Pronunciamentos

ELISALDO LUIZ DE ARAÚJO CARLINI, Professor emérito da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp. Membro do Painel Consultivo de Especialistas em Dependência de Drogas e Problemas com Álcool da Organização Mundial de Saúde - OMS

Discurso

Comenta o tema "Disponibilização e impacto sobre a saúde”, dentro da Mesa 1: "A descriminalização das drogas sob a ótica da saúde".
Reunião 35ª reunião ESPECIAL
Legislatura 18ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/01/2018
Página 28, Coluna 1
Evento Encontro Internacional Descriminalização das Drogas
Assunto DROGA. SAÚDE PÚBLICA. SEGURANÇA PÚBLICA.
Observação No decorrer do pronunciamento, procede-se à exibição de "slides".
Proposições citadas RQC 9301 de 2017

35ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 18ª LEGISLATURA, EM 17/11/2017

Palavras do Sr. Elisaldo Luiz de Araújo Carlini



Bom dia. Inicialmente quero agradecer, e muito, a gentileza do convite. Tenho a honra de ter sido convidado para falar numa Casa tão importante, que é a Casa do povo. Isso para mim tem muito significado.

Preparei uma palestra baseado no título “Maconha pela ótica da saúde”. Vou falar sobre a maconha na saúde.

Pode passar o primeiro slide, por favor. Esse é um slide cujo autor é o imperador chinês Shen Nung, que há 3.000 a.C. já usava a maconha como medicamento para tratar as dores. Ele fazia isso associado ao álcool. Ele nos deixou a mensagem de que a maconha, além de ser um analgésico, também tem o bom efeito de liberar as pessoas do pecado – liberator of sin – e, ao mesmo tempo, dava muito prazer às pessoas. Isso aconteceu há 5 mil anos.

O próximo, slide, por favor. Como podemos interpretar isso? Li essa notícia pela primeira vez, apesar de que americano não sabe chinês, e eu também não sei, por isso não tenho como confirmar essa verdade. Até 2007, eu era membro eleito pela comunidade internacional do International Narcotics Control Board – INCB –, da ONU, em que 13 cientistas do mundo discutiriam alguns problemas. Entre nós estava também o Prof. Wang, um chinês, que me explicou a tradução em inglês. Então, na realidade, para uma coisa de 5 mil anos, existem duas possibilidades para a maconha, e a primeira é que ela minimiza os pecados, ou seja, podemos fazer o que bem entendermos que não vamos sentir muita culpa, já que a responsabilidade não aparece. Esse seria um dos efeitos da maconha, a liberação total, a perda da moral e dos bons costumes. Essa é a visão de 5 mil anos atrás e que foi transmitida durante muito tempo para muitos países, também para o Brasil. A maconha era a erva do diabo, do tinhoso; contudo, uma segunda opinião começou a crescer cada vez mais e aparece ali em vermelho: alivia os nossos sentimentos de culpa em geral. Então, podemos dizer que é a perda da consciência pelo não cumprimento de nossos deveres. Vou dar um exemplo característico: se uma pessoa mais jovem vai atravessar a rua, vê uma idosa com dificuldade para atravessá-la, e não dá atenção a ela, mostra uma falha de comportamento porque o jovem tem obrigação moral de ajudá-la. Eu também tenho obrigação moral de atender a pessoas com certa deficiência. Então, será que eu posso agir desse modo só porque estou sob o efeito da ação da maconha e não percebo como estou agindo? Posso entrar em casa, tarde, chutar o cachorro, bater na porta e brigar com a mulher, num estado de fúria, por causa de um tremendo estresse de trabalho? Isso também é outra coisa que faz parte do rol da minimização dos pecados. Na verdade, existem muitas coisas que, sob o efeito da maconha, são minoradas, o que é agradável ao ser humano, ninguém pode negar. Todos acham que esse é um bom sinal da maconha.

