Pronunciamentos

CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, Ministra do Supremo Tribunal Federal - STF. Vice-Presidente do Tribunal Superior Eleitoral - TSE.

Discurso

Comenta o tema do evento, dentro do 1º painel.
Reunião 14ª reunião ESPECIAL
Legislatura 16ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 12/06/2010
Página 75, Coluna 2
Evento Ciclo de debates: "Legislação Eleitoral e Eleições 2010".
Assunto ELEIÇÕES.

14ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 16ª LEGISLATURA, EM 31/5/2010 Palavras da Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha Exmos. Srs. Deputado Alberto Pinto Coelho, Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, na pessoa do qual cumprimento todos os parlamentares presentes - gostaria que todos eles se sentissem, individual e pessoalmente, cumprimentados; Desembargador José Antonino Baía Borges, Presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Minas, na pessoa do qual cumprimento cada um dos Juízes presentes, incluindo os que fazem parte da Mesa; Dr. Alceu José Torres Marques, Procurador- Geral de Justiça de Minas, na pessoa do qual cumprimento os membros do Ministério Público presentes; Dr. José Anchieta da Silva, Presidente do Instituto dos Advogados de Minas Gerais e grande autor deste evento, na pessoa do qual cumprimento os advogados particulares e públicos e os Defensores presentes e devidamente representados; Prefeito José Milton de Carvalho Rocha, Presidente da Associação Mineira de Municípios, na pessoa do qual cumprimento todos os que são chefes e membros do Executivo; e Exma. Sra. Maria Amélia Souza Mendes, Presidente do Comitê, na pessoa da qual cumprimento todos os cidadãos que participam não apenas presencialmente, mas também, de forma especial, ajudando para que o processo eleitoral seja o que precisa ser: um pleito no qual se resgate e garanta a verdade eleitoral, tendo em vista a garantia de direito de respeito ao voto de cada um dos eleitores. Peço licença aos Presidentes da Assembleia e do Instituto dos Advogados do Brasil para cumprimentar meus professores aqui presentes, que são vários. Eu e o Dr. Marco Antônio Romanelli andamos, andamos e chegamos ao mesmo lugar, continuamos alunos, com nossos professores tomando conta da gente. Peço licença para homenagear todos os professores que aqui estão, como Antônio Romanelli, Carlos Mário, Paulo Eduardo, na pessoa que representa uma geração responsável pela ética que guiou e continua a guiar a minha geração, que é com certeza um mestre, sempre, e que foi um dos Diretores da Faculdade de Direito da PUC, onde estudei: Desembargador Melo Júnior. Tenho a certeza de que, quando uma geração atua bem - como dizia minha mãe -, o fruto se conhece pela árvore. A geração dos Profs. Melo Júnior, Hélio Costa e outros formou a faculdade que deu frutos na geração que esteve dentro da sala de aula comigo, como meu professor e vários mestres. Aliás, tive a sorte de ter tido não apenas professores, mas também mestres, que continuam comigo ainda hoje. Quero que os cidadãos brasileiros tenham a certeza de que, entre os citados, três ou quatro são cria dessa segunda geração. Atuamos, atuamos falhando pelos limites humanos nossos, mas estamos fazendo o melhor, não apenas para que quem venha depois de nós tenha a segurança que temos, pelos professores que tivemos, mas também principalmente para que honremos o que eles fizeram. Portanto, o que eu erro, erro porque não dou conta de acertar, mas estou sempre procurando não errar, para ser digna dos pais e dos mestres que tive. Por isso a minha saudação foi para o Prof. Melo Júnior. Agradeço de forma especial o convite que me foi feito para participar deste evento. Mais uma vez, a Assembleia de Minas - se não me engano, estive aqui em 1986, para me manifestar - tem participado, abrindo-se como fórum para a sociedade debater grandes temas. Este ano - parece-me que depois da Copa, pois não vou achar que a Pátria das urnas supere a Pátria de chuteiras nas próximas quatro semanas -, depois de tal evento, seguramente será o momento em que a Pátria fará suas escolhas de maneira extremamente séria, e é preciso realmente haver espaço de discussões sobre como se passará o pleito eleitoral deste ano, no dia das eleições gerais. Portanto, quero fazer minhas