CICERO ROMÃO DE ARAÚJO, Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP. Professor do Departamento de Ciência Política da USP.
Discurso
Comenta o tema do evento.
Reunião
2ª reunião ESPECIAL
Legislatura 16ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 24/02/2010
Página 39, Coluna 2
Evento Painel temático: " Os dilemas da representação e o papel do Parlamento nas democracias contemporâneas."
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. (ALMG)
Observação Este evento é parte das ações da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais para subsidiar a elaboração de seu planejamento estratégico para 2010 - 2020.
Legislatura 16ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 24/02/2010
Página 39, Coluna 2
Evento Painel temático: " Os dilemas da representação e o papel do Parlamento nas democracias contemporâneas."
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. (ALMG)
Observação Este evento é parte das ações da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais para subsidiar a elaboração de seu planejamento estratégico para 2010 - 2020.
2ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 16ª
LEGISLATURA, EM 11/2/2010
Palavras do Sr. Cícero Romão Resende de Araújo
Bom dia a todos. Cumprimento os meus colegas Paulo Kramer e
Cláudia Feres, com quem tenho a satisfação de compartilhar esta
Mesa. Cumprimento a Assembleia Legislativa, na pessoa de seu
Presidente, Deputado Alberto Pinto Coelho.
É uma satisfação e uma alegria participar desta atividade de
reflexão promovida por esta Casa. É a primeira vez que venho aqui.
Agradeço o convite da Assembleia, especialmente da Escola do
Legislativo. Fiquei positivamente impressionado pela preocupação
desta Assembleia, do seu corpo técnico-administrativo por fazer
esta discussão, porque não é algo muito frequente. Não encontramos
isso de forma tão sistemática. A Patrícia, que fez o contato
comigo, deu-me a oportunidade de ver alguns materiais que a
Assembleia produziu, especialmente a Escola do Legislativo. Pude
ver suas publicações e seu “site”. Então, com muita satisfação,
faço este diálogo com vocês. Espero que possa continuá-lo
posteriormente. Havia alertado à Patrícia, que me apresentou o
título da discussão de hoje, que seria importante checar nossas
expectativas a respeito deste debate, porque não sou estudioso de
Legislativos Estaduais, não sou pesquisador que se concentra no
estudo do Poder Legislativo. Há alguns anos, dedico-me ao estudo
do conceito de representação política. Alertei-a de que minha
contribuição hoje seria mais de natureza teórica, abstrata. Apesar
de mais abstrata, eventualmente essa abordagem pode encaixar-se,
de alguma forma, no espírito dos trabalhos de hoje. Como a
resposta da Patrícia foi positiva, orientarei a minha exposição
nesse sentido. Pretendo tentar ser breve, para que, depois,
possamos ter espaço para o debate. Vou fazer alusão a algumas
coisas, mas, posteriormente, poderemos dissecá-las um pouco mais.
Apesar de a minha intervenção ser um pouco mais teórica, no final
procurarei fazer uma alusão à experiência brasileira recente,
porque sei que o Brasil e sua diversidade política regional acaba
sendo a questão de maior interesse prático.
Posto isso, gostaria de registrar que existe uma imensa
literatura acadêmica aflorando, nos últimos anos, sobre a chamada
crise da representação política, como livros, artigos, teses,
dissertações, seminários nacionais e internacionais. Já existem
publicações acadêmicas no Brasil, um material relativamente amplo.
Tomei a iniciativa de trazer um material para deixar com vocês,
por exemplo, a edição da revista “Lua Nova”, que é de um centro de
estudos políticos de São Paulo. Editei essa revista há tempos, mas
deixei de sê-lo hoje. Ela traz um dossiê sobre o futuro da
representação política. Há outras publicações a respeito que
talvez sejam de interesse dos colegas da Assembleia, bem como dos
Deputados.