O segundo ponto é que a maconha melhora a qualidade de vida como forma de medicamento. Agora, de 5 mil anos atrás, salto para a primeira literatura em português a respeito da maconha. Isso aconteceu em 1563. Trata-se de um diálogo entre duas pessoas que estavam numa antiga possessão portuguesa. O diálogo aconteceu entre o Ruano e o Orta. Vou ler para vocês (– Lê:) “Ruano – Pois assim é, dizei-me como se faz esse bangue” – que é o outro nome da maconha – “e a que leva?”. E o Orta responde: “Faz-se do pó dessas folhas pisadas e, às vezes, da semente que embebeda e faz ficar fora de si”. E a discussão continua. O que se tira disso é o fato de estar fora de si, enlevados, sem nenhum cuidado, “prazimenteiros” e alguns a rir um riso pardo. Aliás, muitas mulheres, “choquareiras” e graciosas, iam ver alguns homens que as tomavam. Isso é coisa de 500 anos atrás, e aqui não tem nenhuma coisa da maldita maconha, mas sim de divertimento.

O próximo slide, por favor. Logo em seguida, a pessoa começava a sentir prazer por isso. Está escrito aqui. (– Lê:) “E o que se conta é que os grandes capitães costumavam se embebedar com esse bangue para esquecerem seus trabalhos e poderem dormir. E o grande sultão Badur já falava sobre isso com Martim Affonso de Sousa” – que, em 1560, já chefiava a Capitania de São Vicente. Ele conversava com Martim, “a quem um grande bem queria, e descobriu seus segredos”. Ele dizia que “de noite, quando queria ir a Portugal, ao Brasil, à Turquia, à Arábia e à Pérsia, não fazia mais que comer um pouco de bangue”. Esse é um exemplo típico de boa viagem.

Próximo, por favor. Finalmente também está descrito, em 1560, a primeira versão existente da maconha em português. Vamos falar da má viagem. Ruano diz: (– Lê:) “Eu vi um português ‘choquareiro’” – ‘choquareiro’ deve significar comprar mulheres com ‘choquareira’ – “que comeu uma talhada ou duas desse ‘letuario’, e, de noite, esteve bêbado, gracioso nas falas em extremo e também no testamento que fazia. Porém era triste no chorar e nas mágoas que dizia. Mostrava ter tristeza e grande enjoamento e provocava risos nas pessoas que o viam ou ouviam, como faz um bêbado saudoso”. Dizem que é a vontade de comer, a famosa larica. Isso foi a 1.500 anos.

Vamos ao próximo slide. A seguir vemos algumas conversas da Europa sobre algumas coisas. Tenho muita dificuldade de falar porque me mexo muito. Os senhores me desculpem por isso. Sou neto de italiano e agito as mãos o tempo todo. Mas vamos lá. Um médico inglês, em 1.840, escreveu um trabalho bastante interessante, que ganhou a literatura internacional. Ele chamou a atenção na Índia. Era um médico do exército inglês, que dominava a Índia. O que ele falou está resumido aqui. Os seus achados mais claros diziam que a maconha aliviava a dor e agia como relaxante muscular. Isso foi escrito por um inglês, por um médico do exército, e agora vai completar 200 anos. Podemos dizer que é a mais absoluta verdade hoje em dia.

Próximo, por favor. Nos Estados Unidos, um médico que era professor de medicina escreveu um livro sobre a maconha, e ele disse que a cannabis é muito valiosa para o alívio da dor, particularmente no que diz respeito às perturbações nervosas, o que é aceito hoje em dia. Ninguém mais pode negar isso, e o efeito não é tão fraco, mas tudo vai depender do tipo de dores. Para uma dor de cólica, por exemplo, o efeito não é muito ativo, assim como para uma dor de dente. Agora, para uma dor oriunda de distúrbios nervosos, como esclerose múltipla e várias outras doenças, a maconha é bastante ativa, tanto é que está registrada como medicamento em muitos países. Isso foi escrito em 1892.

