DALMO DE ABREU DALLARI, Coordenador da Cátedra Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco/Universidade de São Paulo - USP de Direitos Humanos.
Discurso
Comenta o tema do evento.
Reunião
17ª reunião ESPECIAL
Legislatura 15ª legislatura, 2ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 16/06/2004
Página 40, Coluna 1
Evento II Conferência Estadual de Direitos Humanos.
Assunto DIREITOS HUMANOS.
Legislatura 15ª legislatura, 2ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 16/06/2004
Página 40, Coluna 1
Evento II Conferência Estadual de Direitos Humanos.
Assunto DIREITOS HUMANOS.
17ª REUNIÃO ESPECIAL DA 2ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 15ª
LEGISLATURA, EM 27/5/2004
Palavras do Sr. Dalmo de Abreu Dallari
Sr. Presidente, eminentes membros da Mesa, Deputados e ilustres
participantes do encontro, antes de tudo agradeço aos
organizadores o convite feito a mim para participar desta reunião.
Esta Casa tem tradição de luta pelos direitos humanos, e eu mesmo
já estive aqui anteriormente. É um privilégio falar para pessoas
de boa-vontade, pessoas que se dispõem a ouvir e falar de direitos
humanos, para saber, sobretudo, o que fazer. Esse é um ponto
fundamental no qual insistirei, já que o tempo é curto, a matéria
é muito ampla e é necessário fixar alguns aspectos.
Peço licença para dizer algo um pouco diferente, porque não
concordo que os direitos humanos sejam históricos. Acho que eles
foram sendo percebidos ao longo da história. Em certas
circunstâncias históricas, ficou mais clara a agressão aos
direitos humanos, e estes nascem com a pessoa humana. A ONU, na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 1º, diz que
todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. Não existe a possibilidade de nenhuma exceção. Não
importam a cor da pele, onde nasceu, a língua que fala nem a
profissão. Os direitos não são dados pelo Estado e pela sociedade,
mas inerentes à condição humana.
Um aspecto importante a ser ressaltado e que ajuda a melhor
compreensão dos direitos humanos é a constatação de que a
expressão “direitos humanos” é uma síntese de direitos
fundamentais e essenciais, porque correspondem a necessidades
humanas fundamentais. Todo ser humano tem necessidade da vida, por
isso, ela é um direito humano. Todo ser humano tem necessidade da
saúde e da educação, uma transmissão de conhecimentos e preparação
para a convivência. O ser humano, por sua natureza, precisa
conviver e se preparar para ela, por isso, a educação é uma
necessidade essencial e um direito humano. Assim, todos os
direitos humanos são essenciais porque correspondem a necessidades
fundamentais da pessoa humana.
Ressaltado esse aspecto, rapidamente relembrarei um pouco como
foi que se tomou consciência dos direitos humanos, como se chegou
à conclusão de que o ser humano nasce com direitos. Na verdade, a
primeira afirmação foi feita por um pensador católico, Santo Tomás
de Aquino, no fim da Idade Média. Ele defende, entre outras
coisas, o direito de rebelião. Todos têm o direito de se rebelar
contra injustiças. Como pensador católico, Santo Tomás dizia que
são direitos naturais porque dados por Deus. O que se viu, em
seguida, foi que, em muitos lugares, a Igreja Católica associou-se
àqueles que agrediam direitos. Não precisamos dar muitas voltas:
vemos no Brasil a associação da Igreja com a escravidão, os
escravocratas, os Bispos, os Padres e os donos de escravos. Era a
negação do cristianismo. Isso foi percebido no final da Idade
Média e não quer dizer que a Igreja Católica seja contra os
direitos humanos. Não é isso.
Setores da Igreja têm seus pecados mortais, e, por isso, quando
se chega ao séc. XVII, iniciam-se as chamadas revoluções
burguesas.
Aqui também faço uma reflexão. No início da Idade Média, nos
sécs. IV e V, foi-se formando uma camada social privilegiada, a
nobreza, quando acabou o Império Romano. Povos do Norte da Europa
caminham para o Sul, e muitos deles o fazem especialmente porque o
extremo Norte era muito frio, tinha neve e fome lá. Então, muitos
foram para o Sul em busca da possibilidade de sobrevivência, mas
também foram manipulados por aqueles que queriam terras, que
queriam poder. Dessa maneira, formaram-se exércitos que invadiram
o Sul da Europa nas chamadas invasões bárbaras. Na seqüência
dessas invasões, surgem os grandes proprietários, os dominadores
de grandes extensões de terras, os senhores feudais.
