CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, Procuradora-Geral do Estado de Minas Gerais.
Discurso
Discursa sobre o tema: "A Consolidação das Leis em Face dos Princípios
Constitucionais e a Consolidação como Objeto da Técnica Legislativa".
Reunião
182ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 36, Coluna 1
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Erlon de Matos, Fainer Ribeiro Santana.
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 36, Coluna 1
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Erlon de Matos, Fainer Ribeiro Santana.
182ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª
LEGISLATURA, EM 10/6/2002
Palavras da Sra. Carmen Lúcia Antunes Rocha
Sr. Presidente desta sessão, senhores professores, debatedores e
participantes deste fórum, inicialmente gostaria de agradecer o
convite que me foi formulado pela Assembléia Legislativa, para
estar aqui, a fim de discutir um tema que considero da mais alta
relevância: o aperfeiçoamento das instituições democráticas e a
consolidação das leis como instrumento para o melhoramento das
condições democráticas das instituições no Brasil.
De pronto quero registrar que considero a Assembléia Legislativa
de Minas Gerais uma das instituições que mais se vêm empenhando,
no Brasil, por uma melhoria das condições relativas ao processo
legislativo e à participação dos cidadãos nesse aperfeiçoamento,
que é, na verdade, a própria participação dos cidadãos na
democracia. Sinto-me muito honrada em estar aqui. Mesmo que ainda
tenhamos de andar muito - e temos -, para que haja uma democracia
efetiva e eficaz no Brasil, não tenho dúvida de que iniciativas
como esta da Assembléia Legislativa muito contribuem para que
possamos, conhecendo e discutindo melhor os temas que são afetos à
vida de cada um de nós, brasileiros, chegar a melhores condições
de atuação tanto do poder público quanto do cidadão.
Para isso, é preciso que dados como esses, relativos ao processo
legislativo, e, principalmente, à consolidação das leis dos atos
normativos em geral, sejam discutidos de forma aberta como se tem
feito na Assembléia Legislativa de Minas.
Dentro do tema que me foi oferecido, tentarei fazer uma abordagem
pontuando alguns dados sobre o que é, especificamente, a matéria
objeto das minhas ponderações, que é a consolidação das leis em
face dos princípios constitucionais. Falarei um pouco sobre o que
tem sido a tentativa de uma consolidação das leis pelo Estado de
Minas Gerais - e que já foi proposto desde a Constituição de 1988
em sede nacional -, a consolidação e os princípios
constitucionais, e tecerei algumas considerações específicas
sobre três dos princípios que mais são encarecidos pelo
constitucionalista contemporâneo e, especificamente, o que diz
respeito ao tema da consolidação. São os princípios da segurança
jurídica, republicano e da participação dos cidadãos no processo
de criação do direito.
Quero fazer algumas observações iniciais sobre a consolidação das
leis e o direito dos cidadãos a um governo honesto, responsável,
mas, principalmente, a uma atuação participativa de todos nós,
governantes e governados. Para isso, é preciso que se conheça o
direito em vigor, a fim de que tenhamos um Estado de direito
vigorando no Estado nacional.
É extremamente difícil para o cidadão brasileiro ter ciência dos
seus direitos. Primeiro, porque, tradicionalmente, não tivemos
oportunidade de saber dos nossos direitos. A crítica que faço não
é tanto ao cidadão, é ao processo do poder no Brasil, que nunca
quis que o cidadão soubesse dos seus direitos nem qual direito
existia. O direito sempre foi um instrumento por meio do qual o
poder seria exercido ou, pelo menos, se institucionalizado.
Por essa razão, a criação do direito foi retida, especialmente se
analisarmos da Idade Média até a formação do Estado moderno,
dentro de determinados muros, para que não se extrapolassem os
locais em que haveria de se dar ciência àqueles que eram os
principais interessados, ou seja, àqueles que cumpririam a lei.
Falo isso porque na antigüidade, como havia a democracia direta,
por exemplo, na Grécia, existia a discussão pública das normas que
iriam prevalecer sobre todos os cidadãos. É bem certo que, se
olharmos as regras que prevalecem hoje, com o entendimento que há,
na Grécia não havia democracia, havia uma aristocracia, porque só
os cidadãos participavam, e nem todos podiam ser cidadãos.