observações no prazo que tenho, não dividindo em síntese, mas, sim, dando sequência em quatro pontos, especificamente, para chegar às minhas conclusões. Primeiro sobre a democracia é a Constituição; a Constituição é a cidadania; a cidadania são as eleições; as eleições são a Justiça Eleitoral. Nesse fio todo, há um norte a guiar: a garantia de uma cidadania partícipe, ou seja, parte e participante desse processo que já se iniciou verdadeiramente. Por isso começarei a falar de democracia, porque falamos do voto como se o voto estivesse desapegado daquilo que é a finalidade que não se acaba com o voto. Pelo contrário, recomeça todas as vezes que comparecemos às urnas. Portanto começarei fazendo algumas observações sobre a democracia e a Constituição brasileira. O Prof. Carlos Mário entrava na minha sala de aula, nos idos de 1975, comentando que Rousseau dizia que a democracia é o regime político mais perfeito que existe. Completava Rousseau dizendo que um regime tão perfeito não convém aos homens. Sempre fiquei intrigado por essa circunstância: um pensador daquele porte fazer a referência que se tornou tão comum, a de que a democracia é a melhor forma e o melhor sistema de governo, mas que não convinha aos homens. Hoje sei, ou pelo menos acho que sei, que é porque a democracia é uma construção permanente. O ser humano tende a trabalhar seis dias e a descansar naquele que a civilização ocidental cunhou como o sétimo dia, em que até Deus tinha deixado de trabalhar. A democracia não permite que haja um dia de descanso. A contrariedade à democracia, a não democracia, é extremamente fácil de acontecer; a democracia, não. É uma forma de viver permanentemente perseguida pela circunstância de que liberdade se constrói, principalmente liberdade se garante quando a liberdade se constrói. Por ser uma construção permanente é que eu dizia que o voto é um momento importante, sério, sobre o qual nos detemos com alguma atenção especial. O que é preciso saber, e é preciso que cada um de nós, cidadãos, saibamos permanentemente, é que a democracia não vive de momentos estanques; vive de um contínuo fazer para que se chegue a uma democracia consolidada. Na sala de aula de uma faculdade de Direito aprendemos que a democracia é um sistema de governo, mas, na verdade, é uma forma de vida. Não há possibilidade de realização plena de uma democracia, seja qual for a lei, a melhor do mundo, a mais perfeita que fosse feita - e não se faz lei perfeita, pois ela é obra do ser humano, que é imperfeito. Faz-se o melhor daquilo que somos capazes de fazer. Na verdade, a forma de viver democrática precisa construir-se para que sejamos capazes de criar leis democráticas e aplicá-las democraticamente. Hoje, fala-se que a moda é democrática. Ao dizer que o trabalho é democrático, que o meu patrão é democrático, quando o do outro reclama que o seu não é, estamos falando da verdadeira democracia. Não basta ter uma Constituição afirmando a democracia se a sociedade não afirmá-la. Não se constrói uma casa a partir do telhado, mas da fundação. O dado fundante da sociedade é a sociedade. Então, se a democracia não acontecer na sociedade, a melhor das leis não fará um milagre, quem o faz é a cidadania. Lei aplica-se, mas ela não é milagreira. No caso brasileiro, andamos muito. Eu fiz prova de Direito Constitucional, há de se lembrar o Prof. Carlos Mário, com o Congresso fechado. Meus alunos fizeram um curso de Direito durante um processo de democracia política. Essa é uma grande mudança. Votei pela primeira vez para Governador em 1982, portanto há uma mudança enorme que veio no fluxo de grandes lutas de uma sociedade. Se não houvesse essas lutas pela democracia na sociedade, provavelmente mesmo a geração depois de mim não teria conseguido exercer os seus direitos de votar, como só foi conseguido exatamente a partir de um processo de participação inteira de uma sociedade. Estão postos na Constituição brasileira, e esse é um dado importante, os princípios da democracia. Não me canso de dizer que ter Constituição é necessário, ter leis é necessário, mas não é suficiente, porque leis todos os regimes autoritários têm e nem por isso se tem Estado de Direito, nem por isso se tem democracia. Ter leis e até interpretá-las autoritariamente não realiza a democracia, não realiza