Pronunciamentos

CICERO ROMÃO DE ARAÚJO, Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP. Professor do Departamento de Ciência Política da USP.

Discurso

Comenta o tema do evento.
Reunião 2ª reunião ESPECIAL
Legislatura 16ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 24/02/2010
Página 39, Coluna 2
Evento Painel temático: " Os dilemas da representação e o papel do Parlamento nas democracias contemporâneas."
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. (ALMG)
Observação Este evento é parte das ações da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais para subsidiar a elaboração de seu planejamento estratégico para 2010 - 2020.

2ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 16ª LEGISLATURA, EM 11/2/2010 Palavras do Sr. Cícero Romão Resende de Araújo Bom dia a todos. Cumprimento os meus colegas Paulo Kramer e Cláudia Feres, com quem tenho a satisfação de compartilhar esta Mesa. Cumprimento a Assembleia Legislativa, na pessoa de seu Presidente, Deputado Alberto Pinto Coelho. É uma satisfação e uma alegria participar desta atividade de reflexão promovida por esta Casa. É a primeira vez que venho aqui. Agradeço o convite da Assembleia, especialmente da Escola do Legislativo. Fiquei positivamente impressionado pela preocupação desta Assembleia, do seu corpo técnico-administrativo por fazer esta discussão, porque não é algo muito frequente. Não encontramos isso de forma tão sistemática. A Patrícia, que fez o contato comigo, deu-me a oportunidade de ver alguns materiais que a Assembleia produziu, especialmente a Escola do Legislativo. Pude ver suas publicações e seu “site”. Então, com muita satisfação, faço este diálogo com vocês. Espero que possa continuá-lo posteriormente. Havia alertado à Patrícia, que me apresentou o título da discussão de hoje, que seria importante checar nossas expectativas a respeito deste debate, porque não sou estudioso de Legislativos Estaduais, não sou pesquisador que se concentra no estudo do Poder Legislativo. Há alguns anos, dedico-me ao estudo do conceito de representação política. Alertei-a de que minha contribuição hoje seria mais de natureza teórica, abstrata. Apesar de mais abstrata, eventualmente essa abordagem pode encaixar-se, de alguma forma, no espírito dos trabalhos de hoje. Como a resposta da Patrícia foi positiva, orientarei a minha exposição nesse sentido. Pretendo tentar ser breve, para que, depois, possamos ter espaço para o debate. Vou fazer alusão a algumas coisas, mas, posteriormente, poderemos dissecá-las um pouco mais. Apesar de a minha intervenção ser um pouco mais teórica, no final procurarei fazer uma alusão à experiência brasileira recente, porque sei que o Brasil e sua diversidade política regional acaba sendo a questão de maior interesse prático. Posto isso, gostaria de registrar que existe uma imensa literatura acadêmica aflorando, nos últimos anos, sobre a chamada crise da representação política, como livros, artigos, teses, dissertações, seminários nacionais e internacionais. Já existem publicações acadêmicas no Brasil, um material relativamente amplo. Tomei a iniciativa de trazer um material para deixar com vocês, por exemplo, a edição da revista “Lua Nova”, que é de um centro de estudos políticos de São Paulo. Editei essa revista há tempos, mas deixei de sê-lo hoje. Ela traz um dossiê sobre o futuro da representação política. Há outras publicações a respeito que talvez sejam de interesse dos colegas da Assembleia, bem como dos Deputados. Quando digo crise da representação política, não estou referindo- me propriamente a um fato incontestável. Dizemos que é fato incontestável, por exemplo, que o homem chegou à Lua em 1969 ou que houve um terremoto no Haiti no mês passado. A crise da representação não é um fato incontestável como o são os fatos da natureza. Há uma discussão na literatura sobre a existência de uma crise da representação política ou não. Porém, esse é um tema da agenda, e o interessante nesse debate é menos até reconhecer o fato, mas perceber que acabou criando a oportunidade de haver uma espécie de revisão do conceito de representação. Por isso é um conceito muito complexo. O debate sobre a crise da representação acabou levando muitas pessoas, especialmente as que têm inclinação mais teórica, a indagar: afinal, o que é representação política? Quando falamos de representação, estamos nos referindo a quê? O que é, para que ela serve? Qual é a sua necessidade? Qual é o seu propósito? Por que se diz que as democracias modernas são representativas? Por que se diz que o instituto da eleição e da representação são termos indissociavelmente ligados? De que forma a ideia de representação se liga à ideia de partido, de parlamento? E por aí vai. O interessante é que a discussão do conceito de representação aparece e desaparece, depois volta a aparecer. E não é a primeira vez, na história do conceito, que a discussão da crise