O próximo slide, por favor. Outro relato também importante, que ganhou a literatura diz que a maconha é outro remédio que talvez se tornará, se já não se tornou, uma das maiores divindades em neurologia. Por divindade, deve-se entender uma coisa fantástica e que tem um bom efeito. Quem disse isso foi o tal de Beards, em seu livro. Segundo ele, isso vale para determinados tipos de dores, para dores de origem miopáticas e neuropáticas.

O próximo. Esse é o médico da rainha Vitória, em 1890: “Em quase todas as doenças, a maconha, de longe, é o mais útil de todos os medicamentos”.

O próximo, por favor. Na verdade, isso mostra que, já no século XIX, a maconha era muito considerada; era um dos mais importantes medicamentos. Nos séculos XX e XXI deve ter acontecido alguma coisa para a diabolização da maconha, já que ela foi transformada no medicamento do diabo.

Esses são termos da literatura científica, e temos de entender o porquê disso. No passado, o Brasil esteve muito envolvido no comércio de maconha. Este é um trecho de uma carta: “aos 4/8/1785, o vice-rei de Portugal enviava carta ao capitão-general e governador da Capitania de São Paulo, recomendando o plantio de cânhamo” – outro nome da maconha – “por ser de interesse da metrópole”. Quer dizer, a Coroa portuguesa, ou seja, Portugal, tinha interesse na maconha e já remetia para o Brasil 16 sacas com 39 alqueires de sementes de maconha. Naquela época, a maconha era um dos mais importantes produtos comerciais, em razão da qualidade dos fios. Ela dava uma fibra extremamente resistente. As velas portuguesas, por exemplo, dos navios portugueses, eram feitas todas de maconha. A cordoaria dos navios também era feita de maconha.

Entrando no século XX, a coisa começou a piorar. A frase oficial que tenho, que copiei do Relatório Anual de Narcóticos, de 1944, do governo egípcio, é: “Cannabis é uma droga totalmente viciante, merecendo o ódio dos povos civilizados”. Para o Egito dizer um negócio como esse, alguma coisa muito estranha estava acontecendo. O governo de um país fazer um pronunciamento tão rigoroso, tão pesado como esse?

Vamos continuar avançando para o próximo slide. O representante brasileiro, oficial do governo, com mais 41 países, esteve na Liga das Nações, que é a precursora das Nações Unidas. Em 1926, esse representante participou, com 41 indicados de outros países, de uma discussão sobre ópio, porque o ópio estava sendo um grande problema no mundo, à época. A partir do ópio, sai a morfina, sai a heroína, etc. Na verdade, esse representante brasileiro – ninguém sabe por quê – era um psiquiatra. O pronunciamento está registrado em ata. Pode-se ir até Genebra, procurar e ver: “Eu, representante brasileiro, Dr. Pernambuco” – o nome dele era Pernambuco, mesmo, – “descreveu a maconha como mais perigosa que o ópio”, o que não é verdade, de jeito nenhum, sabemos disso. Está até a página editada. “Novamente não houve desafio para essas” – statements – “declarações, possivelmente porque ambos estavam falando em nome de países em que o uso do haxixe era endêmico. No Brasil, teve o nome de diamba.” Na realidade, a tese sobre a condenação da maconha começou a chegar na OMS, na Liga das Nações. Existiu um trabalho científico que comprovava isso? Não existiu. Faço questão de dizer isso com ênfase maior, porque quase todos os trabalhos, mesmo hoje, não são completos, são meio parciais.

Próximo slide. Como consequência disso, em 1961, a ONU colocou a maconha num documento oficial sobre drogas. A maconha foi colocada na Lista 1. Escreveu que maconha e seus derivados não tinham uso médico. Na Lista 4 dessa convenção da ONU, foi colocada a heroína, entre outras, como drogas especialmente perigosas. Portanto, não deviam ser usadas praticamente para nada. A ONU fez essa condenação total. Fiz parte do INCB, em dois mandatos. É interessante: é mais fácil mudar um trecho da Bíblia que um trecho dessa declaração. É tremendo! O Brasil já fez quatro tentativas, porque foi um brasileiro que mandou a informação de que a maconha era mais diabólica.

