FÁBIO WANDERLEY REIS, Cientista Político. Professor Emérito da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
Discurso
Comenta o tema: "JK e os Anos 50".
Reunião
210ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 12/10/2002
Página 35, Coluna 1
Evento Ciclo de debates: "Os Anos JK".
Assunto CALENDÁRIO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Cleonice Duarte, Adriano Silva.
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 12/10/2002
Página 35, Coluna 1
Evento Ciclo de debates: "Os Anos JK".
Assunto CALENDÁRIO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Cleonice Duarte, Adriano Silva.
210ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª
LEGISLATURA, EM 4/9/2002
Palavras do Fábio Wanderley Reis
Senhor coordenador, meus companheiros de Mesa, meus amigos, é um
prazer participar dessa homenagem a Juscelino Kubitschek. A
oportunidade de falar sobre JK e a década de 50, que é o título
proposto para esta sessão, traz, em primeiro lugar, algumas
memórias, algumas lembranças pessoais. Lembro-me, quando jovem,
morando em Belo Horizonte, de Juscelino Governador - o binômio
energia-transporte - , e nos divertíamos com a sátira do jornal
“Binômio”, criado sob a inspiração do Governo Juscelino e
destinado a criticá-lo, com o subtítulo que aludia a energia e
transporte que era “sombra e água fresca”.
Depois, alguns anos mais tarde - eu era ainda adolescente e
morava em Copacabana, no Rio de Janeiro -, quando se dava a
campanha de Juscelino para Presidente da República, mantive uma
discussão com um tio, lacerdista ferrenho, hostil à candidatura de
Juscelino Kubitschek.
Em seguida, vivemos a Novembrada, a movimentação político-militar
de novembro de 1955, que tentava impedir a posse de Juscelino. Na
época, eu era vizinho de Café Filho, o Vice-Presidente de Getúlio,
que tinha assumido o Governo após o suicídio de Getúlio e que foi
o foco dos acontecimentos da época. Assisti de perto, quase que no
centro do palco, aos acontecimentos, vendo Café Filho na janela, o
prédio cercado por forças militares. Aquela época ficou marcada
por eventos turbulentos, aliás tendo o rótulo apresentado pelo
movimento que assegurou a posse de Juscelino Kubitschek, liderado
pelo Marechal Lott e que significava “retorno aos quadros
constitucionais vigentes”, sido objeto de ironia por parte dos
lacerdistas. Se se trata de quadros vigentes, como falar de
retorno?!... Era um pouco da atmosfera turbulenta da época. Esse é
o ponto crucial para se situar o Governo do período de Juscelino
com a alusão direta à década de 50, que está no título desta
reunião. Era um país que se desenvolvia e se transformava dos
pontos de vista estrutural, ocupacional, ecológico, com o processo
de industrialização, de urbanização, com a concentração de
populações crescentes nas cidades, o populismo e a presença
marcante dos militares num período que talvez possa ser
identificado com todo o período republicano. Na verdade, se
tomarmos especificamente o período de Juscelino Kubitschek na
Presidência da República, vemos que ele se situa entre dois
períodos de controle autoritário do processo político brasileiro
de maior importância na história do País, no século XX, que são,
por um lado, o Estado Novo, que se fechara dez anos antes da
eleição de Juscelino, e, por outro, 1964, quando tínhamos o regime
ditatorial militar, que se implanta em quatro ou cinco anos, em
seguida ao término do mandato de Juscelino.
Se fecharmos o foco e virmos os acontecimentos em termos mais
estreitos, é notável e merece ser assinalado com força o fato de
que o Governo de Juscelino se situa entre o suicídio de um
Presidente no exercício do cargo, Getúlio Vargas, que se mata em
1954, um ano antes da eleição de Juscelino, e a renúncia
traumática de outro Presidente, Jânio Quadros, que ocorre em 1961,
com conseqüências dramáticas para o quadro político do País,
desaguando em turbulência no impedimento da posse de João Goulart,
ameaça de guerra civil, acomodada com o parlamentarismo que se
cria, mas que não impede, alguns anos depois, em 1964, a
implantação de um período de 21 anos de autoritarismo, que marca
profundamente, até hoje, o processo político brasileiro, pelas
conseqüências decorrentes, por exemplo, da impossibilidade de
recrutamento de novas elites, novos quadros, etc.