da representação aparece: houve uma discussão famosa no início do século XX, um debate especialmente europeu, que encontra muita força teórica na Alemanha. O debate registra justamente que há uma crise da representação política. Essa discussão do início do século XX foi também uma oportunidade muito grande de se fazer a recapitulação do conceito de representação: o que é, para que serve, qual a relação disso com o parlamento, etc. Isso é um pouco o que está acontecendo hoje. Parte dessa literatura, até por conta do conhecimento da história do debate sobre o conceito, diz que, na verdade, não se trata de falar de crise da representação em si, mas de crise de uma forma que predominou, assim como outras formas de representação política predominaram em outros momentos da história do governo representativo. O Prof. Paulo Kramer mencionou um livro muito interessante do Bernard Manin sobre os princípios do governo representativo, em que ele acentua muito bem como a ideia de governo representativo é anterior ao advento dos regimes democráticos. Existe uma experiência pré-democrática do governo representativo. O interessante é que, na experiência prévia, pré-democrática do governo representativo, a forma partido, no sentido moderno que o termo “partido” tem, não existia. A primeira grande crise da experiência do governo representativo é justamente quando surge a forma partido. Aliás, ela surge por fora do parlamento. Falarei um pouco mais sobre o parlamento porque vale a pena lembrar, como o Prof. Paulo Kramer já disse, que o parlamento é uma instituição anterior até mesmo à ideia de governo representativo. Uma das coisas que mais surpreende o estudioso da política moderna é a capacidade que o parlamento teve de sobreviver às muitas e profundas transformações políticas de séculos. Nessa literatura sobre crise da representação política, quando se diz que não é a representação em si, mas a forma que prevaleceu no século XX, fala-se exatamente da crise da forma partido. Quando se fala em crise da representação política, fala- se não exatamente da representação em si, mas da forma que a representação, durante o advento da experiência democrática ao longo do século XX, foi predominante, que é a forma partido. Quem discute isso diz: se a forma partido está em declínio, em que direção está indo a representação política se a ideia e a prática da representação política for inescapável no Estado Democrático Moderno? Embora a ideia da prática da representação política possa ser inescapável no Estado Democrático Moderno, não necessariamente a forma partido o será. Há muitas coisas que poderia recuperar sobre essa retomada teórica da discussão do conceito de representação, mas não conseguirei fazer isso. A minha estratégia será condensar tudo numa questão específica, o que irá ajudar a balizar a nossa discussão. Farei uma simplificação porque minha intenção é ajudar a estabelecer alguns parâmetros para uma reflexão e essas balizas poderão ser insuficientes para responder a todas as angústias do futuro da representação. O ponto que quero destacar, que aparece nessa literatura, é que a ideia da representação possui uma dualidade constitutiva. O Prof. Paulo Kramer também fez uma alusão ao que estou chamando de dualidade constitutiva. Vou tentar conceituá-la da seguinte maneira: a representação política é ao mesmo tempo representação perante o poder e representação do poder. Ela tem essa dualidade. Alguns traduzem essa ideia de que a representação é, ao mesmo tempo, perante o poder e do poder, dizendo que a representação tem a dupla função da representatividade e da governabilidade. É uma maneira de falar dessa dualidade. Espera-se da representação um exercício combinado dessas duas dimensões, mas não estão fadadas a harmonizar-se entre si. Ou seja, embora se espere que a representação seja perante o poder e também do poder, não está determinado que, quando se exerce a representação perante o poder, se conseguirá combinar a representação do poder; que quando se exerce a qualidade da representatividade ou a função da representatividade, se conseguirá também exercer a função da governabilidade. Daí pode-se dizer que essa dualidade constitutiva pode aparecer como um dilema. Dilema quer dizer não apenas representação perante o poder e do poder, mas representação perante o poder ou do poder. O dilema é uma espécie de decorrência possível, não inevitável, dessa dualidade. Quando digo dualidade constitutiva, quero contrapor isso a uma dualidade circunstancial, eventual. Constitutiva quer dizer que está entranhada no conceito de representação política essa ambivalência. E, quando se pensa em representação e se transforma isso na prática, não há como escapar de se deparar com essa ambivalência. Muitos tentam entender a questão da crise da representação como uma espécie de manifestação aguda e, às vezes, patológica dessa dualidade intrínseca à atividade da