EDUARDO CERQUEIRA BATITUCCI, Pesquisador da Fundação João Pinheiro - FJP.
Discurso
Discursa sobre o tema Violência Urbana: Diagnóstico e Perspectivas de
Solução.
Reunião
173ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 29/06/2002
Página 55, Coluna 3
Evento Seminário Regional Violência Urbana e Saúde Pública.
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA. SAÚDE PÚBLICA.
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 29/06/2002
Página 55, Coluna 3
Evento Seminário Regional Violência Urbana e Saúde Pública.
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA. SAÚDE PÚBLICA.
173ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª
LEGISLATURA, EM 20/5/2002
Palavras do Sr. Eduardo Cerqueira Batitucci
Boa-tarde. Vou tentar ser o mais rápido possível, devido ao que
já foi dito, para que possamos tentar entender melhor o que vem
acontecendo em Minas Gerais. Para que entendamos melhor o que vem
acontecendo, é preciso - não há como evitar - pensar o que
acontece em todos os lugares.
A questão da segurança pública em Minas Gerais tem em comum com a
do resto do País a origem conflituosa na definição e constituição
do campo da segurança pública no Brasil. Esta foi construída para
fazer duas coisas: defender propriedade e caçar escravo. Então,
não é possível que um sistema cujo “locus” é o Estado permaneça
com essa mentalidade 500 anos depois. É exatamente isso o que vem
acontecendo, com as devidas proporções e mudanças contextuais. Ao
mesmo tempo, percebemos uma missão histórica das elites
brasileiras em todos os níveis: construir a segurança como uma
questão pública, o que tem a ver com a idéia de produção de
políticas públicas, que são tão caras a vocês, da área da saúde,
que entendem exatamente o que isso significa.
Diagnóstico, implementação, monitoramento e avaliação: se não
temos políticas nesse sentido, não temos Estado atuante; se não
temos Estado atuante, não temos nada.
Novamente, mais uma das nossas carências: os outros setores da
inteligência brasileira também não conseguem estabelecer
interlocução frente ao campo social da segurança pública.
Portanto, tornamo-nos incapazes de construir esse campo social
como um que inclua as pessoas, ao invés de excluir. O que
significa isso? Um campo social que inclua a demanda daquela
senhora que quer saber por que a sua escola está sendo invadida,
está sendo roubada. Isso deixa de significar uma questão de
cidadania, que deveria ser, para significar uma questão de
polícia, que é também, mas em segundo tempo. Primeiramente, é uma
questão de cidadania, e não temos muito entendimento do que isso
significa. Para complicar mais ainda, o Estado está diante de
novas demandas: efetividade e respostas às demandas da sociedade,
o que não somos capazes de fazer.
Posto isso, também temos problemas que não sabemos dimensionar
bem. Dado que o diagnóstico da violência nas realidades diferentes
é diferente, demandam-se tratamentos diferentes. O que está
acontecendo em Minas Gerais? Isso que vocês estão vendo. Se
pegarmos todo o bolo da criminalidade em Minas, que aqui está
representado por todo este quadrado, esta parte abaixo, em azul,
temos os crimes violentos contra a pessoa. Em 1986, os crimes
violentos contra a pessoa eram responsáveis por 60% de toda a
criminalidade, e os crimes violentos contra o patrimônio eram
responsáveis por 40%, o pedacinho do bolo que sobra. Há dois anos,
em 2000, a parte que corresponde aos crimes violentos contra a
pessoa é somente de 17%. De cada 100 crimes violentos que
acontecem em Minas Gerais, 17% são homicídios, tentativas de
homicídio e estupros. Os outros 83% são crimes contra o
patrimônio. A nossa polícia foi construída, do ponto de vista
cognitivo, para combater crimes contra a pessoa, e não crimes
contra o patrimônio. Ela não sabe fazer isso muito bem. Todo o
aparato cognitivo da polícia e do sistema, incluindo o Ministério
Público, o Judiciário e o sistema prisional, foi construído para
combater crimes contra a pessoa.