Como havia guerras e riscos, as pessoas pobres, que não tinham
armas e eram dependentes, procuraram a proteção desses senhores,
desenvolvendo-se, assim, o feudalismo. As pessoas ficavam sob o
domínio desse nobre, que era o senhor da vida e da morte, tinha os
poderes legislativo, executivo e judiciário.
Alguns séculos depois, não havia mais riscos, e as pessoas, que
já não suportavam mais aquela sufocação da própria liberdade, da
própria dignidade, saíram dos feudos, que eram basicamente
unidades rurais, e foram para as cidades. Há uma verdadeira
revolução urbana: as cidades começam a aparecer.
Existe uma palavra muito semelhante em várias línguas européias,
incluindo o português, e muito importante para percebermos o
processo histórico: burgo. Burgo significa cidade, núcleo urbano.
Em inglês, diz-se “burgh”; em francês, “bourg” e, em italiano,
“burgo”.
Nesse burgo, vai aparecer uma personagem que tem e terá uma
importância enorme na história da humanidade, que é o comerciante.
Esse comerciante passa a trazer alimentos da zona rural para a
cidade e revendê-los, obviamente com lucro. Daí a pouco, fica
muito rico, vai acumulando riquezas, conseguindo poder econômico,
mas não é nobre, não é dono de terras e, por isso, não tem
direitos políticos. Rigorosamente não tem direito algum, porque é
dependente. Esse homem vai enriquecendo e se transforma em
banqueiro, em financista e passa a emprestar dinheiro aos nobres e
aos reis, inclusive. Ganha muito poder econômico, mas fica à
margem do poder político.
Portanto, fica estabelecida uma diferenciação na sociedade: ou a
pessoa é nobre ou a pessoa é comum. E comuns eram também esses
banqueiros ricos, os comerciantes, os operários, os trabalhadores,
os homens e as mulheres.
Chega-se a um momento de ostensiva agressão, de injustiça. Nessa
época, Santo Tomás de Aquino denuncia essa situação de violência e
injustiça, mas ainda demora a aparecer efetivamente uma luta de
oposição. No entanto, essa denúncia de Santo Tomás já reflete o
descontentamento e as reivindicações dessa camada de homens ricos,
grandes comerciantes e grandes banqueiros, que são os burgueses.
Depois, ficaram registrados na história os burgueses e a
burguesia.
Gosto de chamar a atenção para isso porque, hoje, ainda há quem
pense que burguesia é criação de Karl Marx. Este nasceu no começo
do séc. XIX, ao passo que a burguesia nasceu no séc. XII. E essa
burguesia sente mais imediatamente a violência, porque tem
dinheiro, mas nenhuma participação política.
No séc. XIV, a burguesia consegue pequena participação no
parlamento da Inglaterra, criado não para fazer leis, mas para
fixar políticas, controlar os excessos do Executivo, que no caso
era o Rei. No séc. XIV, os burgueses criam para eles cargos no
parlamento. A Inglaterra até hoje tem duas câmaras: a Câmara dos
Lordes, que são os aristocratas, os nobres, os tradicionais, e a
Câmara dos Comuns. Instala-se esse bicameralismo, mas os nobres
ainda têm supremacia, têm precedências.
Nos sécs. XVII e XVIII, desencadeiam-se as revoluções burguesas.
Ao mesmo tempo em que a burguesia comanda, pessoas comuns se
engajam na revolução: operários, trabalhadores, homens e mulheres.
No fim do séc. XVII, há uma revolução burguesa na Inglaterra, e a
Câmara dos Comuns passa a ser mais forte e mais importante do que
a Câmara dos Lordes.
Há poucos dias, o Primeiro-Ministro da Inglaterra foi ao
parlamento explicar por que ajudou a invadir, bombardear e cometer
violências e torturas no Iraque. Ele foi à Câmara dos Comuns. Não
dá nenhuma atenção à Câmara dos Lordes, porque ela já não manda -
quem manda é a Câmara dos Comuns.