representação política. Ela também aparece em outros termos. Por exemplo, na literatura encontraremos a dualidade perante o poder e do poder, na forma da tensão entre representar as partes e representar o todo. Como está exposto escancaradamente no parágrafo citado pelo Prof. Paulo Kramer, do Benjamin Constant, um dos grandes teóricos do governo representativo, que se espera que, de alguma forma, a representação das partes se recombine e se transforme em representação do todo. Mais uma vez, na prática da representação, a representação das partes não está fadada a se metamorfosear na representação do todo. Isso significa que há possibilidade de dilema entre representar as partes e representar o todo. Dizendo graficamente, a soma das partes não está fadada a ser igual ao todo, podendo ser menos ou mais que o todo. Outra maneira: a ideia de que para a representação ser consistente, do ponto de vista conceitual, a relação entre o representante e o representado deve ter dupla natureza. Primeiro, o representante tem de ser sensível aos interesses e às demandas do representado, mas, ao mesmo tempo, o representante tem de ter autonomia parcial em relação ao representado. O representante tem de ter nexo com o representado, mas, ao mesmo tempo, para ser representante, tem de criar distância com o representado. Se o representante é uma espécie de espelho pura e simplesmente do representado ou uma expressão puramente mimética do representado, ele não representa. Ao mesmo tempo, se ele se distancia a tal ponto de quebrar o nexo com o representado, também não representará. Há um jogo que não está fadado a se harmonizar. O representante tem de ser responsivo ao representado e, ao mesmo tempo, tem de ter autonomia em relação ao representado. Ora, quando dizemos isso, estamos falando que o representante tem de ser controlado pelo representado, mas, ao mesmo tempo, a sua autonomia inscreve na ação do representante a possibilidade do descontrole. Isso não é simplesmente desvio da representação, mas constitutivo dela. Há possibilidade do descontrole exatamente porque, para representar, o representante tem de criar uma distância em relação ao representado. Representar implica o risco da desconexão e do descontrole na relação entre o representante e o representado. Se considerarmos que a representação política é inescapável no Estado Democrático Moderno - considero que sim, mas a argumentação em relação a isso é um pouco complexa, depois podemos discutir -, o risco, a possibilidade da desconexão e do descontrole está colocada na agenda da representação. É interessante estabelecermos isso como baliza, não a única, para nossa reflexão aqui. O segundo ponto a que gostaria de me referir diz respeito especificamente ao parlamento. Havia dito a vocês, suprimindo os historiadores da política moderna, sobre a capacidade que o parlamento teve e tem de sobreviver às enormes transformações políticas; a sua capacidade em se adaptar, aos trancos e barrancos muitas vezes, a essas transformações. Estou dizendo isso porque o parlamento é uma instituição de origem europeia, medieval e feudal e, ao mesmo tempo, sobreviveu às suas origens. E não é só isso: sobreviveu ao antigo regime, à primeira forma de governo representativo, que o Manin chama de forma governo parlamentar. Apesar de o Manin caracterizar que a primeira experiência, a primeira era de governo representativo é chamada de governo parlamentar, o parlamento sobreviveu a essa primeira era e à transformação do governo representativo. Depois, se adaptou ao advento da experiência democrática, embora muitos teóricos da soberania popular - o mais famoso é Jean-Jacques Rousseau - não necessariamente inscreviam na moldura ideal da instituição da soberania popular a ideia do parlamento. Rousseau, por exemplo, tinha muita prevenção porque, evidentemente correto do ponto de vista histórico, considerava o parlamento uma sobrevivência feudal; considerava que uma sociedade que vivesse sob a ideia da soberania popular não poderia admitir essa instituição, essa excrescência feudal dentro da prática da soberania popular. Muitas queixas que ele faz no “Contrato Social” à ideia de representação não são exatamente uma queixa à representação em geral, mas à representação política porque ele a via muito associada ao parlamento. Como a ideia de soberania popular para ele implicava superação definitiva da sociedade civil, isso passava em sua cabeça pela superação do parlamento. Mas o fato é que, mesmo com o advento do ideal de soberania popular, o parlamento soube adaptar-se; soube, por exemplo, incorporar na sua prática de representação uma saturação popular, com a ideia de ampliar a representação de uma pequena camada da sociedade para o conjunto das camadas sociais por meio do sufrágio universal. O parlamento, nessa transformação do antigo regime para o governo representativo, soube assimilar a ideia de que precisava