Mulheres e escravos não eram considerados sequer pessoas.
Dentro do entendimento dos gregos, consideravam-se cidadãos
apenas aqueles que tinham “status” de cidadão. Apenas esses
participavam da arena pública, da “polis”, onde se discutia e se
chegava à elaboração das normas e a sua execução. Se examinarmos
os Estados medievais, veremos que havia o contrário. Informação é
poder. Ainda hoje é assim, porque quem detém a informação detém o
poder. A informação sobre qual direito e quais instituições
prevalecem, como os governos se estruturam, evidentemente,
conferia um poder muito maior àquele que detivesse essas
informações.
Por isso, as informações eram restritas às bibliotecas, o acesso
a elas era parco e muito bem posto diante de determinadas pessoas.
Assim, muitos não tinham acesso às informações. Apenas as pessoas
que tivessem acesso aos governantes e a todas as formas de poder
tinham as informações. Essa situação gerou - e faço um paralelo
com o que se tem hoje - uma certa contingência. Nós, da comunidade
jurídica - e não falo apenas da comunidade jurídica de advogados,
mas de uma forma geral, advogados e membros do Ministério Público,
muito mais que os legisladores, que são até mais democráticos que
os membros da nossa comunidade, pois falam a linguagem do povo,
até porque são representantes do povo -, continuamos a fazer uso
de uma terminologia, que, muitas vezes, como assessores, passamos
para os elaboradores da lei, uma linguagem extremamente hermética.
Isso dificulta o acesso do cidadão - digo isso não tanto com
relação ao Direito Constitucional, que é minha especialidade -,
porque, em alguns ramos do direito, só quem fez a norma consegue
entendê-la. Se é que quem elaborou a minuta a entende. Isso não
acontece apenas na hora de elaborar o projeto que vai ser votado.
Na interpretação, os especialistas em direito, os advogados,
etc., continuam mantendo uma terminologia extremamente fechada. Só
nós, do direito, usamos determinados termos. Aliás, graças a Deus,
porque são terríveis. Há anos, na Procuradoria-Geral do Estado, um
dos advogados-chefe, que se tornou Desembargador, um exímio
advogado, brincava com uma certa colega que não gostava muito de
trabalhar. Ela dizia que não poderia receber um determinado
processo porque estava com uma dor do lado. Então, o Dr. Ney
brincava dizendo que devia ser por causa da “enfiteuse” dela. Como
“enfiteuse” é um termo que só advogado conhece, ela dizia: “Será
que estou com inflamação na “enfiteuse”?”. O Dr. Ney dizia que,
se, por acaso, pegasse na sua “anticrese”, com certeza, sofreria
problemas gravíssimos e teria de ir de “aluvião” para São Paulo.
Ninguém sabia o significado desses termos. Essa terminologia ainda
se mantém até hoje. O nosso “juridicês” é terrível e faz com que o
cidadão não saiba o que está sendo tratado. Lembro-me de um dos
maiores juristas do século XX, no Brasil, o Ministro Seabra
Fagundes, que dizia que, quando foi Juiz, no Rio Grande do Norte,
depois como Desembargador e como 1º-Juiz Eleitoral do Rio Grande
do Norte, após dar a sentença e elaborar o voto, lia o que tinha
escrito para saber se ele, como o menino pobre que tinha sido,
continuaria entendendo aquele voto.
O direito e a lei existem para ser aplicados ao cidadão comum,
não ao entendido. O legislador brasileiro andou muito mais do que
nós, da comunidade jurídica, que continuamos mantendo uma
linguagem extremamente fechada. É preciso transpor isso, porque as
leis já são difíceis de serem entendidas e, com a linguagem
hermética, torna-se muito mais difícil. O cidadão fica sempre a
depender de um intérprete para entender as leis. Essa dificuldade,
que veio da Idade Média e chegou ao Estado moderno, fazia com que
as leis fossem elaboradas na tentativa de que quem as lesse
dependesse do rábula, do especialista, do advogado e do assessor
para interpretá-las. Isso é antidemocrático e extremamente
contrário ao que o povo quer.