No século seguinte, houve a Revolução Francesa. Há um aspecto
muito importante a ressaltar, que é a intensa participação de
trabalhadores e de mulheres. Chamo a atenção porque daqui a pouco
ressaltarei um aspecto denunciador. Já não se suporta tanta
violência e tanta injustiça, o povo se organiza, movimenta-se; os
burgueses, então, lideram essa movimentação.
Em 1789, ocorre a famosa Tomada da Bastilha, a instalação da
Assembléia Francesa e a aprovação de uma lei acabando com os
privilégios da nobreza. Entre outras coisas, a nobreza não pagava
impostos, mas quem morasse em um terreno de nobres tinha de pagar
por tudo que fizesse, por um pedaço de árvore que pegasse para
fazer fogo em sua casa. Isso tudo é eliminado. Instala-se a
Assembléia Francesa, que aprova o primeiro documento de declaração
de direitos. O nome oficial desse documento é Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão.
A palavra cidadania foi intensamente utilizada nesse movimento
revolucionário como símbolo de igualdade, para dizer que não há
mais nobres e não nobres. Ninguém é o conde fulano ou barão ou
visconde; é o cidadão fulano, assim como o operário é cidadão,
assim como a mulher é cidadã. Todos são cidadãos e cidadãs. Não há
mais distinção entre nobres e comuns.
Tenho bastante relação com a França, sou professor da
Universidade de Paris, onde tenho feito minhas pesquisas. Um
documento extremamente interessante que encontrei, muito pouco
conhecido e pouco divulgado, é proposta feita na mesma Assembléia
Francesa que aprovou os Direitos do Homem e do Cidadão: uma
proposta de declaração dos direitos da cidadã. Disseram que isso
não era necessário, pois quando se fala do homem, é do ser humano,
não é preciso fazer essa distinção. Por isso não aprovaram a
declaração dos direitos da cidadã.
A mesma Assembléia, em 1791, aprova a primeira Constituição da
França. É um documento extremamente importante, porque definirá
uma idéia de direito. Esse documento dizia, em parte ou
aparentemente baseado em Montesquieu, que o governo de leis é
melhor do que o governo de homens. A lei é igual para todos; o
homem é que discrimina.
Então, diz a Constituição da França que ninguém será obrigado ou
proibido de fazer alguma coisa a não ser com base na lei. Mas isso
é colocado de tal maneira que o direito fica sendo a lei. Só é
direito o que está na lei; a lei é todo o direito.
Isso tinha sentido em Montesquieu, porque ele era a favor do
direito natural. Não do direito natural no sentido católico, posto
por Deus, mas do direito que encontramos na natureza humana. O ser
humano é racional; observa e vê quais são as necessidades
essenciais e a cada uma delas atribui um direito. Por isso,
Montesquieu dizia que o governo de leis é melhor do que o governo
de homens.
Mas não foi isso o que fez a Assembléia Francesa. Ao contrário,
essa Assembléia decidiu que quem faz a lei são os delegados dos
cidadãos. Ou seja, não era mais a lei da natureza, mas a lei
fabricada. É aí que nasce o parlamento fábrica de leis; o
legislativo fábrica de leis. Mas não era isso; não foi imaginado
assim. Pior ainda, virando fábrica de leis, ele praticamente pôs
em plano secundário ou eliminou os seus objetivos essenciais, que
são a fixação da política, o controle do governo e a expressão da
vontade do povo.
Voltando à Assembléia Francesa, quem faz a lei são os delegados
dos cidadãos, e, pior ainda, a mesma Constituição diz que os
delegados serão eleitos pelos cidadãos ativos e que, para ser
delegado, é preciso ser cidadão ativo. Estabelece-se, assim, uma
diferenciação entre o cidadão ativo e o cidadão comum. O cidadão
comum não tem direitos políticos, não tem participação política
alguma. Quem tem os direitos são só os cidadãos ativos, que são os
que elegem e que podem ser eleitos. A essa altura, é claro que
queremos saber quem são esses cidadãos ativos, quem participa
dessa camada social privilegiada. A mesma Constituição dá a
resposta. Por ela, a primeira condição para ser cidadão ativo é
ser francês do sexo masculino. Um aspecto extremamente grave nisso
é a chancela legal. Então, não se pode dizer que os homens estejam
discriminando, se isso é legal. Se é legal, é legítimo e justo.