Próximo slide, por favor. Como o governo brasileiro assumiu isso, o que muito poucas pessoas comentam? Em 1958, publicaram um livro, grande até, que tem esta capa. Vocês podem ver o desenho de uma pessoa de cor, com o aspecto bem desagradável, como se esse fosse o problema aqui no Brasil. E só psiquiatras deram o seu pronunciamento naquela época; nenhum psicólogo, nenhum sociólogo, nada. Só coloquei aqui os títulos dos trabalhos que coletei: “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício da maconha”; “Sobre o vício da maconha”; “O cânhamo ou diamba e seu poder intoxicante”; “Os perigos sociais da maconha”; “Diambismo ou maconhismo: vício assassino” – um psiquiatra escrever isso? Para mim, é muito difícil ter tido coragem de fazer isso. Os outros artigos: “A ação tóxica da maconha produzida no Brasil” e, por fim, “Estudo dos distúrbios nervosos produzidos pela maconha”. Então a maconha ficou sendo aquela que tem parte com o tinhoso, com o demo, com o diabo; não era coisa boa. Isso foi o que a medicina contou para a população brasileira. Eu não estranho nada. Por exemplo, não estranho que órgãos públicos, baseados no conhecimento médico, tivessem tomado atitudes diferentes, de violência contra a maconha, ditadas pelo cunho de cientistas ou de médicos que deveriam conhecer muito bem o que falavam.

Próximo slide, por favor. Mas... o mundo mudou, menos o Brasil, por enquanto, que está mudando. Meu Deus!

Essa é uma publicação da American Medical Association, de 2009:Mesmo que a maconha tenha tendência”... Ah, eu tenho dificuldades. Não dá para tirar e colocar aqui, não? Não tenho a prática dos deputados. Então, “mesmo que a maconha tenha tendência a uso médico, isso não alivia ou não obscurece o seu potencial para uso médico”. E tem outros produtos. Então a AMA faz um grande elogio... Não estou berrando demais, não? Então vamos lá. Ela faz um grande elogio à maconha como medicamento. Nos Estados Unidos, o médico americano não aceita que se condene a maconha do jeito que está acontecendo.

O próximo slide, por favor. O Comitê do Ministério de Saúde de Israel, em 2010, recomendou: “A maconha medicinal deve ser incluída como uma das medicações oferecidas pelo programa nacional de saúde, e mais médicos devem ser autorizados a prescrevê-la”. Eles acham que 40 mil pacientes necessitariam dela. Por que surgiu isso em Israel? Sabemos que Israel e os tais muçulmanos têm uma luta fratricida maluca, que nunca consegui entender, o que traz um sofrimento inacreditável para os povos. Principalmente o povo de Israel, que é muito mais bem organizado que o muçulmano, se preocupa muito com isso. O que acabou acontecendo é que os jovens judeus – não sei dos jovens muçulmanos, mas devem passar pelas mesmas coisas –, terminando a prestação obrigatória do serviço militar, a participação na guerra durante um ano, voltavam para casa claramente com distúrbios psicológicos, como síndrome do medo e outras doenças. Assim, começaram a usar, por conta própria, cigarros de maconha. E a descrição dos relatórios dos médicos de Israel era favorável ao uso da maconha para esse fim – era muita a tensão, etc. Então o Ministério do Exército passou esses dados para o Ministério da Saúde, que aprovou o seu uso em 2010 – estamos em 2017.