nem o Estado de Direito, porque o direito é aplicado, nesse caso, segundo conveniências pessoais. O que mudou para nós, principalmente a partir da Constituição de 1988, foi em relação aos princípios democráticos. A lei fundamental do Brasil está aí para ser aplicada. Portanto, desde o art. 1º da Constituição do Brasil, que diz “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”, há um elenco de princípios que, se forem cumpridos, farão com que a sociedade realmente tenha uma experiência política democrática. É isso, e apenas isso, que estamos perseguindo. Canso de dizer que, se conseguirmos cumprir o Título 1 da Constituição brasileira, o Brasil correrá sério risco de ter permanentemente uma democracia devidamente consolidada, com direitos garantidos justos para todos os brasileiros. Não é só isso que a Constituição tem. No art. 1º, temos garantida como fundamento a soberania popular. Esse inciso I do art. 1º casa com o art. 14 da mesma Constituição. O art. 2º fala sobre a cidadania. Já o inciso III trata sobre o princípio da dignidade da pessoa humana - é o mais importante princípio do direito constitucional contemporâneo e do direito positivo brasileiro -, o pluralismo político e o direito ao trabalho. Além disso, temos os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Todos estabelecem que a democracia é o princípio e o fim do Estado brasileiro. Ter essa Constituição é essencial. Por isso digo que preferiria falar de eleições pelo princípio de que estamos buscando uma experiência democrática para o Brasil pela Constituição. Afinal, tivemos cartas no Brasil antes de ter essa Constituição, e não tínhamos democracia, nem sequer possibilidade de escolher livremente quem queríamos para nos representar. Essa experiência de termos uma Constituição que abriga os princípios que formularão o modelo de democracia para o Brasil muda tudo. Isso acontece se cada um de nós exigir que a Constituição seja cumprida. Chamo sempre atenção para a circunstância de que, quando se exige que o outro cumpra, é óbvio que cada um de nós começa assumindo a responsabilidade de cumprir também, porque tenho muito medo de na sociedade as pessoas ficarem esperando que os outros cumpram a lei, que os outros respeitem a lei e os princípios democráticos, e não apliquem isso. Até porque a democracia não é mesmo fácil. Fácil deve ser a ditadura, mas não a queremos. Por exemplo, mande uma criança dormir hoje. No meu tempo, meus professores - falo isso porque estão presentes aqui os Profs. Antônio Romanelli, Paulo Eduardo e Carlos Mário - nos mandavam ficar quietos. Eles chegavam à sala de aula e diziam: “A prova é tal dia. Se gostou, bem; se não gostou, vai fazer do mesmo jeito”. Hoje em dia, nem com uma criança é mais assim. Mandamos desligar a televisão, e ela pergunta por quê - e temos de explicar. O processo democrático social é este: explicar às crianças as razões pelas quais é preciso que se cumpra tal norma. Se começarmos a construir em casa, nas faculdades, nos trabalhos, teremos uma democracia acontecendo no Brasil. Fácil não é. Fácil é passar a mão no controle remoto e desligar a televisão. No meu caso, nem precisava, pois bastava meu pai ou minha mãe passar um “rabo de olho” que íamos direitinho para dentro do quarto, já que não era mais hora de gente pequena ficar na sala. No entanto, agora não é assim. A sociedade se democratizou. A meu ver, a Constituição abrigar esses princípios é muito importante. Só não é suficiente, porque é preciso que o princípio saia da Constituição e se transforme na vida da pessoa, e é isso que o direito faz; é aí que o milagre acontece. Portanto, esse processo precisa da Constituição, mas não acaba nela. Começa na Constituição. No caso brasileiro, esse não é um processo fácil porque, lamentavelmente, temos uma história de descumprimento de leis. E não é só de descumprimento de leis, mas de descumprimento de Constituições. Sempre acho que Freud explica, mas não dá jeito; entretanto, só para explicar, na verdade, existe essa história de muitos autoritarismos e ótimas Constituições. Somos o primeiro povo no mundo a ter uma Constituição que fazia constar nas suas normas o direito à igualdade, que é a Constituição de 1824. Fomos o último povo a acabar com a escravidão formal, em 1888. Então, não basta mesmo