Quando digo crise da representação política, não estou referindo-
me propriamente a um fato incontestável. Dizemos que é fato
incontestável, por exemplo, que o homem chegou à Lua em 1969 ou
que houve um terremoto no Haiti no mês passado. A crise da
representação não é um fato incontestável como o são os fatos da
natureza. Há uma discussão na literatura sobre a existência de uma
crise da representação política ou não. Porém, esse é um tema da
agenda, e o interessante nesse debate é menos até reconhecer o
fato, mas perceber que acabou criando a oportunidade de haver uma
espécie de revisão do conceito de representação. Por isso é um
conceito muito complexo. O debate sobre a crise da representação
acabou levando muitas pessoas, especialmente as que têm inclinação
mais teórica, a indagar: afinal, o que é representação política?
Quando falamos de representação, estamos nos referindo a quê? O
que é, para que ela serve? Qual é a sua necessidade? Qual é o seu
propósito? Por que se diz que as democracias modernas são
representativas? Por que se diz que o instituto da eleição e da
representação são termos indissociavelmente ligados? De que forma
a ideia de representação se liga à ideia de partido, de
parlamento? E por aí vai. O interessante é que a discussão do
conceito de representação aparece e desaparece, depois volta a
aparecer. E não é a primeira vez, na história do conceito, que a
discussão da crise da representação aparece: houve uma discussão
famosa no início do século XX, um debate especialmente europeu,
que encontra muita força teórica na Alemanha. O debate registra
justamente que há uma crise da representação política. Essa
discussão do início do século XX foi também uma oportunidade muito
grande de se fazer a recapitulação do conceito de representação: o
que é, para que serve, qual a relação disso com o parlamento, etc.
Isso é um pouco o que está acontecendo hoje. Parte dessa
literatura, até por conta do conhecimento da história do debate
sobre o conceito, diz que, na verdade, não se trata de falar de
crise da representação em si, mas de crise de uma forma que
predominou, assim como outras formas de representação política
predominaram em outros momentos da história do governo
representativo.
O Prof. Paulo Kramer mencionou um livro muito interessante do
Bernard Manin sobre os princípios do governo representativo, em
que ele acentua muito bem como a ideia de governo representativo é
anterior ao advento dos regimes democráticos. Existe uma
experiência pré-democrática do governo representativo. O
interessante é que, na experiência prévia, pré-democrática do
governo representativo, a forma partido, no sentido moderno que o
termo “partido” tem, não existia. A primeira grande crise da
experiência do governo representativo é justamente quando surge a
forma partido. Aliás, ela surge por fora do parlamento.
Falarei um pouco mais sobre o parlamento porque vale a pena
lembrar, como o Prof. Paulo Kramer já disse, que o parlamento é
uma instituição anterior até mesmo à ideia de governo
representativo. Uma das coisas que mais surpreende o estudioso da
política moderna é a capacidade que o parlamento teve de
sobreviver às muitas e profundas transformações políticas de
séculos. Nessa literatura sobre crise da representação política,
quando se diz que não é a representação em si, mas a forma que
prevaleceu no século XX, fala-se exatamente da crise da forma
partido. Quando se fala em crise da representação política, fala-
se não exatamente da representação em si, mas da forma que a
representação, durante o advento da experiência democrática ao
longo do século XX, foi predominante, que é a forma partido. Quem
discute isso diz: se a forma partido está em declínio, em que
direção está indo a representação política se a ideia e a prática
da representação política for inescapável no Estado Democrático
Moderno? Embora a ideia da prática da representação política possa
ser inescapável no Estado Democrático Moderno, não necessariamente
a forma partido o será.
Há muitas coisas que poderia recuperar sobre essa retomada
teórica da discussão do conceito de representação, mas não
conseguirei fazer isso. A minha estratégia será condensar tudo
numa questão específica, o que irá ajudar a balizar a nossa
discussão. Farei uma simplificação porque minha intenção é ajudar
a estabelecer alguns parâmetros para uma reflexão e essas balizas
poderão ser insuficientes para responder a todas as angústias do
futuro da representação.
O ponto que quero destacar, que aparece nessa literatura, é que a
ideia da representação possui uma dualidade constitutiva. O Prof.
