Pronunciamentos

CLÓVIS FERRAZ, Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa da Bahia - BA.

Discurso

Discursa sobre o tema: "Transposição das Águas do Rio São Francisco".
Reunião 132ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 19/05/2001
Página 21, Coluna 3
Evento Ciclo de Debates: "Minas em Defesa das Águas".
Assunto RECURSOS HÍDRICOS.
Observação Participantes dos debates: Fernando Antônio Leite, Júlio César de Souza, Roberto Kazuhiko Zito, Helena Alves.

132ª REUNIÃO ESPECIAL DA 3ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 7/5/2001 Palavras do Deputado Clóvis Ferraz Exmo. Deputado Wanderley Ávila, 2º Secretário desta Casa e coordenador dos debates, na pessoa do qual cumprimento todos os componentes da Mesa, Deputados, Deputadas, autoridades presentes, senhores e senhoras. Represento o Presidente da Assembléia Legislativa, Deputado Reinaldo Braga, e o pensamento do Governo do Estado da Bahia sobre a transposição das águas do São Francisco. Faz parte da minha trajetória parlamentar, a preocupação com as questões referentes aos recursos hídricos e a todas aquelas que afetem os recursos naturais como um todo. Já na minha primeira legislatura, a partir de 1995, assumi a Presidência da Comissão da Seca, dos Recursos Hídricos e da Irrigação e me tornei membro da CIPE-São Francisco e nesta condição, junto com parlamentares da Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Minas Gerais e outras autoridades participamos, em 1996, de um ato memorável, no Dia Internacional do Meio Ambiente, na Serra da Canastra, neste Estado, e ali, naquele momento inesquecível e local indescritível, por se tratar da nascente do São Francisco, assinava o Sr. Presidente da República, Dr. Fernando Henrique Cardoso, com toda a pompa e rigor protocolar que, em certa medida, não combinavam com a rara beleza natural do local, o documento "Compromisso com a vida no São Francisco". Hoje, lembro-me do lampejo de esperança daquele ato e momento, mas que, lamentavelmente, não passou de palavras que o vento forte daquele altiplano levou, pois, de concreto, nada foi feito pelo Sr. Presidente da República para salvar o Velho Chico. Ao contrário, o Presidente está levando avante uma idéia oposta ao do compromisso da Serra da Canastra. Nesta oportunidade, em que toda a sociedade nordestina, governadores, técnicos, políticos e ambientalistas discutem a transposição do São Francisco, é nosso dever, não apenas como defensor dos interesses do Estado da Bahia, mas especialmente como parlamentar e cidadão expressar a nossa posição com referência a essa questão. Posição essa do Governo e da Assembléia Legislativa do Estado da Bahia. Nascendo na Serra da Canastra, em Minas Gerais, o rio São Francisco, formado há cerca de 100 milhões de anos, é a única bacia hidrográfica que nasce no Cerrado e se dirige para o semi- árido nordestino. Considerado o Rio da unidade nacional, integra 464 cidades, 14 milhões de habitantes. Além dos múltiplos usos de suas águas, ainda apresenta um potencial de 800 mil ha de área irrigada, com viabilidade econômica, em sua própria bacia hidrográfica. O rio perdeu grande parte do seu potencial, em função da ação predatória, dos desmatamentos que causaram o assoreamento, carecendo de medidas de defesa como a reposição das matas ciliares, o desassoreamento e a despoluição. Navegável no passado, os vapores que percorriam o rio, ora fazendo o transporte de produtos e mercadorias, ora, conduzindo passageiros, não mais o fazem. Tudo isso, deve-se à poluição das águas do Velho Chico por empresas industriais e agroindustriais, que despejam, em seu leito, resíduos químicos e metais pesados, além de dejetos, o que tem causado prejuízos sociais e econômicos a toda a população ribeirinha, atingida por problemas de saúde, além de promover o assoreamento do próprio rio. Diante desses fatos, fica cada vez mais difícil a implantação da hidrovia e sua interligação com a rede ferroviária (caso esta também tivesse sido preservada) e rodoviária, através de um corredor intermodal de transporte. Dada a sua importância, faz-se necessário estabelecer