Próximo slide, por favor. Este é um produto comercial da Holanda, que foi o primeiro país a plantá-la. O governo holandês, em seu próprio terreno, plantou maconha, coletou maconha, secou maconha e a vendeu desse jeito, em farmácias que tinham o mérito de prescrevê-la. Foi o primeiro uso oficial, acho, recomendado e incentivado pelo governo, o holandês. A farmácia só podia vender o remédio se houvesse receita de um médico. Então, o médico, por sua vez, receitava.

Próximo slide, por favor. Os Estados Unidos, sobre o qual todo mundo fala, fala, fala, tem um produto à base de maconha, o Marinol – não sei se é por causa de marijuana ou de “mareio” – que é indicado para várias coisas: melhora de apetite e náuseas e vômitos provocados pelo uso de anticancerosos. Eu vou dizer uma coisa: conheço alguns trabalhos que tentam negar isso e afirmo que são uma negativa realmente desprovida de boa qualidade técnica.

O que temos feito no Brasil é algo inacreditável. Contarei um fato. Há dois anos, fizemos um simpósio internacional em São Paulo, e falei: “Não queremos mais ouvir médico. Estou cansado. Sou médico e professor de medicina, mas acho que está havendo um desvio na informação. Vou chamar o povo que sofre com doença e está tomando maconha, o povo mesmo”. Procuramos portadores de câncer. Cinco diferentes pessoas nos foram indicadas. Um deles era um rapaz de vinte e poucos anos, que tinha câncer de testículo e foi obrigado a retirar o testículo. Passado o tempo, ele teve de fazer uma segunda cirurgia, porque o câncer tinha passado para o pâncreas. Na segunda vez, ele já estava muito prejudicado, porque houve metástase e disse que não aguentava tomar o anticancerígeno. É interessante, porque conversei com a mãe dele. Ela me disse que ele chegou a dizer para ela que preferia morrer, porque não aguentava as náuseas e o vômito que o remédio produzia; ele dizia que nada era pior que aquilo, porque não conseguia comer nada e afirmava que preferia morrer a continuar tomando esse medicamento. O irmão mais jovem desse rapaz simplesmente levou, para o irmão mais velho, maconha para que fumasse. Ele fumou, e a sua mãe fez um relato nesse simpósio – estando lá muita gente de fora, até do exterior – do que aconteceu. Chorando, ela disse que seu filho, que não comia há dois ou três dias, que estava decidido a não tomar o medicamento, chegou para ela e pediu que lhe preparasse uma canja de galinha. A mãe disse que preparou, chorando. Foi muito emocionante, foi uma descrição para quase 400 pessoas. Ela preparou, e o rapaz tomou tudo; vomitou depois, mas tomou tudo pela primeira vez. Enquanto isso, os Estados Unidos já têm, desde 1993, o produto sintético Marinol, extraído da cannabis, que melhora o apetite e reduz totalmente as náuseas e os vômitos no caso do uso de medicamentos contra câncer.

Quanto tempo ainda tenho? Está ótimo.

Próximo slide, por favor. E já existe canabidiol, canabisul e extratos em vários países. Por exemplo, no Canadá, há o Cesamet, há vinte e tantos anos. É um produto extraído da maconha, que é comercializado lá.

Próximo slide, por favor. Esta é a mais recente descoberta: da Inglaterra, o Sativex. O nome científico é cannabis sativa. É interessante, porque nesse produto, ao contrário do que a nossa ciência procura fazer, que é utilizar o princípio ativo do tetraidrocanabinol, trabalhar só com ele, se usa agora o extrato de duas maconhas diferentes.

Esse remédio, aprovado no Brasil com outro nome, está sendo um dos remédios mais utilizados. Não sei quando o governo vai lançá-lo, mas, para minha surpresa, o preço está acima de R$2.000,00. Então, entrando na fase comercial, não tenho dúvida de que cessa tudo o que a musa antiga canta. Vai gerar lucro, não é? E do mundo econômico e financeiro o Brasil entende.