Paulo Kramer também fez uma alusão ao que estou chamando de
dualidade constitutiva. Vou tentar conceituá-la da seguinte
maneira: a representação política é ao mesmo tempo representação
perante o poder e representação do poder. Ela tem essa dualidade.
Alguns traduzem essa ideia de que a representação é, ao mesmo
tempo, perante o poder e do poder, dizendo que a representação tem
a dupla função da representatividade e da governabilidade. É uma
maneira de falar dessa dualidade. Espera-se da representação um
exercício combinado dessas duas dimensões, mas não estão fadadas a
harmonizar-se entre si. Ou seja, embora se espere que a
representação seja perante o poder e também do poder, não está
determinado que, quando se exerce a representação perante o poder,
se conseguirá combinar a representação do poder; que quando se
exerce a qualidade da representatividade ou a função da
representatividade, se conseguirá também exercer a função da
governabilidade. Daí pode-se dizer que essa dualidade constitutiva
pode aparecer como um dilema. Dilema quer dizer não apenas
representação perante o poder e do poder, mas representação
perante o poder ou do poder. O dilema é uma espécie de decorrência
possível, não inevitável, dessa dualidade. Quando digo dualidade
constitutiva, quero contrapor isso a uma dualidade circunstancial,
eventual. Constitutiva quer dizer que está entranhada no conceito
de representação política essa ambivalência. E, quando se pensa em
representação e se transforma isso na prática, não há como escapar
de se deparar com essa ambivalência.
Muitos tentam entender a questão da crise da representação como
uma espécie de manifestação aguda e, às vezes, patológica dessa
dualidade intrínseca à atividade da representação política. Ela
também aparece em outros termos. Por exemplo, na literatura
encontraremos a dualidade perante o poder e do poder, na forma da
tensão entre representar as partes e representar o todo.
Como está exposto escancaradamente no parágrafo citado pelo Prof.
Paulo Kramer, do Benjamin Constant, um dos grandes teóricos do
governo representativo, que se espera que, de alguma forma, a
representação das partes se recombine e se transforme em
representação do todo. Mais uma vez, na prática da representação,
a representação das partes não está fadada a se metamorfosear na
representação do todo. Isso significa que há possibilidade de
dilema entre representar as partes e representar o todo. Dizendo
graficamente, a soma das partes não está fadada a ser igual ao
todo, podendo ser menos ou mais que o todo.
Outra maneira: a ideia de que para a representação ser
consistente, do ponto de vista conceitual, a relação entre o
representante e o representado deve ter dupla natureza. Primeiro,
o representante tem de ser sensível aos interesses e às demandas
do representado, mas, ao mesmo tempo, o representante tem de ter
autonomia parcial em relação ao representado. O representante tem
de ter nexo com o representado, mas, ao mesmo tempo, para ser
representante, tem de criar distância com o representado. Se o
representante é uma espécie de espelho pura e simplesmente do
representado ou uma expressão puramente mimética do representado,
ele não representa. Ao mesmo tempo, se ele se distancia a tal
ponto de quebrar o nexo com o representado, também não
representará. Há um jogo que não está fadado a se harmonizar. O
representante tem de ser responsivo ao representado e, ao mesmo
tempo, tem de ter autonomia em relação ao representado. Ora,
quando dizemos isso, estamos falando que o representante tem de
ser controlado pelo representado, mas, ao mesmo tempo, a sua
autonomia inscreve na ação do representante a possibilidade do
descontrole. Isso não é simplesmente desvio da representação, mas
constitutivo dela. Há possibilidade do descontrole exatamente
porque, para representar, o representante tem de criar uma
distância em relação ao representado. Representar implica o risco
da desconexão e do descontrole na relação entre o representante e
o representado. Se considerarmos que a representação política é
inescapável no Estado Democrático Moderno - considero que sim, mas
a argumentação em relação a isso é um pouco complexa, depois
podemos discutir -, o risco, a possibilidade da desconexão e do
descontrole está colocada na agenda da representação. É
interessante estabelecermos isso como baliza, não a única, para
nossa reflexão aqui.