ter lei, embora ela seja necessária para lutarmos por sua aplicação. Esse processo vale exatamente para a Constituição de 1988, que mudou e melhorou muito. Aliás, ela fez com que tivéssemos normas por cuja aplicação podemos brigar, mas ainda é preciso lutarmos pela aplicação de cada norma conquistada no direito. Norberto Bobbio dizia, no final do século XX, que o século XXI não seria um século de lutas por novos direitos, mas, sim, pela eficácia dos direitos que conquistamos. Os direitos que conquistamos, é responsabilidade de cada um de nós fazer valer. A Constituição brasileira detalhou princípios de democracia e para isso fixou um modelo de democracia representativa cumulada com instrumentos de participação direta, a chamada democracia semidireta, constante no parágrafo único do art. 1º, que diz: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Isso significa dizer que temos representantes, mas que esses representantes não nos excluem. Aliás, essa é uma grande mudança na dicção constitucional brasileira. Até 5/10/88, sendo a democracia representativa, não foi difícil construir uma democracia em que o representante se fazia substituto. Quem ler “Coronelismo, enxada e voto”, de Víctor Nunes Leal, verá como ele narra o processo viciado de escolhas. Conquistado o voto, fosse como fosse, e até de forma viciada, aquele que se achava representante na verdade assumia o papel de substituto. A democracia na sociedade fez com que, primeiro, a conquista de cargos públicos ou mandatos públicos se fizesse e sobre eles se prestassem contas permanentemente. Segundo, a forma de conquista é exclusivamente nos termos da lei. Terceiro, esse representante presta contas permanentemente. Se não temos o “recall” no Brasil, ainda temos, e felizmente melhorando muito, instrumentos para fazer com que aquele que assume o mandato e não o cumpre devidamente, exatamente como qualquer advogado sabe - nós que fomos advogados sabemos mais que tudo -, ou seja, se não se honrou o mandato, cassa-se a procuração. Não sou titular do direito, mas o titular do direito tem esse direito a qualquer tempo. Estamos caminhando cada vez mais para um processo em que não é apenas para conquistar o voto que é preciso moralidade, mas também para exercê-lo permanentemente. A cobrança, na forma da lei, será feita no sentido da moralidade e dentro do processo de representação, a cada dia em que um de nós, funcionário público ou agente público, estiver naquele cargo. Essa é a grande mudança. A Constituição fala, no art. 14, da soberania popular pelo voto, que já constava, mas ela deu a esse processo político uma dimensão completamente diferente da que existia até então. Essa circunstância de termos na Constituição os princípios fundamentais do ramo que se desdobra depois, como o direito eleitoral, faz com que a própria raiz da democracia tenha o ramo pelo qual se escolherá o representante devidamente formulado na Constituição. É por isso que todos os julgamentos que fazemos, nós, Juízes e Juízas Eleitorais, partem da Constituição e voltam-se para a Constituição. Até a interpretação de algumas palavras dotadas de um conteúdo mais aberto e fluido, como “potencialidade”, “razoabilidade” e “proporcionalidade” - em cada caso concreto também é preciso voltarmos à Constituição para saber se aquela interpretação dada e aplicada no caso concreto está certa ou não. Se ela não atender aos princípios e às regras constitucionais, seguramente estará errada. Essa aplicação estará errada. Isso tudo se deve à circunstância de que, no caso brasileiro, com a Constituição tão extensa quanto a nossa, tem-se no seu núcleo fundamental os arts. 13, 14 e 15, mas basicamente os arts. 14 e 15 cuidando do que será a matéria eleitoral. Os arts. 12 e 13, de todo jeito, já têm importância porque é pela nacionalidade que se fixa a condição de membro de um determinado Estado e, portanto, cidadão desse Estado. Quanto à cidadania constitucional, acho que, depois de quase 22 anos da promulgação da Constituição, nestas eleições, especificamente, passa-se por um processo que deve ser de transformação ou de uma das etapas da sua transformação. Quando foi promulgada, em 5/10/88, Ulisses Guimarães dizia que se estava criando, naquele momento, para o povo mineiro, a Constituição Cidadã. Nesses 22 anos, ainda