EDUARDO FERREIRA DE OLIVEIRA, Presidente do Congresso Nacional Afro-Brasileiro.
Discurso
Discursa sobre o tema do evento.
Reunião
171ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 15/06/2002
Página 33, Coluna 3
Evento Ciclo de Debates: "Políticas Públicas, Cotas para a População Negra".
Assunto DIREITOS HUMANOS. NEGRO.
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 15/06/2002
Página 33, Coluna 3
Evento Ciclo de Debates: "Políticas Públicas, Cotas para a População Negra".
Assunto DIREITOS HUMANOS. NEGRO.
171ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª
LEGISLATURA, EM 13/5/2002
Palavras do Sr. Eduardo Ferreira de Oliveira
Queria agradecer esta inusitada oportunidade que me é oferecida
pelo generoso povo de Minas Gerais, representado por uma de suas
instituições mais importantes que é a Assembléia Legislativa, e
cumprimentar, na pessoa do Dr. Paulo Piau, todos os componentes da
Mesa, com especial destaque o Prof. Aluísio, que nos dá uma lição
de vida extraordinária. Evidentemente que, vir de São Paulo a
convite desta instituição, particularmente acompanhado das
organizações afro-brasileiras que estão apoiando esse movimento, é
uma coisa de alta responsabilidade. Mas ficamos aliviados porque
estamos falando em Minas Gerais, que é o berço da liberdade. Foi
aqui que se deu o grito na América Latina para que o continente
americano na América do Sul desse a sua sacudidela para libertar o
Brasil continental do jugo dos europeus. Tendo esse amparo
histórico, torna-se mais aliviada a nossa fala por estarmos entre
irmãos de ideais. Tenho 76 anos e não conheci meus pais. Ontem foi
o Dia das Mães. Quero dizer uma poesia que fiz em memória da mãe
que nunca conheci: “Nem mesmo em sonho dado,/ me fora ver seu
negro rosto, quase todo tarjado do desgosto que enluta o chão/ que
em lágrimas transponho. Nunca vi minha mãe./ Até suponho que esta
melancolia do sol posto amortalhou-me desde aquele agosto,/ aquele
agosto que me pôs tristonho. Nunca vi minha mãe./ Por isso agora
ouço o gemer do coro da orfandade,/ na sinfonia amarga de quem
chora,/ atravessando as várzeas do desterro para depois tornar-se
uma saudade,/ acompanhando em vida o próprio enterro”.
Não ter mãe realmente significa não ter raiz de sustentação na
vida. Transferindo isso para cotas, qual seria a pessoa lúcida,
responsável e digna de nossa admiração, nosso respeito que
condenaria uma mãe por dar proteção a seu filho nascente, a seu
filho recém-nascido, de forma toda especial, toda particular, em
relação aos demais convivas da sociedade e da sua família?
Evidentemente, as cotas significam exatamente tratar
diferentemente a personalidade e as instituições, de modo que esse
procedimento os possa levar à igualdade. E, evidentemente, isso
não pode ser transformado numa panacéia. Todos os problemas seriam
resolvidos através da cota, já falou o nosso querido Prof. Aluísio
e o Marco Antônio. Entretanto, a cota é a parte visível, é um
instrumento através do qual as ações afirmativas se poderão
realizar em nosso País. Esse é um reclamo universal. O mundo
ocidental, no qual o Brasil está mergulhado, é devedor, de forma
indiscutível, do continente negro, através dos seus filhos que
foram escravos esparramados através da diáspora negra por este
mundo afora e através das riquezas naturais que foram espoliadas
daquele continente. Hoje eles não têm meio de sobrevivência por
causa da miséria encontrada lá como paga à contribuição que o
continente deu para a formação da nacionalidade e da riqueza
européia. Negar isso seria uma vergonha. É claro que, tendo essa
visão, somos daqueles que acreditamos que alguma coisa terá de ser
feita urgentemente para mudar essa realidade. Não vamos discutir o
problema histórico que todos nós sabemos com relação ao negro na
sociedade brasileira. Vamos dizer que, neste momento, há uma
ebulição muito grande da consciência nacional com relação a essa
dívida, com relação a esse débito histórico que a sociedade
brasileira dominante tem para com setores da sua sociedade.