uma relação entre o futuro desse grande manancial e os problemas ambientais de maior dimensão, para que se possa prever os riscos e vulnerabilidades aos quais ele está sujeito. Cabe ressaltar que, nos meios científicos, muito se tem falado sobre uma possível mudança climática no planeta, como resultado das emissões de dióxido de carbono e de outros gases. Embora não haja uma certeza de como a biosfera responderá à acumulação desses gases, grande parte da comunidade científica internacional acredita na elevação da temperatura média do globo e do nível das águas do oceano. Ao lado dessa idéia predominante, existe praticamente um consenso de que haverá também uma modificação no regime pluvial em muitas regiões. Contudo, a incerteza predomina quando se deseja saber se em um determinado local haverá acréscimo ou decréscimo na pluviosidade média. Segundo informações do Grupo de Recursos Naturais do Projeto ÁRIDAS, há indícios de que possam ocorrer os seguintes processos: aumento da evaporação, modificação do regime pluvial com perspectivas das chuvas tornarem-se mais intensas e com maior variabilidade interanual. Isso é preocupante, apesar de o Brasil dispor do invejável volume de 12% da produção hídrica mundial (água doce) em seus rios (177.900 m3/s) e 53% do continente sul-americano. O semi-árido representa 10% do território nacional, e é aí que está a discrepância dos números fantásticos, ao compararmos as três grandes unidades hidrográficas do país: Amazonas, Paraná e São Francisco, juntos, representam 80% da produção hídrica nacional e abrangem 72% do território brasileiro. Na comparação com a densidade demográfica, aparece a nítida escassez de água: Região Amazônica 5 habitantes por km² - 72% da produção hídrica; Região do Paraná - 25 a 100 habitantes por km² - 6% da produção hídrica e a Região do São Francisco - 5 a 25 habitantes por km² - 1,7% da produção hídrica. Na atualidade, o Nordeste possui apenas 3,2% da água doce do País, sendo que, desses 3,2%, cerca de 70% estão no rio São Francisco, e o mais grave, o Nordeste abriga 30% da população do País. Além dessas limitações, a ONU informa que, nas primeiras décadas do século XXI, 1/3 dos países do mundo enfrentará escassez de recursos hídricos. Apenas 1% dos 2,5% de água doce do planeta está disponível para o consumo e se encontra armazenado em aqüíferos subterrâneos, lagos e rios. A disponibilidade hídrica da Região Nordeste, da ordem de 97.300.000.000m3 por ano, está inclusive regionalmente concentrada nas bacias do rio São Francisco e do rio Parnaíba. A tradicional realização de um balanço oferta X demanda, quando se utilizam valores médios para uma região como a nossa, tendo em vista os longos períodos de estiagem, que, periodicamente, nela se estabelecem e inibem o desenvolvimento dos meios de produção, afetando, conseqüentemente, a qualidade de vida das populações que habitam o chamado Polígono das Secas, pode levar a visões distorcidas da realidade vivida no semi-árido nordestino. Ademais, o regime hidrológico dos rios intermitentes da região é bastante crítico, pois depende de um regime pluviométrico irregular, tanto em nível mensal quanto no anual, da natureza geológica das rochas, na grande maioria cristalina, e de um clima megatérmico de alto poder evaporante. A integração dos fatores que mencionamos é diretamente responsável pelas características extremadas do escoamento, ora se evidenciando cheias de grandes proporções, contrapondo-se a períodos de demorada escassez, resultando na inadequabilidade do balanço tradicional entre oferta e demanda dos recursos hídricos na região semi-árida. Além do mais, as disponibilidades hídricas se concentram nas margens dos açudes e dos rios perenes ou perenizados, fazendo com que as áreas mais afastadas das infra-estruturas hídricas, que representam a grande maioria da região, não tenham acesso à água, não se tendo por isso uma avaliação confiável do conflito oferta X demanda nessas áreas. No semi-árido nordestino, uma grande parte do sistema de obras hídricas foi projetada e construída com base em informações não compatíveis com a