Por essa razão, as mulheres ficaram em plano secundário,
discriminadas a tal ponto que a França só teve uma Juíza em 1946;
até então, as mulheres não tinham o direito de participação. A
mesma Constituição diz, mais adiante, que não basta ser homem
francês; é preciso não ser empregado de ninguém, pois, se o
empregado não tem independência econômica, não deve ter
independência política. Com isso, faz uma segunda discriminação,
agora contra os trabalhadores, mas, uma vez mais, legal. Ou seja,
legalmente, mulheres e trabalhadores não têm participação
política.
A partir daí, instala-se um novo tipo de sociedade, em que o
direito é a lei. Mas quem vai fazer a lei são os homens ricos, a
burguesia. É por isso que a legislação cria privilégios e protege
alguns. Ainda hoje, no Brasil, muitas vezes um grande empresário
tem salário nominal baixo - o que recebe em dinheiro é pouquinho -
, mas usa o cartão de crédito e viaja para a Europa, com sua
família, às custas da empresa; vai aos restaurantes de luxo, e é a
empresa que paga. Ontem mesmo, um jornal de São Paulo noticiou a
abertura de um restaurante cujas refeições têm requintes
excepcionais. Mas, nesse restaurante, uma refeição custa R$350,00.
Ora, estou vindo de uma viagem ao Norte e ao Nordeste e pude
verificar quantos brasileiros recebem 1/10 disso para passar todo
o mês, muitas vezes com sua família. No entanto, aquele indivíduo
gasta essa quantia para pagar uma refeição. Também vemos nos
jornais que há filas para a compra de Mercedes e Jaguar. Ou seja,
há uma camada social que está comprando esses carros. Vemos também
lançamentos de edifícios de altíssimo luxo.
Quem comprará tudo isso é uma camada privilegiada, que ganha
muito dinheiro e chora lágrimas de sangue quando precisa pagar um
centavo de imposto. Ao ouvirmos o grande empresário, ficamos com
tanta pena que quase lhe damos dinheiro. Coitadinho. Há poucos
dias, numa carta publicada em um grande jornal de São Paulo, o
leitor comentava que a cobrança de impostos é um absurdo, porque
cada imposto que o Governo rouba do empresário é tirado dos
investimentos que gerarão empregos. Essa concentração de riqueza
não traz nenhuma vantagem social, apenas faz com que meia dúzia de
ricos fique ainda mais rica.
Esse tipo de sociedade, caracterizada por dominação e
discriminações legais, foi instalada no início do séc. XIX. Em
1894, o Código Civil de Napoleão Bonaparte determinou que o marido
seria o chefe da sociedade conjugal, ou seja, mais uma
discriminação. Estabeleceu também outras discriminações legais
contra os trabalhadores. Aquelas injustiças e discriminações que
existiam em favor dos nobres desapareceram, mas foram criadas
outras. Surgiu a idéia de liberdade, não só como o primeiro
direito, mas também como superior aos demais.
O que se desejava com essa afirmação de liberdade? Vários
teóricos haviam escrito que a liberdade era um direito natural da
pessoa humana. Outros, como Rousseau, escreveram que a igualdade
também era direito natural. Veio a polêmica: o importante era a
liberdade, porque as pessoas livres podem lutar por seus direitos,
conseguindo mais riquezas e poder social. O Estado não deveria
interferir na vida social, porque qualquer interferência do poder
público acabaria com a liberdade. Foi instalado o chamado
liberalismo.
Verificou-se, durante o período da Revolução Industrial, que essa
concentração de riquezas significava miséria, marginalização e
imposição de condições indignas de trabalho, como salários
baixíssimos e jornadas de 17 horas. Os trabalhadores começaram a
fazer movimentos. O que foi feito na França? Foi criada uma lei,
que tem o nome de seu proponente - a Lei Le Chapelier -, que
proibia organizações sociais, porque os trabalhadores haviam
percebido - como disse Montesquieu - que a força do grupo compensa
a fraqueza do indivíduo. Por isso proibiram os grupos, as
organizações sociais.