Notamos que se estabelecem políticas neste País para centralizar a
riqueza, basta vermos as estatísticas, o IPEA está aí para quem
quiser ver. Enquanto 30%, 40% da população dominante detinha cerca
de 60%, 70% da economia, hoje isso está nas mãos de praticamente
10 mil pessoas, consumindo, explorando, usando de mais de 70%, 80%
dessa economia, que é o esforço de todos. Então, há uma política
de concentração de renda, e ninguém pode dizer que isso seja obra
do acaso, do inevitável. Foi ideologicamente conduzido para
desestabilizar as lutas populares nas quais os negros estavam
mergulhados, para que, mais cedo ou mais tarde, tomassem o poder.
A mentalidade de determinados setores, particularmente de um
setor da elite, que chamamos de elite “burra”, porque não
conseguem entender que a fraternidade é o grande caminho da
harmonia nacional e que a paz é fruto da justiça... Não adianta
tirar dinheiro da educação, das questões sociais, para que depois
esse dinheiro seja empregado nas cadeias, na repressão.
De modo que, hoje, as riquezas nacionais estão concentradas nas
mãos de poucas pessoas, que vivem ilhadas em grandes muros,
fortalezas, com segurança pública e privada, a fim de preservar
aquilo de que se apropriaram de uma forma legal, mas injusta. Mas,
como são elas que fazem as leis, consideram apenas o interesse
específico de suas comunidades minoritárias. Evidentemente, nem
tudo o que é legal é justo. Daí a necessidade de reverter esta
realidade. Esse grupo de pessoas que detêm o poder estranha que
alguém, por intermédio de ilustres Deputados, mais identificados
com nossa luta, proponha cotas que venham beneficiar também os
afro-brasileiros, os negros. Porque o Brasil sempre teve cotas: a
cota dos privilégios nas universidades, nos Poderes Legislativos,
no poder das forças militares, nos setores religiosos, para os
donos das grandes fazendas ou grandes donos de Bancos. A cota da
dominação do País existe e está nas mãos dessa minoria. Sabemos
que criar uma política para que parte dela seja revertida em
benefício de uma comunidade como a nossa, que representa hoje mais
de 50% da população, causa escândalo em alguns setores.
Essa luta já dura 60 anos. Quando, no Colégio Educandário D.
Duarte, asilo onde fui criado, comecei a compor o “Hino à
Negritude”, com a ajuda do Prof. Hugo Fagundes Varela - sobrinho-
neto de Fagundes Varela, o grande poeta do “Cântico do Calvário” -
, ele me disse que, realmente, eu tinha obrigação de fazer uma
gesta pública, uma gesta lírica, que pudesse valorizar,
engrandecer e dizer do valor desse grande povo negro. Então, aos
16 anos de idade, começaram a surgir os primeiros acordes dessa
partitura, que hoje já está oficializada em São Paulo, Mato Grosso
e em dezenas de cidades deste País, mostrando a conveniência de
também se cantarem os valores e essa contribuição cultural
maravilhosa e histórica do negro para a formação nacional. O negro
está inelutavelmente inserido na cultura nacional, e não há
ninguém que nos tire dessa posição, já que trabalhamos para que
isso se tornasse realidade. Tudo que devemos fazer é continuar
trabalhando.
Darei um dado impressionante a todos os senhores e senhoras.
Quando fui Vereador, como suplente, em 1963, na legislatura de
1959 a 1963, em São Paulo, fui fazer um discurso numa instituição
que ficava junto à Freguesia do Ó, que era o bairro mais pobre e
negro, naquela ocasião. Fiz uma grande reunião, em que recebemos
um prêmio - como colaboração - dos comerciantes da área. Naquela
ocasião, o prêmio era um liquidificador, considerado o computador
do momento - tivemos a evolução da tecnologia, com a entrada
desses produtos no Brasil. O grande sonho de consumo naquela época
era o liquidificador, e nós o ganhamos. Então, falei para que
trouxessem o título, e o número do título seria a forma de se
fazer o sorteio daquela peça aos presentes. Estavam reunidos ali
cerca de setecentas e tantas pessoas, e apenas levantamos cinco ou
seis títulos, porque o negro não tinha título, não era
alfabetizado, não tinha condições sequer de entrar para a função
pública. Descobriu-se, por ali, que a razão de o negro estar
afastado do trabalho público era exatamente esta: não estar
alfabetizado. Partimos então para uma alfabetização em massa do
povo, de um modo geral, e o negro começou, por meio de concursos
públicos, a entrar para grandes instituições. Sabemos hoje que a
grande maioria da classe média da nossa comunidade no Brasil veio
da sustentação que seus pais conseguiram por meio de um serviço de
carteira marcada, seguro, o que realmente era função pública,
porque, na área privada, ficara ainda mais difícil o negro
ingressar em posições mais dignas, apesar de todo o esforço que
Getúlio Vargas tinha feito para colocar, como exigência do nosso
País, 70% dos trabalhadores brasileiros nas nossas empresas,
conseguindo, com isso, colocar também os negros nessas
instituições. Tudo isso são trabalhos que documentam como houve
uma evolução enorme.
