Pronunciamentos

ELI IOLA GURGEL ANDRADE, Professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.

Discurso

Discursa sobre o tema: "Diagnóstico da Seguridade Social no Brasil".
Reunião 2ª reunião ESPECIAL
Legislatura 15ª legislatura, 1ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/05/2003
Página 14, Coluna 2
Evento Fórum Técnico: A Reforma da Previdência Social.
Assunto PREVIDÊNCIA SOCIAL.
Observação Participantes dos debates: Lucius José Vieira, Luzia Ordália Braga.

2ª REUNIÃO ESPECIAL DA 1ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 15ª LEGISLATURA, EM 14/4/2003 Palavras da Sra. Eli Yola Gurgel Andrade (- A expositora procedeu à projeção de transparências em sua exposição.) Bom dia a todos. Agradeço o convite para participar deste fórum técnico que se dá em um momento muito oportuno em que se ampliam os debates no Governo Lula sobre a reforma previdenciária. Acho importantíssimo que este fórum, depois de elaborar suas propostas, participe efetivamente da elaboração do conjunto de propostas que vão se transformar na reforma da previdência. Agradeço sobretudo aos Deputados proponentes deste debate: André Quintão, Adelmo Carneiro Leão e Marília Campos. A contribuição que pretendo dar após a exposição dos colegas que me antecederam é para aprofundar um pouco mais a discussão sobre o regime geral de previdência. À medida que os palestrantes foram expondo suas reflexões, foi ficando claro que estaríamos diante da seguinte questão: A reforma previdenciária deve parar no tratamento do regime próprio de previdência dos servidores públicos e considerar que o regime geral de previdência social - hoje gerenciado pelo INSS - está em situação sustentável e não deve ser alterado? Ou seria o momento de pensarmos, como falava o Deputado Mauri Torres na abertura deste fórum, na previdência dentro de uma estrutura previdenciária que eu chamaria de sistema previdenciário? Entendo que não podemos cometer o erro de não pensar no conjunto, analisando também a situação do regime geral de previdência. A grande questão, portanto, é se vamos fazer uma reforma exatamente no sentido mais redutor que a reforma pode ter - que é tratar da parte -, ou vamos fazer uma reforma que trate da estrutura. Então, pretendo dar alguns elementos a favor do ponto de vista de que deveríamos tratar, nesta etapa, de uma reforma estrutural mais ampla, até corrigindo erros profundos que se acumularam ao longo desses 80 anos de montagem e construção da previdência pública no Brasil, agravados pelas reformas feitas a partir de 1995 e que culminaram com a Emenda nº 20/98, que hoje transforma significativamente os dois regimes de previdência. Chamo a atenção para o fato de que é preciso pensar nos dois regimes, porque o conjunto das reformas se desdobraram a partir da Proposta de Emenda à Constituição nº 33 e da consolidação da reforma constitucional em 1998. Daí passamos a falar em um regime geral de previdência social e em um regime próprio de previdência que foi regulamentado pela Lei nº 9.717, de 1998, o Regime Próprio dos Servidores Públicos, nos três níveis. Antes de 1998, falávamos de uma Previdência Social brasileira que, até 1990, era gerenciada pelo INPS. A partir de 1990, no bojo da regulamentação da Constituição de 1988, o INPS foi substituído na gerência da Previdência Social pelo INSS. Outra coisa importante que aconteceu com a Emenda à Constituição nº 20, que afetou os regimes, foi a instituição do princípio de contributividade como concepção de sistema previdenciário, ou seja, quando se fala de previdência, passa-se a falar de necessidade de equilíbrio atuarial, de equivalência entre contribuições e benefícios. Essa é uma noção presente em qualquer seguro social, mas que estava um pouco alijado do conceito de previdência que esteve em vigência até 1988, uma vez que o principal critério de acesso ao benefício previdenciário era o tempo de serviço, e não o de contribuição. Essas mudanças são suficientes para mostrar que a reforma que está acontecendo desde 1995 já afetou os dois regimes. Na verdade, ela diz respeito a um sistema de previdência no Brasil. Quando se fala de sistema previdenciário, de seguro social, é preciso compreender que não é só o evento da contribuição que garantirá a estabilidade de um sistema, mas quem contribui. Quando se pensa quem e quantos contribuem, isso remete imediatamente a um componente econômico de qualquer sistema de seguro social, que é, por exemplo, o nível de emprego. Conforme o nível de emprego, haverá variação no número de contribuintes do sistema. Também depende de outros elementos como o componente institucional. Um sistema previdenciário, para representar um sistema público - estamos falando da idéia de um sistema público - terá uma base compulsória de contribuição, e esse sistema deverá apresentar-se à população como estável, regular, confiável, capaz de representar seguridade, de assegurar uma proteção social no momento em que os trabalhadores e todos os indivíduos mais necessitam dela, que é, no sentido clássico, o momento em que perdemos nossa capacidade de trabalho. Todo esse conjunto que vai regular ou fazer com que esse sistema seja confiável passa pela ação do Estado, dos legisladores das várias