Surgiu um movimento que lutava por igualdade de oportunidades
para todos. Esse movimento está na base das organizações operárias
e do movimento socialista. Durante o séc. XIX, houve oposição dos
chamados liberais: o que importa é a liberdade. Os socialistas
desejavam estabelecer igualdade, porque, sem igualdade, a
liberdade seria uma farsa, existindo somente para alguns, e seria
um privilégio, não um direito. O movimento socialista foi
combatido, considerado subversivo e ilegal, tanto que o congresso
que gerou o Manifesto Comunista foi realizado na Alemanha e na
França, porque a polícia perseguia as pessoas.
No final do séc. XIX, ficou muito evidente a prática de
injustiças, a violência e a marginalização. Surgiu um documento
muito importante, em 1891, feito pelo Papa Leão XIII: a encíclica
“Rerum Novarum”, que fala sobre direitos sociais. Despontou um
movimento denominado cristianismo social. Nessa encíclica, o Papa
destaca a importância do que denominou de “corpus intermediarius”.
As organizações sociais é que eram proibidas. Entre o indivíduo e
o Estado, é importante que haja o “corpus intermediarius”, porque
o indivíduo que não é rico, que não tem poder econômico pode
pouco. Dessa maneira, vai-se desenvolver essa idéia da associação.
Apesar disso, não se corrigem as injustiças, e vem a Primeira
Guerra Mundial, que durou de 1914 a 1918. Terminada essa guerra,
vão acontecer coisas muito importantes. Aliás, pouco antes de
terminar essa guerra, houve a revolução socialista russa, que tem
uma história extremamente curiosa. Os nobres russos, que eram
muito arrogantes, resolveram entrar na guerra, que, para eles,
seria uma espécie de esporte. A Rússia era muito atrasada, não
tinha indústrias. Convocaram os trabalhadores rurais para compor o
exército, para que eles desfilassem os seus belos cavalos. Quando
os nobres viram que aquilo não era interessante, resolveram sair
da guerra e pediram aos trabalhadores que devolvessem as armas. Os
trabalhadores devolveram tiros, e não, armas. Eles aproveitaram a
situação e fizeram a revolução. Isso contrariou toda a previsão
teórica de que a revolução socialista aconteceria num país
altamente industrializado, porque o trabalhador da indústria teria
mais consciência e mais organização. Aconteceu num país que vivia
na Idade Média, que era basicamente agrícola, por causa da
circunstância histórica. Então, cria-se a República Socialista
Russa, que mais tarde seria a União Soviética. E, paralelamente,
cria-se a Organização Internacional do Trabalho - OIT -, um órgão
muito importante.
Pois bem, a história continua. No mundo capitalista, o Presidente
americano Franklin Roosevelt fez uma proposta de alguma
intervenção do Estado, o chamado “New Deal”, que é um novo acordo
social, porque já estava com medo do comunismo. Ele achava que, se
não fizessem alguma concessão, os trabalhadores iriam revoltar-se,
haveria uma revolução comunista e eles perderiam tudo. Mas isso
foi prejudicado pela Segunda Guerra Mundial, que, em grande parte,
foi produto das injustiças sociais.
Terminada a Segunda Guerra Mundial, a humanidade entra numa nova
fase da sua história. Um sinal bem evidente dessa nova fase foi a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Quando se
discutia que nome dar a essa declaração, a delegação francesa
achava que o documento deveria se chamar Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão. Mas estava presente na reunião Eleanor
Roosevelt, viúva do Presidente Roosevelt, que disse que eles a
haviam enganado uma vez e não iriam enganar outra e que os
direitos deveriam ser da pessoa humana, “human rights”. A
expressão “direitos humanos” é muito importante, porque são
direitos de todos os seres humanos. O art. 1º diz que todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Depois, a própria ONU aprova dois documentos importantíssimos dos
chamados pactos de direitos humanos. Pacto é sinônimo de tratado
em que participam muitos Estados. E também vai-se revelar uma
disputa que está presente ainda hoje. De um lado, os países
capitalistas, dizendo que o importante é a declaração dos direitos
civis e políticos. É preciso declarar que todos são livres, que
todos têm a liberdade de movimento, a liberdade de expressão, o
direito à intimidade e os direitos políticos. Com esses direitos,
a humanidade resolveria os seus problemas. E os outros, liderados
pelo socialismo, disseram que não era isso.