Outra coisa fica clara: crime violento é problema de grandes
municípios. As linhas superiores são municípios com população
acima de 100 mil habitantes. Com o passar dos anos, vocês podem
perceber, houve um aumento mais acentuado da criminalidade. As
linhas inferiores são os pequenos municípios de Minas Gerais.
Mesmo assim, se formos observar determinados tipos de crime, vamos
encontrar coisas diferentes.
Aqui, temos homicídios em Minas Gerais de 1986 até 2000. Por mais
incrível que pareça, a taxa de homicídios em Minas Gerais está,
mais ou menos, estável, entre 10 e 12 ocorrências para cada grupo
de até 100 mil habitantes. E está distribuído no Estado dessa
maneira: quanto mais vermelho, maior é a taxa. Então, a Região
Metropolitana de Belo Horizonte está fora das taxas mais violentas
do Estado no que ser refere a homicídios? Estava, até 1997, quando
homicídio era problema nesses municípios que vão do Noroeste até o
vale do rio Doce, obviamente, os municípios mais pobres de Minas
Gerais.
A partir de 1997, vejam o que acontece. Esse exemplo é de Belo
Horizonte. A partir dessa data, o gráfico dá um pulo e,
literalmente, entra no campo do caos. Em três anos, os homicídios
cresceram mais de 400%, de 1997 até 2000.
Este gráfico só vai até 2000, mas o ritmo de crescimento
permanece. Então, daqui a pouquinho, a Região Metropolitana de
Belo Horizonte vai, infelizmente, entrar nas estatísticas como uma
das mais violentas do País.
De 1995 para cá, o crime de roubo à mão armada em Minas Gerais
saiu completamente do controle. A linha ascendente do gráfico está
ficando quase vertical. Em 1987, 1991 e 1997, basicamente os
grandes municípios do Estado eram os mais prejudicados. Percebam
que as linhas vermelhas coincidem com as grandes rodovias
estaduais: a antiga BR-262, atual BR-381, que vai para o Triângulo
Mineiro. O gráfico todo em vermelho denuncia que se está em guerra
civil; a BR-381, descendo para São Paulo; a BR-040, descendo para
o Rio e subindo para Brasília, e a BR-262, indo em direção a
Vitória.
Diante dessa estatística, como explicar o aumento incompreensível
da violência em Minas Gerais? Podemos partir de três pontos: a
legitimidade do Estado e, por conseqüência, o sistema de segurança
pública; a capacidade cognitiva que os agentes do Estado têm de
enfrentar e compreender o que está acontecendo: o subsistema
estatal, que faz com que as coisas funcionem ou deixem de
funcionar.
Do ponto de vista da legitimidade, há que mudar os parâmetros de
avaliação das atividades das organizações da segurança pública,
que não estão preparadas para ser avaliadas em um estado
democrático de direito. Foram construídas para ser avaliadas
segundo outro tipo de critério. Estão tentando preparar-se, só
que, para isto, vão precisar de instrumentos cognitivos que a
sociedade brasileira não está disposta a fornecer às organizações
de segurança pública. A coisa, então, fica um pouquinho
complicada.
Os direitos humanos e a doutrina operacional das organizações
policiais são um exemplo disso. O curso da Cruz Vermelha, que
parte de um pressuposto interessante, só será eficaz do ponto de
vista da ação das organizações policiais, se se disseminar e se
tornar uma cultura das organizações policiais. Não podemos, no
entanto, querer que isso aconteça em dois ou três anos, diante de
500 anos de cultura completamente diferente. Isso demora e implica
dinheiro; a população precisa entender que assim é e que, para
funcionar, terá de cobrar dos governantes e dos executores de
polícia.
Do ponto de vista cognitivo, há novas personagens e exigências,
mas com velhas ferramentas. O que temos é a estagnação do
desenvolvimento doutrinário de todo o sistema de segurança
pública: uma polícia ostensiva e uma polícia judiciária que não
sabem investigar; um Judiciário que está diante de um arcabouço
legal pré-histórico e um sistema prisional que, costumo dizer, é o
cemitério das políticas públicas de Minas Gerais. Não existe, no
País, nada pior que o sistema prisional de Minas Gerais.
