a internação compulsória sim, porque vamos encontrar situações com grau tão grande de comprometimento da saúde psíquica e emocional daquele usuário que a internação compulsória para desintoxicação é a melhor resposta terapêutica para aquele momento, sem abrir mão, pela singularidade, de que também o Caps, como proposta, seja a porta de entrada desse sistema da atenção básica, seja o modelo hoje instituído pelo Ministério. O que não podemos permitir é que, nessa briga de ideologia entre o melhor modelo, possamos prejudicar a caminhada da assistência à saúde com foco no usuário.

É importante resgatarmos algumas reflexões. Saímos de uma ruptura, em vez de uma transição, para um novo modelo e esquecemos de nos aparelhar com a logística necessária, com os pontos de atenção e equipamentos de saúde necessários para esse acolhimento. Hoje, o Brasil conta com uma população de 193.976.530 habitantes, com 5.570 Municípios, mas possui tão somente 1.334 Caps. Minas Gerais, com uma população de 19.855.332 habitantes e 853 Municípios, conta somente com 148 Caps. Aqui vem a primeira reflexão: como podemos pensar numa justiça terapêutica? Eu, particularmente, comungo com a justiça terapêutica em muitos casos, por isso entendo que ela, no mesmo viés da internação compulsória, é a resolução, em razão da singularidade de muitos quadros clínicos que se apresentam ao Judiciário. É a justiça terapêutica, ou seja, a autodeterminação já não existe em razão do paciente ou do usuário que eventualmente praticou um ato ilícito pelo consumo cada vez maior, durante todo o dia, de substâncias que entorpecem a sua autodeterminação. E daí - permitam-me os colegas do conselho - exigir dele uma voluntariedade à adesão ao tratamento parece-me desproposital. Por isso digo que há casos e casos, e todas as ferramentas são bem-vindas. O que deve ser feito é essa abordagem terapêutica multidisciplinar para avaliação de que ferramenta ou de que estratégia deve ser utilizada à singularidade de um projeto terapêutico, que não pode ser global, e sim individualizado.

É bom lembrar que o modelo de saúde no Brasil é um direito, antes do dever do Estado; um direito dos cidadãos em razão de um Estado Democrático de Direito. Então, a saúde é antes um direito, para depois constituir-se um dever do Estado.

Vou fazer um corte na minha fala porque faltam apenas 5 minutos. Quero elogiar, porque também precisamos elogiar: muitos desconhecem a política estadual relativa à atenção psicossocial de Minas Gerais, instituída pela Resolução nº 3.206, de 2011. Hoje já foi feito todo um recorte dentro da epidemiologia, discriminando-se todos os equipamentos de saúde, do mais simples ao mais complexo, numa lógica de rede. E precisamos trabalhar numa lógica de rede. Essa política é muito interessante. Devemos e podemos, por ocasião dessas caravanas, por ocasião desse fazer fazer, discutir com os Municípios, mas não numa lógica solitária dos Municípios.

Permita-me, Sr. Presidente, dizer que já se foi o tempo em que o Município achava que, por meio do seu gestor e em sua base territorial, estava fazendo saúde pública. Estava enganado. Saúde pública transcende as fronteiras do território municipal, de modo que, sendo os recursos finitos, devemos otimizá-los. De que forma? Fortalecendo os Municípios que são referência em cada uma das regiões. E temos encontrado por aí Municípios que têm Caps mas não têm escala, que não têm aquela demanda própria para um Centro de Atenção Psicossocial. Por quê? Porque, infelizmente, o viés de se fazer saúde - falo genericamente em termos de Brasil - ainda está sendo feito pelo viés político, e não pelo viés sanitário, que é buscar recursos para o seu Município de acordo com a afinidade partidária ou com a afinidade com o gestor nacional. E isso não é fazer saúde; isso fragmenta as redes de atenção à saúde; isso não fortalece a diretriz constitucional do SUS, que é a descentralização em uma perspectiva regionalizada. Pouco importa para o usuário se vai ser atendido em sua base territorial ou em uma base territorial contígua, porque o que ele quer é tempo e modo, é a garantia de acesso à assistência à saúde.

Quero encerrar - faltam poucos minutos - fazendo uma leitura a que não deveriam deixar de ter acesso. O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas - Lenad -, sobre o uso de cocaína e “crack” no Brasil, realizado em setembro de 2012 pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas - Inpad -, da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp -, mostra que quase 6 milhões de brasileiros, 4% da população adulta, já experimentaram alguma apresentação de cocaína na vida. Esse índice foi de 3% entre adolescentes, representando 442 mil jovens. No ano de 2011, a prevalência de uso dessa droga atingiu 2,6 milhões de adultos e 244 mil adolescentes. O Brasil é o 2º maior mercado de cocaína do mundo, quando se trata de número absoluto de usuários; representa 20% do consumo mundial e é o maior mercado de “crack” do mundo. Aproximadamente 2 milhões de brasileiros já usaram cocaína fumada - “crack”, merla e oxi - pelo menos uma vez na vida, o que representa 1,4% dos adultos e 1% dos jovens. Um em cada 100 adultos usou “crack” no último ano, representando 1 milhão de pessoas. O uso de cocaína fumada na adolescência foi mais baixo, 1% para uso na vida, 150 mil jovens, e 0,2% de uso no último ano, cerca de 18 mil pessoas.

Vejam só esse dado: cerca de 2 milhões de pessoas usam maconha e alguma forma de cocaína concomitantemente. Agora vejam que dado interessante para quem pensa em descriminalizar o uso das drogas mais leves: 70% dos usuários de cocaína também usaram maconha no último ano. Quase a metade de todos os usuários - 45% - experimentaram cocaína pela primeira vez antes dos 18 anos. Quarenta e um por cento dos que fazem uso de maconha experimentaram a cocaína também no último ano. E, segundo a OMS, o uso de cocaína está diminuindo gradativamente nos países mais desenvolvidos, todavia essa redução não ocorre em países emergentes, onde o consumo mostra uma tendência de aumento, como no Brasil.

Queria dizer - e não perderei esta oportunidade, Pastor Wellington - que tudo começa lá atrás. Há grandes estatísticas e estudos demonstrando que a saúde mental e as complicações começam na fase da infância e da adolescência. Arrematarei minha fala dizendo que a “Bíblia”, em Provérbios 22:6, ensina-nos: “Educa a criança no caminho em que deve andar, e até quando envelhecer não se desviará dele”. Muito obrigado.