saturar-se popularmente por dentro, por meio da ampliação do direito de representação, do direito de ser representado e de representar. Posteriormente, ele também acabou assimilando, de uma forma que não é inteiramente pacífica, a forma partido dentro de si, apesar do fato de, no sentido moderno do termo, principalmente na Europa, onde ele surgiu primeiramente, a forma partido não ter surgido dentro do parlamento. O partido, em sua origem, é uma instituição derivada da chamada sociedade civil. Depois, especialmente com a assimilação da saturação popular, o parlamento assimilou a forma partido. Isso gerará a primeira crise do governo representativo. A ideia de que o parlamento seria uma espécie de palco da prática da discussão e da deliberação é típica da primeira forma de governo representativo, o governo parlamentar, ou seja, o parlamento seria o local da deliberação, que aqui tem um conceito muito específico e é relativo à possibilidade de os agentes deliberativos transformarem suas preferências iniciais por meio da discussão. Ora, quando a forma partido se imiscui dentro do parlamento, a prática da deliberação se desloca, ou seja, o parlamento - à exceção de alguns, como o americano, que, mesmo assim, foi afetado - será diminuído muito fortemente em sua dimensão deliberativa, pois, na medida em que os Deputados pertencem ao partido e têm de ser agentes de partido, sua capacidade de mudar suas preferências iniciais lá dentro diminui muito, pois isso pode implicar uma traição de seu vínculo com o partido. Isso significa que, no momento em que assimila a forma partido, o parlamento tem que sacrificar sua qualidade de agência deliberativa. É interessante que, ao mesmo tempo em que sacrifica sua qualidade de instância deliberativa, cada vez mais vai sendo reconhecida a ideia de que está cedendo um dos Poderes constitucionais, e não um Poder constitucional qualquer, mas aquele que é considerado, em várias teorias de soberania popular, como o principal: a função legislativa. É interessante que, na sua origem medieval, e mesmo depois, o parlamento não era identificado como Poder Legislativo. Essa ideia é uma evolução muito posterior. Dentro da história do governo representativo, é uma ideia relativamente recente considerar Poder Legislativo quando falamos de parlamento. Estou falando de algo relativamente recente na experiência secular do governo representativo, mas que se tornou tão lugar-comum que se incorporou à linguagem ordinária. Quando falamos de parlamento, falamos de Poder Legislativo, como se as duas coisas fossem idênticas. Aqui abro um parêntese: na verdade, descontado o que acabei de dizer da incorporação disso na linguagem, na crença comum da nossa sociedade, do ponto de vista conceitual, parece-me muito dogmático ou muito rígido dizer que parlamento é idêntico a Poder Legislativo. Nos primeiros grandes debates constitucionais modernos, que serão uma espécie de modelo do que se pensa contemporaneamente sobre Constituição, houve uma discussão muito grande a respeito da idéia da especialização das funções constitucionais. Quando dizemos que existe Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário, a forma doutrinária de apresentar isso é a seguinte: existe um conjunto de instituições que se especializa em uma função; outro conjunto de instituições que se especializa em outra função, e assim por diante. Essa é a ideia canônica da doutrina da separação de Poderes, da divisão de Poderes constitucionais. Sabemos que, desde a primeira experiência de constitucionalismo moderno, que é a experiência da república norte-americana, houve um debate a respeito disso: se a elite política que dirigiu a Revolução da Independência nos Estados Unidos se dividiu em relação a esse problema. Predominou uma tese diferente da especialização das funções constitucionais em cada departamento, em cada poder constitucional; predominou a tese que os americanos chamam de “checks and balances”, ou seja, os poderes constitucionais devem ser separados, mas as funções constitucionais, misturadas. Houve um debate a respeito disso. Os artigos federalistas a que o Prof. Paulo Kramer se refere em sua exposição são uma expressão daquele debate, a expressão do lado vitorioso daquele debate. Houve oposições muito fortes às teses que estão naqueles artigos, e uma delas é exatamente a ideia que o Madison e o Hamilton especialmente defendiam e que acabou prevalecendo na Constituição americana: as funções constitucionais não devem ser especializadas em cada departamento do poder constitucional, mas misturadas. E misturadas de uma maneira que, apesar de dizermos que o Congresso é o Poder Legislativo, na verdade o Congresso não é uma instituição que está rigorosamente especializada na função legislativa, pois compartilha com outros Poderes a função legislativa, assim como a Presidência da República compartilhava com outros Poderes a função executiva. O