O segundo ponto a que gostaria de me referir diz respeito
especificamente ao parlamento. Havia dito a vocês, suprimindo os
historiadores da política moderna, sobre a capacidade que o
parlamento teve e tem de sobreviver às enormes transformações
políticas; a sua capacidade em se adaptar, aos trancos e barrancos
muitas vezes, a essas transformações. Estou dizendo isso porque o
parlamento é uma instituição de origem europeia, medieval e feudal
e, ao mesmo tempo, sobreviveu às suas origens. E não é só isso:
sobreviveu ao antigo regime, à primeira forma de governo
representativo, que o Manin chama de forma governo parlamentar.
Apesar de o Manin caracterizar que a primeira experiência, a
primeira era de governo representativo é chamada de governo
parlamentar, o parlamento sobreviveu a essa primeira era e à
transformação do governo representativo. Depois, se adaptou ao
advento da experiência democrática, embora muitos teóricos da
soberania popular - o mais famoso é Jean-Jacques Rousseau - não
necessariamente inscreviam na moldura ideal da instituição da
soberania popular a ideia do parlamento. Rousseau, por exemplo,
tinha muita prevenção porque, evidentemente correto do ponto de
vista histórico, considerava o parlamento uma sobrevivência
feudal; considerava que uma sociedade que vivesse sob a ideia da
soberania popular não poderia admitir essa instituição, essa
excrescência feudal dentro da prática da soberania popular. Muitas
queixas que ele faz no “Contrato Social” à ideia de representação
não são exatamente uma queixa à representação em geral, mas à
representação política porque ele a via muito associada ao
parlamento.
Como a ideia de soberania popular para ele implicava superação
definitiva da sociedade civil, isso passava em sua cabeça pela
superação do parlamento. Mas o fato é que, mesmo com o advento do
ideal de soberania popular, o parlamento soube adaptar-se; soube,
por exemplo, incorporar na sua prática de representação uma
saturação popular, com a ideia de ampliar a representação de uma
pequena camada da sociedade para o conjunto das camadas sociais
por meio do sufrágio universal. O parlamento, nessa transformação
do antigo regime para o governo representativo, soube assimilar a
ideia de que precisava saturar-se popularmente por dentro, por
meio da ampliação do direito de representação, do direito de ser
representado e de representar. Posteriormente, ele também acabou
assimilando, de uma forma que não é inteiramente pacífica, a forma
partido dentro de si, apesar do fato de, no sentido moderno do
termo, principalmente na Europa, onde ele surgiu primeiramente, a
forma partido não ter surgido dentro do parlamento. O partido, em
sua origem, é uma instituição derivada da chamada sociedade civil.
Depois, especialmente com a assimilação da saturação popular, o
parlamento assimilou a forma partido. Isso gerará a primeira crise
do governo representativo.
A ideia de que o parlamento seria uma espécie de palco da prática
da discussão e da deliberação é típica da primeira forma de
governo representativo, o governo parlamentar, ou seja, o
parlamento seria o local da deliberação, que aqui tem um conceito
muito específico e é relativo à possibilidade de os agentes
deliberativos transformarem suas preferências iniciais por meio da
discussão. Ora, quando a forma partido se imiscui dentro do
parlamento, a prática da deliberação se desloca, ou seja, o
parlamento - à exceção de alguns, como o americano, que, mesmo
assim, foi afetado - será diminuído muito fortemente em sua
dimensão deliberativa, pois, na medida em que os Deputados
pertencem ao partido e têm de ser agentes de partido, sua
capacidade de mudar suas preferências iniciais lá dentro diminui
muito, pois isso pode implicar uma traição de seu vínculo com o
partido. Isso significa que, no momento em que assimila a forma
partido, o parlamento tem que sacrificar sua qualidade de agência
deliberativa. É interessante que, ao mesmo tempo em que sacrifica
sua qualidade de instância deliberativa, cada vez mais vai sendo
reconhecida a ideia de que está cedendo um dos Poderes
constitucionais, e não um Poder constitucional qualquer, mas
aquele que é considerado, em várias teorias de soberania popular,
como o principal: a função legislativa.