Nesse sentido, muitas normas são elaboradas fazendo remissão a
outra lei, a outra e a outra, de modo que só quem elaborou aquela
minuta saberia sobre o que está sendo tratado. Isso ainda é muito
comum no Brasil, em que pese termos uma lei complementar
determinando como se dá a elaboração de uma norma em matéria
tributária e de administração pública, especialmente nos tais
anexos dos anexos, que fazem remissão a mudanças feitas em alíneas
de parágrafos que já foram revogados. Ninguém entende o que é
isso.
Logo após a promulgação da Constituição de 1988, foi feita uma
tentativa no Brasil para, pelo menos, saber o que estava em vigor
e o que não estava. Foi feito um levantamento do que se chamava,
naquela ocasião, de entulho autoritário, na gestão no Ministério
da Justiça, do Brossard e depois do Fernando Lira, em que se
buscava saber quais eram efetivamente as normas em vigor no
Brasil. Pelo levantamento, constatou-se haver mais de 100 mil leis
ordinárias em vigor, ou pelo menos que não haviam sido revogadas
expressamente.
Por essa razão, em seguida, no Governo do então Presidente Itamar
Franco, tentou-se consolidar as normas em vigor no Brasil para
saber as leis que ainda tinham eficácia, o que tinha sido revogado
e o que estava em vigor, mas não era mais dotado de eficácia por
uma série de motivos, inclusive pelo advento da Constituição, que
não teria recepcionado grande parte dessas normas anteriores. Essa
situação de desconhecimento, de uma forma geral, das normas em
vigor, agravada pelo uso de formas que pouco esclarecem o cidadão
comum sobre o conteúdo das leis, vem gerando enorme dificuldade
para que cada um possa fazer prevalecer não apenas o direito do
seu patrimônio individual, mas inclusive da sua condição de
partícipe do processo político.
No meu entendimento, a consolidação das leis é um pressuposto
necessário em uma legislação como a nossa, tão vasta e com tantos
documentos legais ou normativos a que se pode dar vigência, para
que o cidadão venha, afinal, conhecer e saber quais são as normas
que efetivamente ainda prevalecem e que podem continuar a
prevalecer no Brasil. Acresça-se a isso a circunstância de que
temos uma legislação que se acumulou. Ainda hoje temos alguns
diplomas que vêm do Império.
Há quatro ou cinco anos, um Juiz negou-se a receber uma
determinada petição, em Minas Gerais, dizendo que o Governador a
teria assinado com caneta preta, e que havia um documento
normativo, no Brasil, determinando que só poderia fazê-lo com
caneta azul. Ao vasculhar o assunto, verificou-se que havia uma
lei do império determinando que a assinatura seria a pena, etc.
etc. À época, achamos a situação escandalosa: um Juiz preocupar-se
com a cor da caneta. Qual não foi meu espanto ao ver que, em 1999,
o STJ conhecia um mandado de segurança, julgando a validade de um
ato de uma autoridade federal devido à cor da caneta com que tinha
sido assinado. Em uma época em que dispomos de computador, em que
se dá assinatura por via da Internet, não sabemos sequer se uma
norma como essa encontra-se ainda em vigor. Para que tenhamos
estabilidade quanto aos nossos direitos, que se faça efetivamente
uma consolidação. É para isso que a própria legislação determina
que não haja revogações inexpressas, tácitas ou genéricas.
“Revogam-se as disposições em contrário” é hoje uma fórmula vetada
pela legislação em vigor, no Brasil, exatamente porque nem mesmo
quem está revogando conhece o que está revogando. Os próprios
órgãos parlamentares revogam de uma forma genérica, e o cidadão,
que não sabe de que documentos se está tratando, terá
eventualmente que se submeter. Em Minas Gerais, continuamos
vivendo esse tipo de situação. Há poucos dias, por decreto do
Governador, tivemos de revogar quase 60 normas que se encontravam
em vigor desde a década de 20, em Minas Gerais, sobre o uso de
veículos oficiais para os Três Poderes. Elaborar a norma não foi o
problema. O problema foi revogar expressamente aquilo de que
tratava aquele assunto, o que demandou tempo enorme, porque muitas
vezes a referência está num artigo, constante de uma lei ou
decreto anterior, que tem apenas aquele artigo tratando do
assunto, sendo completamente diferentes os demais temas tratados.