Judiciário, com a inovação que os norte-americanos introduziram, com a ideia de que ele deveria ser um poder constitucional, também não pode especializar-se somente na função judicial. O que eles fizeram? Transformaram a cúpula do Poder Judiciário em um poder que também exerce funções legislativas. Esse Poder pode revisar e até anular a lei que é produzida nos outros Poderes, especialmente no Congresso. Sabemos também que é ideia norte-americana a introdução da capacidade legislativa da Presidência, à medida que o Presidente da República pode vetar leis aprovadas no Congresso. Além de tudo, inventaram uma forma de haver competição de funções entre uma casa e outra, Senado e Câmara, dentro do próprio Congresso. Se o analisarmos do ponto de vista rigorosamente conceitual, é muito difícil dizer, a não ser por uma simplificação, que o parlamento é igual ao Poder Legislativo, que a Presidência é igual ao Poder Executivo e que a Suprema Corte é igual ao Poder Judiciário. Pode- se dizer que há um componente predominante em cada um desses Poderes. É lógico que o Congresso mais legisla que exerce outras funções, e assim por diante. O parlamento só recebeu essa atribuição de Poder Legislativo quando a ideia de soberania popular se consolidou, ou seja, a ideia de um Estado Democrático se consolidou. Havia uma encarnação institucional mais clara dessa dualidade constitutiva da representação política nas funções, por exemplo, do parlamento medieval. Nas instituições medievais, feudais, o rei aparecia como a representação mística do poder. Havia um componente teológico que deixou de existir ao longo do advento da ideia de poder político secular. Na institucionalidade medieval, pode-se falar em representação mística: o rei como vice- regente de Deus na Terra. Ele expressava claramente a ideia de representação do poder enquanto o parlamento, à medida que funcionasse, o que não era contínuo, encarnava mais claramente a ideia de uma representação perante o poder. Do ponto de vista social, era uma representação muito estreita, porque se referia a uma pequena camada da sociedade. Que coisa interessante: à medida que o parlamento amplia o seu escopo de representação, à medida que se satura popularmente, recebe, cada vez mais, a atribuição de ser também representação do poder. Parece-me que aí está o cerne dos dilemas da instituição parlamentar nas experiências democráticas modernas: o parlamento, mais que qualquer outra representação do Estado Democrático Moderno, encarna essa dualidade à medida que se saturou de conteúdo popular. E, ao passo em que se saturou de conteúdo popular, esperou-se que fosse não só uma forma de representação perante o poder, mas também uma forma de representação do poder, ou seja, que aliasse em si a função de representatividade e de governabilidade. Como já disse, não está fadado, desde sempre, que a função de representatividade ou de representação das partes se reconcilie facilmente, sem tensão com a função de governabilidade, com a função de representar o todo. Mais que qualquer outra instituição de representação, o parlamento encarna esse esforço de juntar a representação das partes e a representação do todo. Quando falamos em dilema, queremos dizer que, muitas vezes, utilizando um desses temas que apresentei aqui, a representação das partes pode estar em conflito com a representação do todo. Às vezes, na ação do agente de representação, seja parlamentar, seja Deputado, seja qualquer outra expressão de representação por meio de eleição, servir a parte não se reconcilia facilmente com servir o todo, ou, ao contrário, servir o todo não se reconcilia facilmente com servir a parte. Parece-me que é importante marcar isso como um elemento de reflexão. Muitos dos teóricos e entusiastas iniciais da forma partido esperavam, no fundo, por meio do advento e desenvolvimento dessa forma de representação, que é a agência partido, reconciliar esses povos. O partido seria uma possibilidade de intermediação da representação perante o poder e de representação do poder, ou da representação das partes com a representação do todo. O engraçado é que isso já significa que há uma tensão entre os dois e que ocorre então um problema de mediação. Não foi fácil, no debate sobre a representação política, para os intelectuais e pensadores políticos, assimilar a forma partido como uma forma legítima de representação. Na esfera do governo representativo, o partido, em primeiro lugar, aparece como um conceito, uma expressão pejorativa, associados a uma ideia de facção, como se fosse uma espécie de agente de contribuição para a quebra da unidade social e para o envenenamento da possibilidade de uma vida política saudável. Com o tempo, exatamente por tomarmos consciência dessa tensão e dualidade, a forma partido passou a ser cada vez mais aceita e legitimada do ponto de vista intelectual e prático. Deixou de haver a associação entre facção e partido, a