É interessante que, na sua origem medieval, e mesmo depois, o
parlamento não era identificado como Poder Legislativo. Essa ideia
é uma evolução muito posterior. Dentro da história do governo
representativo, é uma ideia relativamente recente considerar Poder
Legislativo quando falamos de parlamento. Estou falando de algo
relativamente recente na experiência secular do governo
representativo, mas que se tornou tão lugar-comum que se
incorporou à linguagem ordinária. Quando falamos de parlamento,
falamos de Poder Legislativo, como se as duas coisas fossem
idênticas. Aqui abro um parêntese: na verdade, descontado o que
acabei de dizer da incorporação disso na linguagem, na crença
comum da nossa sociedade, do ponto de vista conceitual, parece-me
muito dogmático ou muito rígido dizer que parlamento é idêntico a
Poder Legislativo. Nos primeiros grandes debates constitucionais
modernos, que serão uma espécie de modelo do que se pensa
contemporaneamente sobre Constituição, houve uma discussão muito
grande a respeito da idéia da especialização das funções
constitucionais. Quando dizemos que existe Poder Executivo, Poder
Legislativo e Poder Judiciário, a forma doutrinária de apresentar
isso é a seguinte: existe um conjunto de instituições que se
especializa em uma função; outro conjunto de instituições que se
especializa em outra função, e assim por diante. Essa é a ideia
canônica da doutrina da separação de Poderes, da divisão de
Poderes constitucionais.
Sabemos que, desde a primeira experiência de constitucionalismo
moderno, que é a experiência da república norte-americana, houve
um debate a respeito disso: se a elite política que dirigiu a
Revolução da Independência nos Estados Unidos se dividiu em
relação a esse problema. Predominou uma tese diferente da
especialização das funções constitucionais em cada departamento,
em cada poder constitucional; predominou a tese que os americanos
chamam de “checks and balances”, ou seja, os poderes
constitucionais devem ser separados, mas as funções
constitucionais, misturadas. Houve um debate a respeito disso. Os
artigos federalistas a que o Prof. Paulo Kramer se refere em sua
exposição são uma expressão daquele debate, a expressão do lado
vitorioso daquele debate. Houve oposições muito fortes às teses
que estão naqueles artigos, e uma delas é exatamente a ideia que o
Madison e o Hamilton especialmente defendiam e que acabou
prevalecendo na Constituição americana: as funções constitucionais
não devem ser especializadas em cada departamento do poder
constitucional, mas misturadas. E misturadas de uma maneira que,
apesar de dizermos que o Congresso é o Poder Legislativo, na
verdade o Congresso não é uma instituição que está rigorosamente
especializada na função legislativa, pois compartilha com outros
Poderes a função legislativa, assim como a Presidência da
República compartilhava com outros Poderes a função executiva. O
Judiciário, com a inovação que os norte-americanos introduziram,
com a ideia de que ele deveria ser um poder constitucional, também
não pode especializar-se somente na função judicial. O que eles
fizeram? Transformaram a cúpula do Poder Judiciário em um poder
que também exerce funções legislativas. Esse Poder pode revisar e
até anular a lei que é produzida nos outros Poderes, especialmente
no Congresso.
Sabemos também que é ideia norte-americana a introdução da
capacidade legislativa da Presidência, à medida que o Presidente
da República pode vetar leis aprovadas no Congresso. Além de tudo,
inventaram uma forma de haver competição de funções entre uma casa
e outra, Senado e Câmara, dentro do próprio Congresso. Se o
analisarmos do ponto de vista rigorosamente conceitual, é muito
difícil dizer, a não ser por uma simplificação, que o parlamento é
igual ao Poder Legislativo, que a Presidência é igual ao Poder
Executivo e que a Suprema Corte é igual ao Poder Judiciário. Pode-
se dizer que há um componente predominante em cada um desses
Poderes. É lógico que o Congresso mais legisla que exerce outras
funções, e assim por diante. O parlamento só recebeu essa
atribuição de Poder Legislativo quando a ideia de soberania
popular se consolidou, ou seja, a ideia de um Estado Democrático
se consolidou. Havia uma encarnação institucional mais clara dessa
dualidade constitutiva da representação política nas funções, por
exemplo, do parlamento medieval. Nas instituições medievais,
feudais, o rei aparecia como a representação mística do poder.