Há ma dificuldade enorme para se fazer essa consolidação, mas
também uma enorme necessidade de que seja feita. Acho que hoje
temos uma diretiva concreta de como fazê-la a partir dos
princípios constitucionais, que determinarão o que foi e o que não
foi recepcionado no novo sistema constitucional, o que também
configura uma dificuldade, se considerarmos que, pelo princípio da
recepção, todas as normas que vigoram antes do advento de uma
norma constitucional, se não estiverem de acordo e,
principalmente, se não forem compatíveis com a nova norma
constitucional, são consideradas revogadas. Como temos uma
Constituição promulgada em 5/10/88, com mais de 40 emendas
constitucionais, algumas das quais, tais como as Emendas nºs 19 e
20, modificando subsistemas constitucionais inteiros, como o
administrativo, temos que fazer permanente levantamento para
consolidar todas as normas após o advento das mudanças das normas
constitucionais, para que prevaleça o princípio da recepção. As
dificuldades, no Brasil, são enormes, porque as mudanças
constitucionais, as reformas constitucionais, são muito
freqüentes, não apenas no plano federal, mas também no plano
estadual. Nossa Constituição é de 29/9/89 e já recebeu mais de 50
emendas. Imaginem o que seja consolidar todas as normas que vão
mudando ou que, pelo menos, podem não ser recepcionadas, à medida
que são feitas novas normas constitucionais para direcionar essas
normas infraconstitucionais. Tem-se uma dificuldade enorme nessa
tarefa, mas há uma necessidade enorme de que não deixe de ser
cumprida.
Sobre a consolidação das leis e a questão dos princípios
constitucionais, que são os vetores, as diretrizes, a partir dos
quais teremos a legislação infraconstitucional, chamo a atenção
para alguns pontos. Tivemos uma mudança muito significativa no
processo constitucional e no constitucionalismo, no final do
século XX e no início deste século. Tivemos, basicamente, com a
primeira Constituição escrita, a Constituição norte-americana, de
1787, um constitucionalismo de regras. Havia normas que visavam
situações concretas, efetivas, diretas, objetivas, como nas
constituições que seguiram o modelo da Constituição norte-
americana. A diferença da regra para o princípio, entre muitas que
poderiam ser apontadas, é basicamente o fato de que a regra aplica-
se ou não. Diante de uma situação concreta, avaliaremos se há ou
não como aplicar o preceito. A aplicação de uma regra importa em
eliminação de outra. Não há como, numa mesma situação, aplicarem-
se duas regras jurídicas. Quanto aos princípios, cuja ênfase foi
dada a partir da Segunda Guerra Mundial, a partir do
constitucionalismo que se firmou então, não há como se aplicar um
princípio eliminando-se outro. O constitucionalismo de princípios
determina que se sabe quais são os pilares, quais são os
determinantes de um certo sistema, de um sistema constitucional.
Isso se aplica fazendo uma ponderação entre eles, diante de uma
situação concreta, ou verificando-se qual é o que se aplica em
determinado caso, sem se eliminar do sistema o outro princípio.
Portanto, o constitucionalismo mudou, a partir da segunda metade
do século XX. A Constituição açambarcava um número muito maior de
situações, sendo imprescindível que os princípios dessem um norte
mas não fechassem, como o fazem as regras, situações objetivas
concretas, a partir das quais era preciso modificar as
constituições. Portanto, o constitucionalismo de princípios, que
hoje prevalece, tem algumas ponderações da maior importância. O
princípio, sendo genérico, muito mais do que a regra que
prevalecia antes, faz com que a legislação infraconstitucional
obedeça aos princípios podendo, no entanto, espraiar-se sobre
situações concretas muito mais ampliadas. Mas os princípios têm
uma obrigatoriedade que, no caso do sistema constitucional
brasileiro, faz com que aquele princípio se aplique isoladamente,
autonomamente, e, como informa toda a elaboração constitucional,
tanto no plano federal quanto no estadual, quando se descumpre uma
norma-princípio descumpre-se toda a Constituição. E não prevalece
nenhuma regra, nenhuma norma infraconstitucional que contrarie o
princípio. Esse constitucionalismo, que veio a ter lugar a partir
da segunda metade do século XX, mudou substancialmente a forma de
abordar a elaboração das normas, com repercussões diretas sobre o
processo de consolidação das leis que prevalecem num determinado
Estado.