Além disso, temos, no plano internacional, um período de
extraordinária turbulência. Em 1954, ano do suicídio de Getúlio
Vargas, houve, na Guatemala, deposição de armas contra um
Presidente que se empenhou em um processo de reformas,
desapropriando propriedades privadas fundiárias, incluindo
propriedades norte-americanas, o qual resultou na intervenção dos
Estados Unidos, apoiando o golpe. Em 1957, temos o lançamento do
Sputnik, marcando a afirmação da União Soviética como potência
tecnológica e trazendo implicações nítidas ao quadro de
enfrentamento com os Estados Unidos, pelos desdobramentos
militares envolvidos. E, em 1959, a Revolução Cubana, que foi, sem
dúvida, o caso mais intenso e dramático de enfrentamento
relacionado com a Guerra Fria, na América Latina. As experiências
posteriores, ocorridas em 1961 e 1964, principalmente, estão
fortemente condicionadas à experiência cubana, e culminaram no
desdobramento da crise dos mísseis, em 1962, quando o mundo esteve
à beira do enfrentamento nuclear aberto.
Esse quadro turbulento, instável e dramático nos ajuda a perceber
a importância de Getúlio Vargas e do fato específico de que ele
pôde não só governar o País com êxito extraordinário, do ponto de
vista instrumental, da administração realizada, do esforço
envidado, como também pôde assegurar um grau inédito de
estabilidade democrática, apesar das manifestações militares.
Juscelino passou a faixa ao seu sucessor em circunstâncias em que
havia um forte reclamo por sua recandidatura em 1965. Parte
importante do que ocorreu durante o período de JK na Presidência
se relaciona com a sua habilidade em colocar na prática o que
alguns analistas têm chamado de “consociativismo”, isto é, o
empenho de atender, de alguma forma, à multiplicidade de
interesses, apesar do quadro de tensões. Nessa experiência, que
talvez tenha atingido o seu auge exatamente no Governo Kubitschek,
o Estado, por meio do controle dos instrumentos de câmbio, por
intermédio de instituições como o Banco do Brasil, compõe um jogo
no qual é possível atender a uma multiplicidade de diferentes
interesses que figuram nos panoramas político, social e econômico
do País.
Há, naturalmente, um esforço intenso de desenvolvimento, que
permite atender, apesar do recurso intenso a capitais externos,
aos interesses do empresariado nacional e aos interesses
trabalhistas. Ao mesmo tempo, há a acomodação feita, sobretudo,
por meio de negociações no âmbito do Legislativo, do Congresso
Nacional, e dos setores tradicionais, como a oligarquia de bases
agrárias. E é notável que não haja nenhum esforço conseqüente
nessa área. Lembro-me de um texto do Celso Furtado, de 1965,
analisando o golpe de 1964, no qual registra o fato de haver nas
gavetas das Comissões do Congresso Nacional 200 projetos de
reforma agrária.
Portanto, as circunstâncias econômicas e políticas, apesar da
tensão e dos fatores de instabilidade, permitiram a obtenção de um
desenvolvimento intenso e a realização de um jogo no qual se
tornava possível a convergência de uma multiplicidade de
interesses, os quais, em muitos casos, eram, naturalmente,
contrastantes e antagônicos, sobretudo em 1964.
Vale mencionar, em coerência com essa idéia de esforço
consociativo, o nacionalismo brasileiro, especialmente durante o
Governo de Juscelino Kubitschek, com a criação do Instituto
Superior do Estudo Brasileiro - ISEB -, no Rio de Janeiro, cujos
postulados eram claramente convergentes com essa prática de
administração de natureza consociativa.