Ao mesmo tempo, temos a crise de um sistema que não funciona, em
que esses cinco atores não conseguem conversar, porque não têm
base cognitiva, não entendem a questão da segurança pública da
mesma maneira. A polícia ostensiva tem uma idéia do que deva ser
segurança pública; a polícia judiciária, outra; o Ministério
Público, uma terceira; o Judiciário, uma quarta; o sistema
prisional, nem se fala.
Qual a conseqüência disso? Não temos o debate público a respeito
de segurança neste País, como o que existe, por exemplo, na área
da saúde. Público é o debate em que o seu interlocutor é
qualificado para conversar com você, ou seja, você fala, e ele
entende. Isso não acontece no Brasil, na área da segurança
pública. Não temos essa capacidade. Não temos interlocutores
internos e externos ao sistema que sejam qualificados e
reconhecidos como interlocutores pelos operadores do sistema. Por
causa disso, há uma indefinição doutrinária do sistema, que não
entende muito bem a idéia de segurança pública que a sociedade
tem, da mesma forma que a sociedade também não entende muito bem a
idéia de segurança pública que está na cabeça dos executores da
segurança pública do Governo. Logo, não temos um domínio social da
questão, e, claro, vamos ter radicalização tanto de um lado como
do outro. Tem gente que acha que direitos humanos é para bandido,
e tem gente que acha que direitos humanos não é para a polícia. E,
aí, acontece o que considero ser o grande desastre da área da
segurança pública no Brasil: somos incapazes de construir
políticas públicas, porque não temos diagnósticos decentes - logo,
não conseguimos estabelecer prioridades; não temos instrumentos
para agir, seja do ponto de vista do Estado, seja do ponto de
vista cognitivo; além do mais, há constrangimentos
organizacionais, culturais, legais e sociais.
O que podemos fazer diante desse quadro catastrófico?
Primeiramente, o que estamos fazendo aqui: falando o que pensamos.
Por isso é importante que todos tenham o direito de expressar sua
opinião.
Precisamos ir construindo o debate público pela formação de
interlocutores qualificados. Só assim redefiniremos o que chamo de
campo social da segurança pública, sistema formado pelos agentes
governamentais que lidam com a segurança pública: a Polícia
Militar, a Polícia Civil, o Ministério Público, o Judiciário e o
sistema prisional.
É preciso redefinir tanto a doutrina desse sistema quanto a idéia
que o sistema vai utilizar para fazer segurança pública, além de,
técnica e tecnologicamente, os instrumentos que essas organizações
possuirão para agir. Desse modo, e de nenhum outro, conseguiremos
construir legitimidade baseada naquilo que as pessoas pensam e nos
valores que têm a respeito da segurança pública a ser oferecida
pelo Estado. Desse modo, e de nenhum outro, conseguiremos adequar
o sistema que oferece a segurança pública e definir a forma como
esse sistema vai trabalhar. Para isso, é absolutamente fundamental
e indispensável que haja reconhecimento profissional de todos os
atores do sistema: Carcereiro, guarda penitenciário, Detetive, o
Soldado da Polícia Militar, até o magistrado, que já tem seu
reconhecimento monetário e simbólico. Do contrário, não vamos para
a frente. Quais são os pré-requisitos para isso? Financiamento
adequado - é preciso que se diga que em qualquer país civilizado
do mundo segurança pública é a política mais cara que o Estado
fornece; consenso sistêmico - os atores do sistema precisam
entender-se, precisam ter valores mais ou menos equivalentes;
consenso axiológico e controle da sociedade sobre o sistema. Aí,
sim, poderemos desenvolver políticas públicas por meio de
investimento maciço na produção de diagnósticos e na definição
colegiada das políticas, de modo que a sociedade tenha voz e, pelo
monitoramento, participe da avaliação e do controle social.