instâncias de poder que interferem na regulamentação do sistema previdenciário. Quero mostrar como é importante pensarmos nisso no momento em que estamos fazendo a reforma, porque o Estado já interveio sobremaneira na história desse sistema. Muitos problemas que temos hoje são conseqüência dessa intervenção institucional que o Estado brasileiro, de forma geral, fez no sistema da Previdência. O componente demográfico é importantíssimo. Alguém já disse aqui que seria um componente sobre o qual a sociedade não detém imediatamente controle. Vivemos uma queda da fecundidade no Brasil. Dos anos 60 para cá, algo em torno de 6,2 filhos por mulher em idade reprodutiva caiu para 2,3 filhos por mulher em idade reprodutiva, detectados no último censo. É uma queda muito grande acompanhada de uma redução da mortalidade no Brasil. Isso faz com que o fenômeno demográfico, no qual tocarei mais adiante, seja muito importante e singular no caso do Brasil. É necessário conhecermos suas onseqüências para reorganização do sistema previdenciário. Antes de 1923, havia as caixas formadas por empresas. Autônomas, não sofriam nenhuma intervenção ou regulamentação do Estado. As primeiras entidades previdenciárias no Brasil nasceram em 1923, com a Lei Elói Chaves, quando o Estado passou a regulamentar o direito dos trabalhadores e a estabelecer que toda empresa deveria ter uma caixa de aposentadoria e pensão. Em 1930, com a chegada de Getúlio ao poder, profundas modificações foram feitas na estrutura das caixas. Entre 1933 e 1936, propôs ele a criação dos institutos e a instalação do Estado como o terceiro contribuinte dos institutos das categorias profissionais à época. Ao fazer isso, Getúlio não perdeu tempo e centralizou as contas dos institutos no Banco do Brasil, constituindo também, naquele momento, por lei, um fundo de reserva. Os institutos teriam, a partir daquele momento, um fundo de reserva do que sobrava a cada ano, ou seja, um fundo de acumulação, depositado no BB, de modo que o Estado tivesse uma visualização direta do que os institutos capitalizavam. Daí saiu o grande plano de financiamento dos institutos para as atividades que o Estado desenvolveu à época, fundamentalmente relacionados à implantação do setor de infra-estrutura para as indústrias de base. A partir de 1936, Getúlio começou a tomar empréstimos dos institutos e a financiar grandes investimentos do Estado. Demonstrarei, a partir de agora, por um gráfico, do ponto de vista econômico-financeiro, a relação entre as entidades previdenciárias que nasceram a partir de 1923 e o Estado no percurso - vale chamar a atenção - de constituição de uma previdência brasileira. Iremos de 1923 a 2002. Entre 1923 e 1966, existiam as caixas e os institutos de aposentadoria. Só tinham direitos previdenciários as pessoas filiadas à caixa, e, posteriormente, a algum instituto de aposentadorias e pensões. Portanto, quem tinha carteira de trabalho, vínculo formal de trabalho, tinha direito à aposentadoria; quem não tinha ficava sem direitos. A partir de 1964, a ditadura militar utilizou o sistema previdenciário de forma peculiar e interessante. Imaginem os senhores que, desde 1945, Getúlio batalhava para unificar os institutos. Lançou naquele ano um projeto que se chamava Instituto de Serviços Sociais no Brasil, que ficou no Congresso durante 15 anos e não chegou a ser aprovado. Em 1964, os militares retomaram o projeto de Getúlio e unificaram os institutos na forma do INPS. Aqui chamo a atenção dos senhores para mostrar o reflexo econômico-financeiro dessa mudança institucional. O gráfico mostra a constituição do INPS exatamente no momento de diminuição de sobras. Esta faixa azul é a sobra, a cada ano, depois de as instituições previdenciárias saldarem todas as suas obrigações com benefícios e outras despesas. Isso era a sobra líquida de caixa, que se constituía, à época, na reserva dos institutos de previdência. Evidentemente, ao formar o INSS, em 1967, quando já está implantada a unificação dos institutos, começa uma outra história do sistema previdenciário, porque o INPS passou a ser a figura da Previdência Social brasileira. Essa nova instituição começa a receber pressões e passa a ser vulnerável a pressões sociais, já no período militar, para ampliação dos direitos previdenciários da população para além daqueles diretamente contribuintes ou trabalhadores direta ou formalmente empregados na economia. A partir de 1966, a Previdência Social começa a ser inclusiva. Nos primeiros anos, começa a ampliar-se para os trabalhadores rurais, que não tinham nenhuma cobertura previdenciária, para trabalhadores domésticos, para autônomos e para dependentes. Entre 1966 e os anos 80, a Previdência assume a referência da assistência médica no País. Passa a ser responsável pela assistência médica, através do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social - INAMPS. Nesse período, a Previdência Social passa a acumular funções de um sistema de seguridade social capaz de cumprir as necessidades da população, seja no sentido previdenciário estrito, de retirada da atividade laborativa, seja na assistência à saúde ou na assistência social. Nossa Previdência Social, aqui representada pelo INPS, vai até o final