As análises de Hélio Jaguaribe, por exemplo, provavelmente o nome
mais destacado do ISEB, chamavam a atenção para o que teríamos no
Brasil do período de 1950. Teríamos a feliz convergência entre
dois atributos das ideologias de classe: a representatividade e a
autenticidade. A representatividade das ideologias de classe
corresponderiam ao grau em que elas se ajustariam aos interesses
da própria classe como tal.
Por outro lado, a autenticidade tem que ver com a idéia de uma
correspondência das ideologias com os interesses da comunidade
nacional. Hélio Jaguaribe acreditava que os interesses relativos à
autenticidade se davam naturalmente em torno da idéia do
desenvolvimento econômico. A convergência que ele via entre esses
atributos envolvia a idéia de que, para cada classe, a melhor
maneira de defender seus próprios interesses seria defender o
desenvolvimento nacional. Daí, tornar-se possível a convergência
entre patrões e empregados, empresários e trabalhadores, em torno
de uma dinâmica nacional que assumiu a forma do nacional (...),
que imperou por muito tempo e que talvez tenha tido no período
presidencial de Juscelino Kubistchek a manifestação mais nítida.
Surge naturalmente a questão sobre até qual ponto seria possível
levar esse esforço de acomodação consociativa das tensões. A
resposta é muito restritiva. A possibilidade era limitada.
Tínhamos enfrentamentos latentes, que assumiam a cara do fenômeno
do “pretorianismo”. Numa circunstância em que não há a adequada
acomodação política institucional do enfrentamento de interesses,
cada conjunto de interesses é induzido a trazer à arena política
os instrumentos à disposição. Os militares que controlam
instrumentos muito peculiares, instrumentos de coerção física,
desfrutam inevitavelmente um protagonismo importante.
Temos, então, um longo período republicano marcado pela oscilação
entre a Presidência ostensiva dos militares e o controle direto do
poder político pelos militares. Por um lado há um certo refluxo em
que os militares deixam o proscênio, mas em que o risco de que
voltem a afirmar a sua presença e a controlar diretamente o poder
está sempre latentemente se manifestando, mesmo nos períodos de
maior estabilidade. É isso que ocorre durante o Governo Juscelino
Kubistchek, apesar da proeza de assegurar a estabilidade numa fase
marcada por tanta turbulência, incluindo o suicídio de um
Presidente e a renúncia de outro.
Temos manifestações como o episódio de Jacareacanga, no começo do
Governo, e o Aragarça, em 1959, etc. Os militares tentam levar a
cabo aquilo que tinha sido abortado na Novembrada de 1955, que era
impedir a continuação do Governo Juscelino Kubistchek. Temos em
1964 a ruptura, e fica a indagação que me parece oportuna numa
ocasião como esta.
Provavelmente, a grande questão que se situa e que é relevante
numa avaliação retrospectiva do Governo Juscelino Kubistchek, com
tudo que teve de positivo, com todas as aportações e
contribuições, é o fato de que temos a sobrevivência de nosso
famoso esforço social. Nossa pesada herança escravista que se
continua a afirmar, apesar de todos os êxitos do processo de
desenvolvimento do País que Juscelino Kubistchek exemplifica, mas
que tão longe quis se limitar ao período de Juscelino Kubistchek.
O Brasil é o país que mais cresceu em todo o mundo. No entanto, o
resultado é essa sociedade desigual. É importante assinalar que a
aceleração do processo de desenvolvimento subsiste em
circunstâncias em que não há a assimilação adequada da grande
massa popular, que continua, em parcelas importantes, à margem
desse processo. Produzem-se conseqüências que são cada vez mais
dramáticas.