Vou mostrar dois rápidos exemplos. A esclerose múltipla não ocorre em muita gente, mas é uma das doenças mais terríveis: deixa o indivíduo com muita espasticidade, dor ao se mover, dor noturna – para urinar à noite, é uma desgraça total. Bem, médicos do Canadá e dos Estados Unidos pesquisaram 53 pacientes americanos e 59 ingleses que usavam maconha por causa da doença que tinham, mas por conta própria. Nos Estados Unidos, várias ONGs estavam distribuindo a droga, apesar de a lei proibir – como está acontecendo agora no Brasil, e bem. Então, mediram a melhora do paciente em percentagem em relação aos sintomas, classificando em muita melhora e em pouca melhora. Assim, com relação à espasticidade ao deitar, foram 75,5% de muita melhora; com pouca melhora, mas com melhora, foram 20,9%. São quase 100% de melhora, a grande maioria de muita melhora; o restante, de pouca; e não houve piora. Com relação à dor muscular, foram 73,8% e 21,3%, de muita e pouca melhora, respectivamente; dor nas pernas, 75% e 17,3%; tremor, 53,5% e 37,2%. Esse trabalho foi publicado na Europa e mostra os efeitos da maconha.

Trago o exemplo de um paciente com esclerose múltipla, com todos os sintomas, que recebeu o princípio da maconha, o tetraidrocanabinol. Vemos aqui a medida feita: em primeiro lugar, vemos que a letra diminuiu ao escrever o seu nome, Gary; em seguida, faz um redemoinho péssimo antes de tomar a maconha e um bem melhor depois; por fim, ele tremia muito e, após tomar a maconha, é capaz de fazer um risco.

Então, não adianta mais falarmos que achamos isso ou aquilo, porque a população acredita, por teste próprio, e acho que temos de ceder a essa verdade. Também temos de aprender muito. Sou formado há 60 anos. Estudei na Escola Paulista de Medicina, uma boa escola no Brasil. Mas não é possível que se passaram 60 anos com o povo usando isso, e a escola sem nem sequer querer ouvi-lo. Acho que está na hora de o médico, principalmente psiquiatra, começar a pensar que diabo é isso de que o povo fala e de que falamos o contrário.

Em 2013, o FDA, americano, fez o último ensaio clínico com um produto que eles chamam de Epidiolex, que me parece que está aprovado nos Estados Unidos e que é o canabidiol – são 98% de canabidiol puro, com 2% de impurezas. Seguramente será lançado logo, se ainda não o foi. O interessante é que, quando se tentou lidar com o canabidiol aqui, fui chamado no Ministério da Saúde, onde me perguntaram a percentagem de delta-9-THC na mistura. Quando respondi que era de 2%, disseram: “Então, não pode. No Brasil, não entra um veneno desses”. Essa foi a declaração dos médicos, ou melhor, dos membros da Anvisa. Eles queriam 0% de impureza ou 100% de canabidiol puro, o que é quase impossível de conseguir em química – sempre há restos de impureza.

Vemos aqui vários trabalhos com o canabidiol feitos pelo meu grupo. Fomos os primeiros. Então, na escolinha paulista de medicina, com os ratinhos criados lá e os mediquinhos de lá – o Carlini, neto de italiano, o Karniol, neto de judeu, e outros –, fomos capazes de fazer e publicar um trabalho mostrando que o canabidiol não é tóxico em animais e outro mostrando que ele é ativo também no ser humano. Tínhamos certeza disso. Esse trabalho foi publicado há 20 anos, também em quatro revistas do exterior, mas só foram ouvidos agora.