da década de 80, acumulando e inchando suas funções, como espaço de realização da cidadania e de direitos sociais para o conjunto da população. Aí chamo a atenção dos senhores. Isso teve um custo. Se até aqui os institutos categoriais conseguiam ter excedentes fortes em sua arrecadação anual, a partir da unificação dos institutos passa a haver uma carência, uma vez que passa também a cobrir um conjunto de necessidades para a população, merecendo o nome de Previdência Social. Este azul que resta aqui, que acaba exatamente no ano de 1995, quando se inicia essa nova etapa das reformas previdenciárias, vai aparecer porque, a partir de 1982, último Governo do Figueiredo, houve um pacote, o Pacote Figueiredo, que se notabilizou pelo corte dos benefícios. O benefício principal, a aposentadoria, que era de 20 salários mínimos, passou para 10. Houve um esforço e uma pressão para aumento da arrecadação. Naquela época foi instituída a contribuição para inativos. Houve um reaparecimento de sobras no sistema, que vão até 1995. Em 1998, a Constituição institucionaliza esse desenho que a Previdência foi ganhando ao longo da história, estatuindo, no art. 194, nosso sistema de seguridade social, que passa a dar direitos universais de acesso a toda a população brasileira, proteção previdenciária, assistência à saúde e assistência social. Aqui começa um novo capítulo. Estabelecida a Constituição em 1988, em 1990 já começava a revisão constitucional. Em 1993 já se estabelece a revisão constitucional no Congresso, e a primeira reforma foi a da Previdência. A proposta de revisão da Constituição que vem tem um espírito que está na Emenda nº 20, ou seja, começa a restringir o âmbito de acesso a direitos, assim como o âmbito dos benefícios previdenciários, redefinindo o que será o sistema previdenciário a partir daí. Não é à toa que, em 1998, a Emenda nº 20 passa a falar de um regime geral de Previdência Social, que seria a herança dessa história previdenciária, e de um regime próprio de servidores públicos, que nem sequer eram vistos como um segmento com direitos previdenciários. O servidor público, ativo ou inativo, era um gasto administrativo do Estado. O servidor público, na natureza de inativo, não é exatamente o aposentado. Ele continua tendo o seu vínculo, por isso está submetido à legislação que rege o funcionário ativo do Estado, podendo ser submetido a processos e à perda de seu benefício como inativo. Há uma série de especificidades já mencionadas pelo Deputado Sérgio Miranda. Quero deixar essa imagem que é a nossa história de construção de um sistema público de previdência no Brasil, que não pode ser abandonado, entrando novamente numa fase amarela - no sentido constrangedor de amarelar - como em 1995. Não podemos aceitar que uma reforma conduzida, com espaço democrático de discussão, abandone esse sistema, pensando que ele está sustentável. Diria que esse sistema é a base da previdência pública no Brasil e é o sistema que hoje não honra benefícios à altura da sobrevivência digna dos trabalhadores que para ele contribuem. Este gráfico demonstra o valor dos benefícios pagos pelo Regime Geral de Previdência. Dessa forma, 99% dos benefícios nem sequer atingem quatro salários mínimos. O maior benefício pago chega a R$1.300,00, e não ao teto de R$1.561,00. Com esse benefício, com esse teto é possível pensar que os trabalhadores, ao se retirarem da sua atividade produtiva, possam viver dignamente? Não é com esse teto, é com muito menos que ele. Noventa e nove por cento desses trabalhadores aposentados do regime geral não ganham acima de quatro salários mínimos, no seu valor antigo. Será que não é possível pensar na reestruturação da arrecadação desse regime geral de modo que o aproxime dos melhores momentos que já houve na história da Previdência? Hoje o trabalhador do setor privado por qualquer salário que ganhe só contribui no máximo, para o regime geral, até o valor de R$1.560,00, resultando numa contribuição máxima em torno de R$171,00. Por que não pensar na reestruturação da arrecadação do regime geral de modo a reestruturar também o perfil de direitos e benefícios previdenciários? Em vez de cortar-se a integralidade dos benefícios e de vencimentos do regime próprio de servidores públicos, por que não aproximar o regime geral desse patamar de direitos, trazendo o direito à integralidade do benefício, acompanhado da reestruturação da arrecadação ou da tributação sob o regime geral da mesma maneira como se faz com o servidor público? Por que não fazer essa conta? Por que não se pensar no sistema a partir desse reencontro de critérios que tem mais que ver com a criação de um sistema de previdência que os trabalhadores fizeram na história e que é importante para a nossa vida? No momento em que mais vamos precisar do fruto do nosso trabalho, qual fruto vamos obter? Deve-se manter essa estrutura de benefício que o regime geral tem mantido, não por impossibilidade, mas por objetivos, ou se deve reestruturar esse patamar de benefício de modo a aproximar o sistema público de previdência dos reais objetivos que nós, como trabalhadores, temos? Ao finalizar a nossa vida laborativa, queremos, pelo menos, a decência de ter uma vida digna. Muito obrigada.