A Constituição é um sistema. Tanto a Constituição Federal quanto
a Estadual são sistemas e, como tal, necessitam ser interpretadas
de maneira conjugada, harmoniosa, sendo umas normas consentâneas
com as outras. Não há como eliminar do sistema um pilar sem que se
rompa toda a construção, o que é de fundamental importância
porque, nesse constitucionalismo, visto como sistema, tudo o que
tem base na Constituição, tudo o que é elaborado em sua base,
precisa ter o fundamento, do princípio. É por isso que a
Constituição é chamada de lei fundamental. Ela é tida como
fundamento, e o fundamento está em seus princípios; a Constituição
Federal fala em princípios fundamentais, em seu título I, tendo,
ainda, os preceitos fundamentais. E temos caminhos próprios, no
direito, para buscar a aplicação plena desses princípios e
preceitos fundamentais. Sendo um sistema, portanto, sempre o
comparo com o sistema solar: tudo fica em volta dos princípios. Um
astro não se choca com outro porque, no sistema solar, há os
astros que exercem a atração e em torno dos quais todos os outros
se movimentam. Isso também ocorre no sistema jurídico. Temos os
princípios constitucionais, e todas as normas que prevalecem,
fazem-no considerando esse ritmo, esse movimento permanente,
porque o direito está em constante construção, em movimento,
porém, em torno dos princípios e levando-os em consideração. Como
os princípios são muito genéricos, dão espaço e fundamento a uma
multiplicidade de leis. Levo em consideração, também, a
circunstância de que, hoje, o que se considera matéria fundamental
para um povo é muito mais do que se considerava fundamental há 200
anos. Não é incomum escutarmos determinadas pessoas dizerem: “na
verdade, boa é a Constituição norte-americana, que prevalece desde
1787, sem nunca haver mudado”. Quanto a nunca ter mudado, não é
verdade, já que sofre mutação permanente por via da interpretação,
garantidos apenas os princípios que são, além disso, reconstruídos
pela força de interpretação criadora dos tribunais norte-
americanos. Também, o que era princípio continua se mantendo na
Constituição norte-americana. A diferença é que, hoje, há um
complexo muito maior de princípios prevalecendo e que a ênfase
maior é sobre eles, que dão um conteúdo de ação presente,
especialmente nas instituições governamentais ou estatais, havendo
uma perspectiva de programas futuros, traçados a partir dos
princípios contidos na Constituição. Esta não é mais uma obra
fechada. A Constituição é uma obra aberta, em permanente
construção, construção que se faz por um movimento, que não é
arrítmico, não é assistemático, exatamente porque repousa em
princípios muito bem definidos, muito bem delineados e que têm
força obrigatória. Hoje, pela manhã, um colega perguntava-me se
poderia prevalecer em determinada circunstância impugnação a certa
lei estadual, só com base em princípios constitucionais. Dei-lhe o
exemplo de três julgamentos, ocorridos no STF, na quinta-feira,
com base exclusivamente no que se considerou atentado a princípios
constitucionais. Um deles, ao princípio da moralidade e dois, ao
princípio da legalidade. A simples alegação de ruptura de um
princípio, de afronta ao princípio, faz com que os próprios
tribunais superiores, inclusive o STF, tido na Constituição como
seu guardião, deitem abaixo e neguem eficácia a qualquer norma
infraconstitucional ou a qualquer regra, até mesmo de constituição
estadual, que venha a infringir o princípio considerado vetor-
mestre, a viga que sustenta toda a construção. Por essa razão,
creio que a consolidação das leis se faz necessária, sempre
tomando como ponto de partida e como ponto de chegada o princípio.
Para interpretar e saber qual a lei que prevalece, basta situar
qual princípio estaria sendo objetivado, concretizado, efetivado.