Era preciso afirmar, com a mesma força, os direitos econômicos,
sociais e culturais. Mas não houve acordo entre eles. Então, em
vez de se fazer apenas um pacto de direitos humanos, segundo a
proposta inicial, fizeram dois: o pacto de direitos civis e
políticos e o pacto de direitos econômicos, sociais e culturais.
A diferença dos pactos em relação à declaração é que esta não
pode ser usada num tribunal, pois não é um documento de valor
legal. Ao passo que o pacto é um tratado, tem força de lei. Então,
é possível ir ao tribunal com base no pacto.
O Brasil, após 20 anos de muita luta e esforço, aprovou os dois
pactos. No entanto, os Estados Unidos até agora não aprovaram o
Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Isso porque,
para o atendimento dos direitos econômicos, sociais e culturais,
há necessidade de recursos públicos, de políticas públicas. É
preciso gastar dinheiro, e, para isso, é preciso cobrar impostos.
Mas os burgueses, os ricos não querem pagar impostos, pois acham
isso um desperdício. Não concordam com a idéia de se dispor de
dinheiro para dar escola aos filhos dos outros. Dizem que isso é
injusto, apesar de ganharem alguns milhões, em detrimento de
outros que não ganham nem mesmo o salário mínimo. Daí, a absoluta
necessidade das políticas públicas.
Assim, uma das grandes lutas no mundo, hoje, é para dar
efetividade aos direitos econômicos, sociais e culturais. Aliás, a
própria noção desses direitos foi ficando mais clara, ou melhor,
alargando-se. Dessa forma, no mesmo momento em que a ONU aprovou a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, também aprovou a
criação da Organização Mundial de Saúde - OMS.
A Constituição brasileira diz que a saúde é um direito de todos e
dever do Estado. Mas o que é ter direito à saúde? Discuti isso com
meu colega - muito conservador, reacionário mesmo - na Faculdade
de Direito, e ele dizia que é uma bobagem, um absurdo fazer
constar o direito à saúde na Constituição, porque o Estado não
pode impedir que uma pessoa fique doente. Então, eu respondi que,
sendo assim, o direito à vida também não deveria existir, pois o
Estado também não pode impedir que uma pessoa morra. É lógico que
ele estava enganado, pois há um conceito jurídico de saúde,
proposto pela OMS.
Logo, o que é saúde? É o estado de completo bem-estar físico,
psíquico e social. Isso é extremamente importante em termos
jurídicos, ou seja, na luta por seus direitos. Traduz-se na
possibilidade de se propor uma ação judicial para exigir uma
iniciativa do Governo, pois esse é um direito constante da
Constituição.
Assim, uma pessoa que se vê obrigada a morar num casebre de
favela não tem o seu direito à saúde respeitado. Sem uma moradia
decente e digna, não há bem-estar físico, psíquico e social. Além
do mais, uma pessoa que não consegue alimentação básica mínima
também não é atendida no seu direito à saúde. Da mesma forma são
as questões relativas ao meio ambiente e ao transporte, tudo
ligado ao direito à saúde, dada a sua importância. Portanto, o
direito à saúde consta de um pacto, assinado pelo Brasil. Dessa
forma, no Brasil, saúde é lei, é direito vigente.
Finalmente, sobre os diversos atores sociais na proteção dos
direitos humanos, pergunto: quem são esses atores? Ator é aquele
que age. Então, quem pode agir na defesa dos direitos sociais? De
acordo com a Constituição brasileira, esses direitos são direitos,
mas também são deveres. São direitos de todos e deveres de todos.
Então, todos os seres humanos possuem esses direitos. Isso é o que
consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na
Constituição brasileira.
E quem deve agir? Ressalto que temos a Constituição mais
democrática de toda a história brasileira, porque foi feita com
grande participação popular. É a Constituição mais democrática
também pelo seu conteúdo, pois começa afirmando: “O Brasil é um
Estado Democrático de Direito”. Os princípios de cidadania e de
dignidade da pessoa humana são fundamentos da República
brasileira. Aquilo que está na Constituição é uma obrigação.
Procurar meios para que a dignidade seja preservada e dar
condições para o pleno exercício da cidadania não é um favor feito
a ninguém, é um dever constitucional.