variabilidade hidrológica da região e antecedem, em grande medida, ao próprio desenvolvimento teórico de conceitos pertinentes a essa área. Daí a importância de bem estudar os vários tipos de viabilidade dos novos investimentos, principalmente do projeto de transposição, cujo nível de complexidade, no que tange a possíveis conseqüências de ordem econômica ambiental e social, requer uma revisão na concepção atual do referido projeto. Esse é o cenário atual da situação hídrica na Região Nordeste do Brasil, que serve de base e de alerta para a gravidade de qualquer tipo de intervenção que não esteja fundamentada em estudos amplos e aprofundados sobre os recursos hídricos e ambientais da região como prioridade absoluta. Na região, grosso modo, só ficam imunes ao flagelo da seca as cidades abastecidas com água do São Francisco ou aquelas abastecidas com águas subterrâneas de aqüíferos sedimentares, o que expõe a vulnerabilidade de vários sistemas de águas superficiais no semi-árido. O Programa de Irrigação do Nordeste proposto - mas não realizado - pelo PLANVASF previa como meta, a ser alcançada até o ano passado, a implantação de 593.821ha com exploração irrigada, em nível de projetos públicos e privados, e, segundo o PLANVASF, haveria garantia de abastecimento de água suficiente, obtida de rios permanentes próximos, subsidiários do São Francisco ou deste próprio. O programa previsto para ser implantado entre 1989 a 2000, e que não aconteceu; não teria o perigo da incompatibilidade com o setor de geração de energia elétrica. O programa visava à ordenação do processo de implantação de irrigação no vale do São Francisco, estabelecendo prioridades em nível de áreas-programa e prevendo a participação de cada Estado no total geral da área irrigada que se julgava viável implantar, com os recursos operacionais e financeiros de que se viria a dispor e tendo presente a compatibilização com outros usos dos recursos hídricos. Segundo o PLANVASF, admitindo-se a demanda unitária de 20.750 m3/ha/ano, a demanda total de água requerida, abrangendo as áreas atualmente irrigadas e as projetadas, num total de 803.221ha, será de 16.700.000.000 m3 por ano. Admitindo-se também que 30% desse volume volta ao rio, por drenagem dos terrenos irrigados, o consumo efetivo será de cerca de 11.700.000.000m3 por ano, que corresponde a cerca de 12.5% da vazão anual do rio São Francisco em Traipu. Com base na estimativa da evolução da área irrigada preparada pelo Grupo de Ordenamento do Espaço Regional e Agricultura do Projeto Áridas, a área irrigada do Nordeste da SUDENE atingirá 1.115.631ha no ano 2020, representando um aumento de cerca de 134% com relação à área irrigada de 1991. Não seria demais insistir no fato de que a sustentabilidade dos recursos hídricos do semi-árido nordestino passa pela adoção de uma política para esses recursos, a qual estabeleça níveis crescentes de proteção contra os efeitos das secas. Nesse caminho, pode-se afirmar que todo projeto é feito para o futuro, porém o futuro, dentro de certos limites determinados pela história, é imprevisível. Os sistemas hídricos são acentuadamente vulneráveis a esse tipo de imprevisibilidade. O processo de projetar obras hidráulicas inicia-se por observar os eventos do passado e, com base nessas observações, estabelecer as faixas de previsibilidade, de imprevisibilidade e o grau de vulnerabilidade dessas obras. O bom projeto deve ser aquele não muito caro; portanto ao alcance da sociedade e pouco sujeito a falhas e não desconfortável para a sociedade. A falta de estudos técnicos mais completos relativos à viabilidade econômica e social, principalmente os referentes ao impacto ambiental, desaconselha uma tomada de decisão imediata quanto à execução do projeto de transposição do rio São Francisco para os Estados da Paraíba, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Ademais os custos projetados - em torno de R$3.000.000.000,00, além de excessivamente caros, podem comprometer a viabilidade do projeto, admitindo-se que ao final da sua execução esteja previsto esse custo de R$10.000.000.000,00. No projeto não estão