não conseguimos acabar - se é que algum dia acabaremos -, nem ao menos amadurecer o processo de cidadania da Constituição, que estabelece os instrumentos pelos quais os cidadãos brasileiros haverão de atuar para serem partes permanentes do poder, já que o poder é do povo e exercido em seu nome. Andamos muito para que o próprio povo exerça o poder, basta ver o número de órgãos públicos que têm participação direta em comissões e em conselhos de representantes da sociedade civil. Portanto, há uma grande mudança no modelo. No caso das eleições, a mudança é significativa. O melhor exemplo disso é a presença da Maria Amélia aqui. A sociedade resolveu que ou ela assume o processo, por ser corresponsável pelas eleições - não me refiro somente à do Estado; afinal, o cidadão é membro desta cidade política chamada Brasil -, ou teremos problemas permanentemente. Quanto mais o cidadão estiver presente e participar do processo, mais chances teremos de obter uma cidadania constitucionalmente estabelecida e sedimentada. Essa é a grande mudança. A construção da Constituição Cidadã aperfeiçoou-se naquela tarde de 5/10/88, mas a construção da cidadania constitucional na sociedade vem amadurecendo nestes 20 anos e, a meu ver - apesar dos pesares, que são muitos -, vem melhorando e muito. Alguns princípios, que não ficaram claros para a sociedade, estão implícitos no processo constitucional. A solidariedade política no Brasil precisa caminhar muito ainda para amadurecer: ainda somos cidadãos que pensam que a culpa é do governo, que as coisas são do governo. Vejo a grande diferença existente entre nós e os Estados que têm 200 ou 300 anos de democracia. Melhorou muito. Os meninos da geração de hoje não jogam lixo na rua como os da minha geração jogavam. Se perguntarmos a quem pertence a Praça da Liberdade, com aqueles prédios, os meninos dirão: “é nosso, é do povo”. Se às gerações anteriores fizéssemos a mesma pergunta, responderiam: “é do governo”. Quando as coisas são dos outros, nossa solidariedade é menor, é como se não fizéssemos parte daquilo. A responsabilidade social aumentou e precisa aumentar cada vez mais, especialmente no processo eleitoral. É necessário não ficar apenas reclamando da corrupção: não se deve participar dela. Estou dizendo “não participar dela” não apenas a quem pede ou tenta captar ilicitamente o voto, o sufrágio, mas também àquele que se deixa levar por um agrado qualquer ou vota naquele seu amigo, embora saiba que ele não teria condições para tanto. Fica fácil continuar reclamando, mas reclamar não resolve. É preciso saber reivindicar, mas, para isso, é necessário haver ética social para, assim, se poder fazer cobrança da ética estatal. Farei uma observação para esclarecer: nós, servidores públicos, somos obrigados a ser honestos por lei - se não for por boa índole, será por lei -, mas o cidadão também o é. Não adianta só reclamar, dizendo que fulano de tal não é correto. Ninguém caiu do céu nem subiu do inferno. É preciso que haja responsabilidade, portanto, na hora de votar. Não tenho a menor dúvida de que a corrupção tem dois lados. Só se consegue comprar voto porque há quem venda. É exatamente isso que precisamos transformar na sociedade brasileira. Um padre do interior contava-me que fez uma pregação em uma homilia, perto das eleições de 2008, dizendo para o pessoal não vender seu voto por um saco de cimento, até porque o candidato que fizesse isso não seria um bom representante. No final, um senhor foi à sacristia e falou a ele: “Olha, até já aceitei um cimentinho, porque eu estava precisando, mas o senhor pode ficar tranquilo que não votarei nesse candidato. O senhor me convenceu. Vou receber o cimento porque já combinei, mas não votarei na pessoa”. Isso não resolve coisa alguma, quer dizer, o problema é que temos de ter uma sociedade ética, e não, apenas exigir depois que existam governantes éticos. Exigência de governantes éticos é matéria legal, é lícito, portanto, jurídico. No entanto, a ética na sociedade é que preservará a ética institucional, porque aí, sim, não teremos a avalanche de denúncias que temos o tempo todo a minar a confiança dos cidadãos nas instituições. E sem confiança nas instituições, não existe democracia possível. Portanto, a meu ver, a cidadania precisa participar para ter