Abrirei um parêntese para contar um pequeno fato acontecido no
Estado de Minas Gerais, extremamente significativo. Viajávamos
pregando a Constituinte, como uma espécie de caixeiros viajantes
da Constituinte, vendendo a idéia, explicando o que era, dizendo
que as pessoas tinham direito de participar. Fui a Montes Claros
para apresentar uma palestra sobre a Constituinte. Lá, disseram-me
que uma delegação de mulheres do Bairro Tiradentes queria entregar
um documento com reivindicações para a Constituinte, relacionado,
sobretudo, à igualdade dos direitos das mulheres. Confesso que
isso foi uma injeção de ânimo fabulosa para mim, pois, se as
mulheres do Bairro Tiradentes já tinham essa consciência, a guerra
estava ganha. Muitos brasileiros, muitas mulheres têm essa
consciência. Esse é o nosso caminho. E foi a partir daí que
colocamos na Constituição, e várias vezes, que é proibido
discriminar as mulheres. Isso não aconteceu porque o homem
brasileiro deixou de ser machista, mas porque as mulheres
conquistaram isso, trabalhando e lutando juntas. A força do grupo
compensa a fraqueza do indivíduo. E, assim, colocamos os direitos
humanos fundamentais, os pactos de direitos humanos e uma série de
afirmações de direitos da pessoa e dos direitos dos grupos sociais
na Constituiçao. Essa é a primeira Constituição brasileira que
diz: “todo poder emana do povo”. Ou seja, o poder vem do povo. As
outras Constituições diziam: “todo poder emana do povo e será
exercido através de representantes eleitos”. E a Constituição
atual acrescenta uma frase fundamental: “todo poder emana do povo
e será exercido através de representantes eleitos ou diretamente
pelo povo”. É a democracia direta. Brasil: Estado democrático de
direito. A democracia é, ao mesmo tempo, representativa e direta.
E há vários instrumentos de ação popular previstos na
Constituição.
Era a esse ponto que queria chegar, porque muitos estarão se
perguntando: “o que posso fazer?” Então, respondo à questão
colocada no título da palestra: “Quem são os atores sociais?” Cada
um de nós é um ator social e tem o direito de agir sozinho, se
quiser. A Constituição prevê, por exemplo, a ação popular para
anular atos do poder público que sejam contrários ao patrimônio
público ecológico e cultural ou a qualquer interesse do povo.
Qualquer cidadão pode agir para anular esses atos. A Constituição
dá competência às associações para agir na defesa dos indivíduos,
dos grupos sociais ou de toda sociedade. Se me perguntarem: quem
são os atores sociais? Quem pode agir, no Brasil, na defesa dos
direitos sociais? Começaria pelo Poder Legislativo, que tem essa
obrigação e dever, que decorre da própria Constituição. É o dever
de legislar, de maneira que os direitos humanos sejam atendidos.
E, entre outras coisas, o desenvolvimento de políticas públicas.
O Legislativo tem o dever de participar da fixação da política.
Citarei uma situação que mostra como o Legislativo tem falhado
nesse aspecto e farei referência ao Legislativo nacional, ao
Congresso Nacional. Está escrito na Constituição: ”Compete, com
exclusividade, ao Congresso Nacional decidir definitivamente sobre
os acordos internacionais de que o Brasil participe”. Nenhum
acordo internacional tem valor, no Brasil, se não for aprovado
pelo Congresso Nacional. Os famosos acordos com o FMI não são
aprovados pelo Congresso Nacional, e seus membros deles tomam
conhecimento pelos jornais. O Congresso encontra-se inerte, quando
deveria exigir seu direito e dever constitucionais. Devido a esses
acordos, quanto prejuízo é acarretado aos direitos humanos, quanto
desemprego. E isso é algo terrível. Há dois dias, a campainha
tocou em minha casa e, ao atendê-la, ouvi um homem, entre seus 40
e 50 anos de idade, muito educado, claramente constrangido e
envergonhado, dizer-me que era um trabalhador e encontrava-se, há
mais de um ano, desempregado, não tendo como sustentar sua
família, o que o motivava a pedir. Vejam, transformaram um
trabalhador em mendigo. E isso enquanto destinamos muitos milhões
para o pagamento de juros altíssimos de agiotas internacionais.