ponto de, na literatura, depois da metade do século XX, começar-se a consagrar a ideia de que sem partido as democracias não poderiam funcionar, exatamente por essa ideia de que poderia resolver o problema da representação perante o poder e juntar as funções de governabilidade e de representatividade. Falamos sobre a crise da representação política como crise da forma partido como ocorre hoje porque há uma certa intuição ou sentimento difuso de que, talvez, essa expectativa surgida ao longo do século XX não tenha sido intrinsecamente válida. Ela poderia ter sido válida em um determinado momento e circunstância, mas essa expectativa passa a ser abalada, e inicia-se uma descrença de que essa forma pudesse ser uma maneira definitiva de harmonizar essa tensão constitutiva. Por último, gostaria de fazer apenas uma alusão, pois isso exigiria uma recapitulação muito maior do que poderia fazer à recente experiência brasileira de representação política, que tem relação com o processo de redemocratização do País. O que falei sobre a experiência de representação do antigo regime aparecerá, no Brasil, durante as experiências de poder autoritário. É interessante que a ditadura brasileira, diferentemente de outras ocorridas no mesmo período na América Latina, tenha conservado a instituição do parlamento, embora de forma subalterna. E até mesmo experimentou a ideia de partidos, por intermédio de um raciocínio muito tecnocrático ou burocrático, com um partido de situação e outro de oposição. Quando o regime, por um ato institucional, criou os dois partidos, esperava que o partido de oposição fosse de oposição ao governo e não de oposição ao regime. Como os ingleses diriam: um partido de oposição leal ao regime. O fato é que, tanto o parlamento quanto os partidos, particularmente o partido de oposição criado pelo próprio regime, evoluiu numa direção diferente: de instituição subserviente e subalterna do poder autoritário passou a ser uma instituição que, cada vez mais, seria legitimada perante a sociedade como uma instituição que contesta o regime. O partido de oposição, que deveria ser de oposição ao governo, torna-se, cada vez mais, um partido de oposição ao regime. Todavia, nesse processo, tanto o parlamento quanto esse partido construíram sua legitimidade por intermédio da ideia da representação perante o poder. A representação como soma das partes, e não como representação do todo. Evidentemente que não podia ser representação do todo enquanto existisse o poder autoritário. Mas o fator de legitimação, de credenciamento social dessas instituições - o parlamento e o partido de oposição - foi dado pelo exercício da função de representatividade. E justamente quando essas duas agências atingem o seu apogeu de legitimação - o que seria uma decorrência natural, mas teria um preço para essas instituições -, passa a ser, também, representação do poder. Só que, tanto o parlamento quanto o partido de oposição, que cresceu dentro desse parlamento, têm sua origem de prática e de desenvolvimento de sua legitimidade como representação perante o poder, representação como soma das partes, que, não necessariamente, é representação do todo. De uma certa maneira, o regime que suplanta a ditadura militar carrega consigo a maneira como o instituto parlamento e o instituto desse partido adquiriram legitimidade. Existe uma dinâmica do nosso regime político atual, que, de uma forma muito mais intensa que qualquer outra experiência na América Latina e mesmo a experiência europeia e anglo-saxã, condensa essa atenção no regime que substituiu o regime militar. Um dos protagonistas da conquista da redemocratização traz, dentro de si, a prática da representação da soma das partes, e só depois, quando atinge o seu apogeu de legitimidade - que, na minha opinião, ocorre quando é promulgada a Constituição de 1988 -, vai exercer a função que constitutivamente tenciona a representação, que é a função da governabilidade e de exercício da representação do poder. Isso, na minha opinião, esse DNA que está inscrito no novo regime, que vem de 1988 para cá, trouxe muitas coisas interessantes para a experiência democrática contemporânea no Brasil mas, ao mesmo tempo, trouxe um preço, um problema que ainda não está bem resolvido na prática do nosso regime atual. De forma que, se podemos falar de crise de representação política como crise da forma partido, de uma maneira geral no mundo, ou no mundo ocidental, no Brasil, ela tem suas peculiaridades, e mais intensas ainda, em razão da nossa experiência histórica recente e da maneira pela qual o Brasil transitou de um regime autoritário para um regime democrático. Continuei falando ainda de forma um tanto abstrata, apesar de ter tentado pousar, na minha fala, na experiência concreta do Brasil, mas são essas ideias que gostaria de trazer para vocês. Agradeço- lhes a atenção e espero que possamos debater um pouco mais o assunto.