Pensei muito se mencionaria ou não esse caso ocorrido nos Estados Unidos, mas acho que deveríamos ao menos mencioná-lo, sem tentar fazer juízo de valor. Nos Estado Unidos, houve em 10 anos 13 milhões de detenções por posse de maconha. Em 2001, o número foi de 723 mil, ou seja, um negócio realmente muito grande. E no momento em que esse trabalho foi feito, 77 mil offenders ou transgressores estavam na prisão por posse de maconha. E agora vem esse dado que acho tenebroso e com o qual me entristeço: de acordo com a organização Stop Prisoner Rape, 290 mil homens são vitimados na prisão todos os anos, sendo 192 mil vítimas de penetração. E, ainda, as vítimas são majoritariamente jovens, de pequena estatura, não violentos, primários e de classe média. É preciso que esses dados saiam do ambiente universitário e ganhem nacionalidade. Temos de pensar se vamos permitir ou não isso aí. Se não vamos permitir, que se melhorem as prisões brasileiras. Por uma questão de humanidade, não podemos aceitar que se coloquem pessoas como vejo nas prisões de São Paulo.

E agora, no Brasil? Vejam como falou a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas – Abead –, em 2015, por meio da sua presidente: “Vemos a maconha sendo propagandeada e até que serve como remédio” e “Um médico só defende a legalização da maconha quando tem interesse por trás”. Não é para o presidente de uma associação brasileira falar coisas como essa. Mas ainda há pior, com vemos nessa fala do presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria: “Não existe maconha medicinal. O que existe é a possibilidade de sintetizar uma droga à base de maconha”.

E no mundo? Não vou falar tudo o que há no mundo, mas tenho trabalhos de milhares de pessoas, feitos nas melhores instituições, como na Johns Hopkins University e na Escola de Medicina do Colégio Real, das Nações Unidas. Esse último é um trabalho feito na Inglaterra, com cerca de 8 mil a 10 mil pacientes, acompanhados durante 8 ou 10 anos, em que se conclui que, no âmbito da população, não parece que o uso ilícito de droga é associado ao prejuízo da função cognitiva no início da meia-idade. Então, milhares de pessoas usaram a droga durante 8 ou 10 anos e não tiveram problemas com sua função cognitiva, como memória, atenção e raciocínio.

Aqui, dou um exemplo do que chamo de má propaganda, ainda que a favor da maconha, como também são más todas as que metem o pau na maconha. A Folha de S.Paulo, um jornal que se respeita, cita em uma notícia esse trabalho: “Na meia-idade, quem usou maconha tem cérebro até melhor”. Gente, quando meço a função cognitiva, às vezes dá 25%, mas uso milhares de pessoas, e o grupo que não usou tem 22% ou 23%. São valores muito próximos, mas estatisticamente significantes, porque são milhares de pessoas. Mas nesse caso, em que foram pesquisadas 9 mil pessoas, não podemos afirmar em um jornal que até o cérebro das pessoas fica melhor. Essa é uma má propaganda.

No século XIX, a maconha foi utilizada de maneira extremamente comum em toda a Europa. Era um medicamento muito receitado, como disse no início, por uma das principais divindades da neurologia. Esse Dr. Solomon Snyder, um professor de psiquiatria da Universidade da Califórnia, que morreu há pouco tempo, fez uma análise de todos os relatórios e documentos que existiam de 1800 a 1900, no século XIX, para ver o que escreviam os médicos da época. Ele concluiu que: “É marcante que tantos relatórios médicos falhem em mencionar qualquer propriedade intoxicante da droga. Raramente, se alguma vez aconteceu, houve alguma indicação de pacientes – e foram centenas de milhares que receberam cannabis da Europa no século XIX – que ficaram chapados ou mudaram sua atitude quanto ao trabalho, ao amor, ao seu semelhante ou a seu lar”. Considero essa declaração do Dr. Snyder muito importante, porque ele analisou documentos do século XIX, quando havia outra visão sobre a maconha. Então, passamos do uso muito aceito da maconha ao uso condenado no século XX – e algo que deveria ser discutido com mais seriedade é o aspecto econômico envolvido nessa condenação da maconha – e, finalmente, ao uso médico, retornando cada vez com mais força.

(– No decorrer de seu pronunciamento, procede-se à apresentação de slides.)