Essa é a prioridade do nosso Governo? É a prioridade do nosso
orçamento? E o Legislativo tem esse papel no plano nacional,
estadual e municipal. Ele aprova o orçamento e, nessa aprovação,
discute a destinação dos recursos, as políticas públicas e deve
estar vigilante.
A Constituição diz que a criança deve ser tratada como
prioridade. Quero saber quanto, do orçamento, está sendo destinado
às crianças. E aqui entra um dado muito importante, no qual
insisto: o direito e o dever de agir em grupos. Cada um de nós
sozinho pode pouco, mas associados podemos muito. A Constituição
dá direitos ao cidadão, mas também dá aos grupos sociais direito
de agir. Os grupos sociais podem anular atos do Governo, têm o
direito de petição, têm o direito de agir em juízo para impor a
responsabilidade até criminal a quem agir contra a Constituição,
contra os direitos do povo.
A Constituição dá esses meios e essas obrigações para os atores.
E quem são os atores? O Legislativo - já mencionei - e o
Executivo. Aqui lembro a questão da Defensoria Pública: o
Executivo não encontra meios, não tem recursos para implantar a
Defensoria. Mas sua implantação é constitucional, é dever, é
prioridade. Um dado importante: aqui foi mencionada a expressão “o
contingenciamento”. Ela é uma das grandes safadezas do nosso tempo
e vem na esteira da globalização. A globalização é a maior mentira
que se tem pregado nos últimos tempos. Essa idéia de globalização
é nova e vem junto com o neoliberalismo. O liberalismo dizia que o
Estado não interfere, e neoliberalismo é isso: vamos tirar o
Estado das políticas sociais, porque senão terei de pagar imposto.
E quando foi que cresceu essa globalização, a proposta neoliberal,
o contingenciamento que, traduzindo, é congelamento? E o Governo
Fernando Henrique foi “doutorzíssimo” nisso. Colocou verbas muito
boas, por exemplo, para a demarcação de áreas indígenas, e,
depois, contingenciou. Não se gasta um tostão: está
contingenciado. Se sobrar dinheiro, eu uso; se não, não uso. E
nunca sobrava. O contingenciamento, a flexibilização dos direitos
- outra vigarice para esconder a redução dos direitos -, isso tudo
ganhou força a partir de 1991, com o fim da União Soviética.
Antes, os países capitalistas tinham medo do comunismo e por isso
faziam concessões. Permitiam políticas sociais: que fosse
destinado algum dinheiro para a escola, para a saúde dos pobres e
para algumas pálidas políticas habitacionais. A União Soviética
não acabou porque sofreu uma derrota militar, acabou de dentro
para fora, pois formou-se uma elite corrupta que acumulou muito
dinheiro e desviou-se dos objetivos declarados na Constituição
socialista. Hoje, é um país capitalista, a República Federativa da
Rússia. Aí, os países capitalistas alegaram que não fariam mais
concessões, porque não havia mais risco. Agora é globalização; as
fronteiras estão abertas; não há mais limites para o dinheiro e as
mercadorias circularem pelo mundo. Mas vejam a contradição:
continuam os limites para a circulação dos trabalhadores, das
pessoas. Ou seja, o que interessa é a circulação do dinheiro.
Muito dinheiro que aparece no Brasil sob o rótulo de investimento
é capital “turista”, uma jogatina que se faz.
Os grandes jornais noticiam freqüentemente que o mercado está
nervoso. Essa história irrita-me profundamente. Porque o mercado
está nervoso, o Governo tem de manter juros altos e pagar o
agiota. Interessa-me saber se o povo brasileiro está nervoso. Essa
é a situação que estamos vivendo.
Já avançamos muito em termos de consciência de direitos humanos e
de organização social. Hoje, o número de organizações sociais no
Brasil é muito grande. É preciso aproveitar esse avanço sem temor,
sem concessões, denunciando e exigindo. Temos de ser efetivamente
os atores na defesa e na promoção dos direitos humanos. Por esse
caminho, corrigiremos as injustiças, fiscalizando o desempenho dos
órgãos públicos e exigindo a destinação de recursos decentes e
adequados.
Concluo com a belíssima frase do Papa João XXIII: “Justiça é o
novo nome da paz”. Se trabalharmos para eliminar as injustiças,
conquistaremos a paz, a paz da consciência de cada um, a paz para
o povo brasileiro, para a humanidade.