Havia um componente teológico que deixou de existir ao longo do
advento da ideia de poder político secular. Na institucionalidade
medieval, pode-se falar em representação mística: o rei como vice-
regente de Deus na Terra. Ele expressava claramente a ideia de
representação do poder enquanto o parlamento, à medida que
funcionasse, o que não era contínuo, encarnava mais claramente a
ideia de uma representação perante o poder. Do ponto de vista
social, era uma representação muito estreita, porque se referia a
uma pequena camada da sociedade. Que coisa interessante: à medida
que o parlamento amplia o seu escopo de representação, à medida
que se satura popularmente, recebe, cada vez mais, a atribuição de
ser também representação do poder. Parece-me que aí está o cerne
dos dilemas da instituição parlamentar nas experiências
democráticas modernas: o parlamento, mais que qualquer outra
representação do Estado Democrático Moderno, encarna essa
dualidade à medida que se saturou de conteúdo popular. E, ao passo
em que se saturou de conteúdo popular, esperou-se que fosse não só
uma forma de representação perante o poder, mas também uma forma
de representação do poder, ou seja, que aliasse em si a função de
representatividade e de governabilidade. Como já disse, não está
fadado, desde sempre, que a função de representatividade ou de
representação das partes se reconcilie facilmente, sem tensão com
a função de governabilidade, com a função de representar o todo.
Mais que qualquer outra instituição de representação, o parlamento
encarna esse esforço de juntar a representação das partes e a
representação do todo.
Quando falamos em dilema, queremos dizer que, muitas vezes,
utilizando um desses temas que apresentei aqui, a representação
das partes pode estar em conflito com a representação do todo. Às
vezes, na ação do agente de representação, seja parlamentar, seja
Deputado, seja qualquer outra expressão de representação por meio
de eleição, servir a parte não se reconcilia facilmente com servir
o todo, ou, ao contrário, servir o todo não se reconcilia
facilmente com servir a parte.
Parece-me que é importante marcar isso como um elemento de
reflexão. Muitos dos teóricos e entusiastas iniciais da forma
partido esperavam, no fundo, por meio do advento e desenvolvimento
dessa forma de representação, que é a agência partido, reconciliar
esses povos. O partido seria uma possibilidade de intermediação da
representação perante o poder e de representação do poder, ou da
representação das partes com a representação do todo.
O engraçado é que isso já significa que há uma tensão entre os
dois e que ocorre então um problema de mediação. Não foi fácil, no
debate sobre a representação política, para os intelectuais e
pensadores políticos, assimilar a forma partido como uma forma
legítima de representação. Na esfera do governo representativo, o
partido, em primeiro lugar, aparece como um conceito, uma
expressão pejorativa, associados a uma ideia de facção, como se
fosse uma espécie de agente de contribuição para a quebra da
unidade social e para o envenenamento da possibilidade de uma vida
política saudável. Com o tempo, exatamente por tomarmos
consciência dessa tensão e dualidade, a forma partido passou a ser
cada vez mais aceita e legitimada do ponto de vista intelectual e
prático. Deixou de haver a associação entre facção e partido, a
ponto de, na literatura, depois da metade do século XX, começar-se
a consagrar a ideia de que sem partido as democracias não poderiam
funcionar, exatamente por essa ideia de que poderia resolver o
problema da representação perante o poder e juntar as funções de
governabilidade e de representatividade.
Falamos sobre a crise da representação política como crise da
forma partido como ocorre hoje porque há uma certa intuição ou
sentimento difuso de que, talvez, essa expectativa surgida ao
longo do século XX não tenha sido intrinsecamente válida. Ela
poderia ter sido válida em um determinado momento e circunstância,
mas essa expectativa passa a ser abalada, e inicia-se uma
descrença de que essa forma pudesse ser uma maneira definitiva de
harmonizar essa tensão constitutiva.