incluídos os custos com a distribuição e com as adutoras secundárias. Outra possibilidade, menos prejudicial aos Estados da Bahia, de Sergipe e de Alagoas, seria a interligação da bacia do rio Tocantins com a do rio São Francisco, considerada por muitos especialistas como a melhor alternativa para resolver a carência de água no semi-árido nordestino. Não se trata, pois, de ser contrário aos benefícios que serão proporcionados pela transposição do São Francisco a cerca de 2 milhões de pessoas que habitam 268 cidades nos quatro Estados. Trata-se, na verdade, de considerar que uma das características das democracias avançadas é a participação do público na tomada de decisões. No Nordeste, como no Brasil em seu todo, essa prática ainda é incipiente e envolve um processo de mudança cultural. A implantação de grandes obras, como o são, em geral, as obras de aproveitamento hídrico, normalmente implica conflitos de interesses. Esses interesses podem variar desde alguns altruístas até os egoístas. É sabido que a condução hábil das discussões públicas tende a gerar melhores projetos e a eliminar problemas que surgem quando o público se defronta com uma decisão já tomada de uma obra que exercerá grande influência no seu futuro. Não existe obra capaz de captar a unanimidade da opinião pública. Ademais, a imposição, mesmo de bons projetos, nunca é bem aceita por seres livres e pensantes. Ora, um projeto que chega ao público pronto e acabado, perfeito, segundo os seus idealizadores, gera, forçosamente, um sentimento de projeto imposto. Nessas circunstâncias, realçam-se os pontos negativos, esquecem-se os positivos. Em conseqüência, mesmo um bom projeto, se mal conduzido em termos de participação do público, pode ter seu início bastante atrasado ou mesmo inviabilizado. Um exemplo da importância desse processo se aplica ao caso específico da proposta de transposição do rio Francisco. Considerado patrimônio nacional, o que a comunidade de cientistas, os ambientalistas e toda a sociedade em geral desejam é priorizar a sua preservação, objetivando garantir a sua sobrevivência e a sobrevivência de milhares de pessoas que dependem da riqueza e da multiplicidade de usos do rio. Vale registrar que a contribuição básica da transposição do São Francisco seria fornecer água para o consumo humano. Hoje, constata-se que 73% da água transportada seria destinada à irrigação, o que é lastimável, enquanto que somente 20% estariam disponível para o consumo humano. Essas metas são compatíveis com as características da Região Nordeste, onde predominam os mais baixos índices de pobreza do País? Antes de se pensar em outra medida relacionada com a transposição, seria importante partir para um amplo programa de recuperação de seus afluentes, antes que o rio deixe de oferecer as condições de abastecimento e sobrevivência à população ribeirinha. Salientamos, ademais, que na atualidade estamos na iminência de uma crise no setor de energia. Como se poderia admitir a utilização de 360MW de energia para operar o sistema, dado que para tanto será necessário superar distâncias de 2.000km e desníveis acima de 300m? O problema de distribuição de água no Nordeste não é horizontal, mas sim espacial, ou seja, não é mais uma linha d´água (canal) que vai resolver o problema, pois, se assim o fosse, não haveria gente passando sede a poucos quilômetros da calha do São Francisco. Enfim, o que se precisa é de um plano decenal de recursos hídricos sustentável, que contemple a execução de obras hídricas como barragens, açudes, poços artesianos, adutoras, perenização de rios e manejo adequado de bacias hidrográficas. Por fim, há que se perguntar: "Por que devemos insistir nesse projeto tão polêmico, tão controverso, de tão alto custo, a título de promover a irrigação em uma região de tamanha escassez de água, quando os países desenvolvidos, considerando o incomensurável valor da água, estão reduzindo suas áreas irrigadas, como é o caso da Califórnia, nos Estados Unidos da América?". Queremos, pois, um projeto sustentado em todas suas dimensões: política, social, econômica, financeira e ambiental.