eleições nas quais se garanta a verdade eleitoral. Queremos que o cidadão vote e que tenha a certeza de que seu voto foi devidamente computado. Nesse ponto, o Brasil está na frente, provavelmente, de todos os países, porque ele dispõe deste dado curioso: somos capazes de engolir um elefante e engasgar com uma formiga. Às vezes, não se consegue tirar de um cargo uma pessoa que está nitidamente denunciada por malfeitorias e estripulias de toda ordem, mas somos capazes de fazer uma eleição levando 120 milhões de eleitores às urnas, em um mesmo dia, como uma festa democrática sem confusão, sem desarrumação, sem problema, com todos satisfeitos, e, duas horas depois, dar o resultado do processo eleitoral. O Ministro Sepúlveda Pertence não se cansa de contar que uma vez estava falando sobre eleições no exterior, e, ao final, uma pessoa que o ouvia - não sei se foi um norte-americano - chamou-o num canto e disse: “Olha, o tradutor errou. Falou em 100 milhões. Você tem de corrigi-lo. Não sei qual é o número correto, se 100 ou 1.000 pessoas”... E ele respondeu: “Não, são 100 milhões de pessoas, mesmo, que foram às urnas, e apresentamos o resultado depois de duas horas”. As pessoas chegam a não acreditar. Hoje, o processo de urnas eleitorais que o Ministro Carlos Mário, do TSE, tanto cuidou de incentivar, desde 1996, já chegará a 2014 dispensando até a figura do mesário, pois vamos ter a urna biométrica: o eleitor com uma máquina que captará o que ele falar, e acabou a conversa. Esse é o Brasil do séc. XXII. O problema é que, em alguns processos eleitorais, ainda estamos no séc. XIX, porque alguns vícios já deviam ter acabado há muito tempo. Não acredito nem seria ingênua de supor que se pode acabar com 100% de qualquer problema ou vício, até mesmo esse de captação ilícita de votos, pois, como dizia Machado de Assis, “A virtude é uma, mas os pecados são muitos”, e o ser humano é extremamente criativo na hora de descumprir as leis. Porém não é preciso permanecer nas proporções ainda existentes no Brasil. Já deveríamos ter amadurecido eticamente, para não viver o que vivemos, pois essa situação desanima gerações e gerações de pessoas, que gostariam de participar, mas não o fazem. O que queremos é que a lisura do pleito eleitoral seja devidamente garantida a partir da sociedade, mesmo que a Justiça Eleitoral tenha a obrigação constitucional de zelar por isso e de restabelecer, nos casos de afronta ou de fissura, qualquer eiva que venha a surgir. Deve haver igualdade de oportunidades principalmente neste perigoso momento que estamos vivendo. Muitas vezes, a entronização da possibilidade de reeleição pode gerar problemas. É preciso que todos os candidatos tenham igualdade de oportunidades, para que o eleitor tenha garantida sua liberdade de escolha, sem influências que não sejam aquelas próprias de processo de embate em que haja opções entre pessoas que apresentem seus pontos positivos e demonstrem os negativos. Apesar do voto ser obrigatório no Brasil, a liberdade quanto à escolha precisa ser garantida integralmente. Sou uma das que acreditam que deve ser obrigatório, tendo em vista que o processo de educação formal não chegou ao tempo devido do voto facultativo, o que evidentemente seria mais democrático, mas não o seria se aplicado em sociedade em que ainda não há educação suficiente para garantir que o cidadão exerça sua liberdade, tenha acesso às informações e possa decodificá-las. É disso que a legislação eleitoral está tratando. A Justiça Eleitoral é um dos ramos da Justiça que funciona muitíssimo bem no Brasil. É claro que temos problemas em outras áreas jurídicas. A celeridade da Justiça Eleitoral é maior do que em outras, em que pesem as reclamações, que julgo estarem corretas. A Justiça deveria ser mais rápida ainda, já que julgamentos acontecem às vezes no momento do registro, da diplomação ou até antes, sendo julgados em última instância, decorrido prazo muito além do razoável. Apesar disso, essa é área que funciona com celeridade. Quem dera se tal celeridade atingisse as outras áreas do direito. Além disso, a Justiça Eleitoral tem funções administrativas e jurisdicionais. Nesta passagem, o TSE vira “TSI”, porque a informática tem de funcionar com a tecnologia de ponta, para fazer com que isto dê certo. Para levar mais