Por último, gostaria de fazer apenas uma alusão, pois isso
exigiria uma recapitulação muito maior do que poderia fazer à
recente experiência brasileira de representação política, que tem
relação com o processo de redemocratização do País. O que falei
sobre a experiência de representação do antigo regime aparecerá,
no Brasil, durante as experiências de poder autoritário. É
interessante que a ditadura brasileira, diferentemente de outras
ocorridas no mesmo período na América Latina, tenha conservado a
instituição do parlamento, embora de forma subalterna. E até mesmo
experimentou a ideia de partidos, por intermédio de um raciocínio
muito tecnocrático ou burocrático, com um partido de situação e
outro de oposição. Quando o regime, por um ato institucional,
criou os dois partidos, esperava que o partido de oposição fosse
de oposição ao governo e não de oposição ao regime. Como os
ingleses diriam: um partido de oposição leal ao regime. O fato é
que, tanto o parlamento quanto os partidos, particularmente o
partido de oposição criado pelo próprio regime, evoluiu numa
direção diferente: de instituição subserviente e subalterna do
poder autoritário passou a ser uma instituição que, cada vez mais,
seria legitimada perante a sociedade como uma instituição que
contesta o regime. O partido de oposição, que deveria ser de
oposição ao governo, torna-se, cada vez mais, um partido de
oposição ao regime.
Todavia, nesse processo, tanto o parlamento quanto esse partido
construíram sua legitimidade por intermédio da ideia da
representação perante o poder. A representação como soma das
partes, e não como representação do todo. Evidentemente que não
podia ser representação do todo enquanto existisse o poder
autoritário. Mas o fator de legitimação, de credenciamento social
dessas instituições - o parlamento e o partido de oposição - foi
dado pelo exercício da função de representatividade. E justamente
quando essas duas agências atingem o seu apogeu de legitimação - o
que seria uma decorrência natural, mas teria um preço para essas
instituições -, passa a ser, também, representação do poder. Só
que, tanto o parlamento quanto o partido de oposição, que cresceu
dentro desse parlamento, têm sua origem de prática e de
desenvolvimento de sua legitimidade como representação perante o
poder, representação como soma das partes, que, não
necessariamente, é representação do todo.
De uma certa maneira, o regime que suplanta a ditadura militar
carrega consigo a maneira como o instituto parlamento e o
instituto desse partido adquiriram legitimidade. Existe uma
dinâmica do nosso regime político atual, que, de uma forma muito
mais intensa que qualquer outra experiência na América Latina e
mesmo a experiência europeia e anglo-saxã, condensa essa atenção
no regime que substituiu o regime militar. Um dos protagonistas da
conquista da redemocratização traz, dentro de si, a prática da
representação da soma das partes, e só depois, quando atinge o seu
apogeu de legitimidade - que, na minha opinião, ocorre quando é
promulgada a Constituição de 1988 -, vai exercer a função que
constitutivamente tenciona a representação, que é a função da
governabilidade e de exercício da representação do poder. Isso, na
minha opinião, esse DNA que está inscrito no novo regime, que vem
de 1988 para cá, trouxe muitas coisas interessantes para a
experiência democrática contemporânea no Brasil mas, ao mesmo
tempo, trouxe um preço, um problema que ainda não está bem
resolvido na prática do nosso regime atual. De forma que, se
podemos falar de crise de representação política como crise da
forma partido, de uma maneira geral no mundo, ou no mundo
ocidental, no Brasil, ela tem suas peculiaridades, e mais intensas
ainda, em razão da nossa experiência histórica recente e da
maneira pela qual o Brasil transitou de um regime autoritário para
um regime democrático.
Continuei falando ainda de forma um tanto abstrata, apesar de ter
tentado pousar, na minha fala, na experiência concreta do Brasil,
mas são essas ideias que gostaria de trazer para vocês. Agradeço-
lhes a atenção e espero que possamos debater um pouco mais o
assunto.