O nosso querido Dr. Aluísio Pimenta disse aqui que há grande
número de pessoas assumindo essas posições. Sabendo que há quase
50 ou 60 anos não tínhamos sequer pessoas alfabetizadas, com
condições de obter o título de eleitor, hoje vemos que houve um
avanço. O número de PhDs que temos por esse Brasil afora - hoje os
acadêmicos sabem o que isso representa, por causa dos negros que
lutam nesse meio - é alguma coisa de animador.
Temos que continuar lutando por caminhos absolutamente certos, e
uma das etapas de luta consiste na regulamentação das cotas não
para se tornarem uma panacéia, mas para que também não sejam um
elemento criador de distorções. E que não sejam só para os negros,
mas para os pobres também.
Estou vendo aqui um trabalho do Frei David, que está no Rio de
Janeiro. Trata-se de uma figura extraordinária, que está no meu
livro “Quem É Quem na Negritude Brasileira”, destinado à
preparação de negros e carentes para o vestibular. Estou dizendo
negros e carentes, o que significa que somos abertos, que nós,
negros, não temos a intenção de discriminar ninguém. Quem é
discriminado sabe o que isso representa de dor, de humilhação e,
acima de tudo, de sentimento de injustiça dentro do nosso coração,
da nossa vida, e não vai fazer isso por experiência própria.
Então, por essa razão, não precisam ter preocupações.
Vamos prestigiar os Deputados, as leis feitas por esses luminares
da Assembléia Legislativa, que estão promovendo esse trabalho com
apoio de toda a comunidade, para que isso seja realizado em tempo
recorde e o Brasil se torne viável, sem que seja necessário
realizar aquela previsão realista e sombria do grande mestre,
Prof. Milton Santos, que é a grande revolta dos negros cobrando
seus espaços através dos mecanismos da violência.
Fomos violentados através da história; temos o sentido da
cordialidade. Dizem que a risada do negro é espontânea e forte;
dizem que nós, negros, gostamos de nos abraçar, que o toque que
fazemos com a mão é um gesto de solidariedade, de amor ao
semelhante. Essa é a nossa filosofia, é a nossa psicologia de
vida. Podemos nos inserir no processo da administração de todo
setor da vida nacional, e acredito que daqui a 8 ou 10 ou 12 anos
vamos ter um Presidente negro. Não tenho dúvida quanto a isso.
Vamos participar dessa luta, vamos testemunhar essa resistência, e
o Brasil não se afundará por causa desse fato.
Temos aqui, quem diria, o Dr. Kabengele, que é jovem, o Deputado,
que também é jovem, e o Dr. Aluísio pode testemunhar, quando
iríamos imaginar que a cidade do Rio de Janeiro, a Cidade
Maravilhosa, cantada por Ari Barroso, com todos esses valores,
tivesse uma negra no Governo! Prestem atenção: não é uma negra da
elite, é uma negra da favela, que se orgulha de dizer isso. Veio
da favela, é negra e pobre e hoje é Governadora do Estado do Rio
de Janeiro. Ela merece uma salva de palmas, de pé, pois prova que
é possível a revolta, mas uma revolta sadia e construtiva, feita
sob os desígnios de Deus. (- Palmas.) Tenho fé nessa verdade.
Consagram-se todos os discursos feitos por essas valorosas
criaturas que aqui passaram, isso é muito importante.
É importante lembrar também Carlos Moura, que conviveu com o
nosso querido Dr. Aluísio Pimenta e hoje é Presidente, pela
segunda vez, da Fundação Cultural Palmares; Ivair Augusto Alves
dos Santos, que é Diretor da Secretaria Nacional dos Direitos
Humanos; Dr. Paulo Sérgio Pinheiro, uma das pessoas maravilhosas
que lutam pela valorização da criatura humana; José Gregório, que
realizou um grande trabalho, todos precisam ser lembrados; são
nossos parceiros.
Não temos a veleidade de fazer isso sozinhos. Vamos conquistar
corações, consciências e vamos fazer a grande revolução, no
sentido saudável dessa palavra, no que ela tem de social e de
construtivo.
Quero terminar cantando meu Hino à Negritude, se a ilustre Mesa e
a platéia me permitirem. Boa parte dele foi feita quando eu tinha
16 anos de idade.
- Procede-se à execução do Hino à Negritude.