de 120 milhões de eleitores às urnas num único dia, quando serão escolhidos candidatos a vários cargos, e conseguir, ao final do dia, chegar ao resultado com muita tranquilidade, é preciso que o TSE tenha o “Tribunal Superior da Informática” funcionando em benefício das eleições. Nesta área, temos tecnologia de ponta no Brasil, que é exportada. Na semana passada, o Ministro Peluso recebeu comissão de parlamentares europeus, que queriam saber exatamente como isto funciona. Estavam perplexos com a capacidade do Brasil de dar esta resposta, até porque, nos países europeus, o voto não é obrigatório. Em alguns locais, apenas 17% dos eleitores comparecem às urnas, o que nem configura legitimidade. Como não têm esta tecnologia, não podem adotar os procedimentos que adotamos. Não tenho dúvidas de que, quanto ao aspecto jurisdiscional, a Justiça Eleitoral quer cada vez mais garantir o direito do eleitor. Não existe esta história de que a Justiça Eleitoral faz de conta que não vê. A justiça é cega, mas os Juízes estão cada vez mais afiados, até porque a oftalmologia tem ajudado muito. Quanto às leis, nem se fala. Ninguém imagina que haverá facilidade em qualquer tipo de vício, de mácula que seja questionada na Justiça Eleitoral. O eleitor tem o direito a ter eleições livres e sérias, nas quais a responsabilidade é de todos nós, Juízes, cidadãos, candidatos. Todos os cidadãos eleitores brasileiros devem assumir integralmente sua responsabilidade, que não é apenas para com este momento nem com os quatro anos. Certamente todos que trabalharam no serviço público sabem que, no particular, ou seja, em empresa privada, quando se erra, facilmente pode desfazer-se o erro. Já os erros e as malfeitorias no poder público demoram, às vezes, décadas para serem corrigidos, e mais de uma geração paga o preço desses vícios. Por isso mesmo não podem acontecer. Se acontecerem, é preciso que seja restabelecido integralmente o direito, para que o art. 1º da Constituição seja cumprido. Vale dizer que o Estado Democrático de Direito deve funcionar segundo o que o cidadão brasileiro escolher, ou seja, na forma em que escolher e na qual o direito determina. Termino dizendo que falamos muito sobre eleições para a garantia de democracia. Na verdade, a democracia se garante com a liberdade de vivermos todos de acordo com nossas opções de vida, para que tenhamos chance de nos fazer felizes, já que ninguém faz feliz o outro, pois o fazer é de cada um; além disso, para que tenhamos condições de viver em sociedade na qual todos tenham pelo menos o direito e a oportunidade de se fazerem felizes. A Constituição brasileira deu algo que, até pelo momento em que foi editada, as outras Constituições em vigor hoje no mundo ou a grande maioria delas não deram. A Constituição brasileira, no desenho de modelo democrático e nos instrumentos feitos, com o que a legislação eleitoral tem buscado realizar, por isto depende do cidadão, não é apenas legislação ou Constituição que garanta a liberdade, mas também a libertação. A liberdade se conquista e fica estática. No Brasil, assim como no mundo e na vida, há processo permanente de libertação e de conquista de condições melhores. É exatamente para esse processo que pleitos gerais, como este pelo qual passaremos agora no Brasil, testam seus cidadãos, para saberem que são capazes de transformarem-se, a fim de melhorar as instituições, que se aperfeiçoam por meio das pessoas. Aí, sim, teremos Brasil justo, solidário e democrático, como está no preâmbulo da Constituição. Sei muito bem que não é fácil; um processo eleitoral como este não é fácil. Mas sempre acho que, quando vemos desmandos e coisas erradas que trazem desânimo, e não tenho tendência alguma a desânimo; quanto mais vemos aqueles que sofrem pelos erros que ocorrem nas políticas públicas brasileiras ou entre políticos brasileiros, sempre penso que ficamos mais perto dos que sofrem as consequências. Por isso, à maneira de Paulo Mendes Campos, terminaria dizendo que, quanto mais vejo coisas erradas e suas consequências, aumenta, sim, a minha dor. No entanto, quanto mais vejo a necessidade do ser humano, aumenta a minha esperança de que temos e teremos, neste ano, a possibilidade de recriar o Brasil, como podemos recriar a vida a cada dia. Muitíssimo obrigada a todos.