A forma marxista da turbulência que se manifestava durante o
período da Guerra Fria, durante o período da ameaça socialista,
tem suavizado algo que podemos ver como um problema de
ingovernabilidade de características hobbesianas, numa alusão a
Tomas Hobbes, pensador que se preocupava com o problema da ordem
pública, da segurança, etc. Temos a intensificação da
criminalidade, da violência e da insegurança, em circunstâncias em
que o próprio Estado, em muitos casos, não se pode fazer presente
de maneira adequada. A favela do Rio de Janeiro, da qual o Estado
não se aproxima, é um exemplo. Estão tentando sobrevoá-la com um
dirigível, que, supostamente, está fazendo a vigilância. É
oportuno assinalar, numa ocasião festiva como esta, em que, com
boas razões, celebramos o centenário de Juscelino Kubitschek, o
fato de que uma dimensão crucialmente importante da vida nacional
continua a manifestar traços absolutamente negativos, e o futuro
que vislumbramos, de imediato, é também negativo, sem dúvida, é
sombrio.
Vou terminar minha breve fala com uma ponderação relacionada com
a distinção que os cientistas políticos costumam fazer entre as
lideranças de tipo instrumental e as de tipo expressivo, ou a
dimensão instrumental “versus” a dimensão expressiva da liderança.
A dimensão instrumental está relacionada com a capacidade
administrativa que o governante manifesta; a dimensão cognitiva,
com o problema de eficácia; a dimensão expressiva tem que ver com
a força simbólica que essa liderança exerce.
Em muitos Estados temos a tentativa de separação entre esses dois
aspectos da liderança, com a separação entre o Chefe de Governo,
de um lado, encarregado dos aspectos instrumentais de eficácia da
administração do País, e o Chefe de Estado, que teria mais a
função simbólica de representação da Nação. Acabamos de ver, no
Governo Fernando Henrique Cardoso, uma articulação inepta dessas
duas dimensões. O esforço de administração tem seus lados
positivos, seus acertos - como a estabilização -, certo esforço na
area da educação, da saúde, certas tentativas relativamente bem-
sucedidas de reforma do Estado, sob aquele aspecto, mas temos algo
muito importante, que marca um contraste nítido com Juscelino
Kubitschek, que é a abdicação com respeito à dimensão simbólica.
O Governo Fernando Henrique prometeu a refundação política do
País na sua primeira campanha, mas o que vimos foi uma acomodação,
ágil, às exigências supostamente trazidas pela necessidade da
administração efetiva do País. Em todas as circunstâncias em que
se colocou a opção entre uma postura de exemplaridade e uma
realista, de jogar com realismo o jogo político, vimos Fernando
Henrique, apesar da promessa de refundação política, fazer o jogo
realista e comprometer o esforço de refundação.
Essa posição representa um contraste nítido em relação a
Juscelino, que foi, sem dúvida, extremamente bem-sucedido como
liderança instrumental. Temos o esforço, registrado aqui, de
crescimento econômico, com a implantação da indústria de base, a
indústria automobilística, Brasília e suas implicações, apesar de
seus custos e da inflação. Temos até quem associe a Copa do Mundo
de 1958, como vimos. Seria uma espécie de meta recôndita, parte
integrante do Plano de Metas de Kubitschek.
De qualquer maneira, independentemente do que se passa aqui - e
se passa muito -, temos também a dimensão simbólica adquirida por
Juscelino. É notável como a grandeza simbólica que Juscelino
adquire se dê em associação com uma imagem que é leve. A imagem
sobre a qual se tem falado é a do “peixe vivo”, do seresteiro, do
pé-de-valsa, do Presidente bossa-nova. A questão que fica é até
que ponto um fato se liga, efetivamente, ao outro. Até que ponto
uma certa componente de leveza seria, eventualmente, condição para
que pudéssemos ter a afirmação mais consistente dessa dimensão
simbólica.
Fica, de toda forma, o fato de que temos, no plano
especificamente político, a operação bem-sucedida da democracia
com Juscelino Kubitschek, apesar das turbulências, apesar de o
processo ser marcado por grande instabilidade, e o fato de que ele
pode vir a representar uma referência importante quando se trata
da democracia brasileira, e que seja, ainda agora, por exemplo,
reivindicado com força por candidatos à Presidência da República,
num esforço de fazerem a sua campanha. Muito obrigado.