Se esse princípio estiver sendo descumprido, tenha a certeza de
que ou a sua interpretação está incorreta, ou aquela norma
afronta, de maneira manifesta, a Constituição e, portanto, não
prevalece, pois não tem o fundamento da sua validade. Os
princípios constitucionais darão o parâmetro do ponto de partida
para a ação tanto do legislador, quanto do intérprete da norma,
porque, só a partir disso, vamos ter a validade ou não dessa
norma. Para que consideremos os princípios fundamentais, inclusive
para a consolidação das leis, e para que haja, portanto, o
aperfeiçoamento das instituições democráticas, chamaria a atenção
para três princípios, que poderiam ser perfeitamente e melhor
atendidos por uma consolidação legislativa, que desse ao cidadão
conhecimento pleno de quais são os direitos que prevalecem numa
determinada sociedade. O primeiro deles é o princípio da segurança
jurídica, que hoje, talvez, no mundo, de uma forma geral, é muitas
vezes negado. No caso do Brasil, se considerarmos particularmente,
é o mais negado. Montesquieu dizia que quanto mais leis tem um
povo, mais tendente a ser corrupto é esse povo. Essa frase é
forte, extremamente contundente. Quando falava da corrupção, dando
o exemplo de Roma, em “O Espírito das Leis”, dizia que quando há
um complexo muito grande de leis, ninguém conhece todas elas, e,
portanto, não pode cumpri-las e nem exigir o seu cumprimento, o
que tende, então, para o que chamava de “possibilidade de
ruptura”. Corrupção é isso: romper com o sistema de normas
prevalecentes. Ele dizia que, se as pessoas não conhecem as leis,
não há como participar e fazer com que sejam cumpridas. Por isso
mesmo, quanto mais leis se tem, melhor para quem estiver
governando, porque nem ele nem ninguém sabe quais as leis que
prevalecem e acaba não prevalecendo nenhuma.
A partir disso, teríamos, no Brasil, um campo aberto à corrupção,
porque há muitas leis prevalecendo. A Profa. Natália e eu
comentávamos no início: são tantas as normas que se revogam, que
não sei se estou cumprindo ou descumprindo algumas, podendo-se
chegar ao descalabro de qualquer um de nós, hoje, estar sujeito ao
descumprimento de uma norma, não porque não seja um cidadão que se
comporta de forma coerente com o que se exige dele, mas
simplesmente por desconhecimento.
No Brasil, temos a máxima, que ainda prevalece, de que a ninguém
é dado descumprir uma lei alegando desconhecimento. Presume-se
conhecida a lei. É uma presunção fictícia. Não é nem ficção
jurídica, que, na verdade, seria facção jurídica. Não é porque o
direito assim determina. É impossível alguém conhecer todas as
normas em vigor no Brasil hoje. Nem em um campo de especialidade.
Nenhum de nós, profissionais do direito, pode se dar ao luxo de
dizer que conhece todas as normas. Em matéria de direito
administrativo, por exemplo, é impossível. Todos os dias, para
alguém dar uma aula de direito administrativo sobre licitação, é
preciso preparar a aula até a véspera, se não quiser ser um
professor irresponsável. A mudança é de tal ordem e ocorre com tal
freqüência, especialmente com relação às medidas provisórias que
acabaram tratando desse tema repetidamente, que não temos a
segurança de, na hora, estarmos informando o estudante exatamente
sobre o que prevalece. O professor de direito civil fala o mesmo,
o de direito comercial também; enfim, os de todos os ramos.
O Código Civil, que foi promulgado em janeiro deste ano e vai
entrar em vigor em janeiro do ano que vem, já tem quase mil
propostas de modificação no Congresso Nacional. Portanto, uma lei
que ainda não entrou em vigor e já tem esse número de propostas de
mudança, mesmo que se altere muito pouco, quando entrar em vigor,
vai exigir do professor da matéria, que é um especialista, que
esteja atento a cada modificação. Então, não podemos cobrar do
cidadão que cumpra essa lei nem exigir que a conheça.
O pior é que as normas acontecem com uma freqüência estonteante
no Brasil. Não estou reclamando, porque não me incluo entre
aquelas pessoas que acham que, no Brasil, deveríamos ter uma
legislação mais seca, à maneira finlandesa ou suíça. O direito tem
de ter a cara do seu povo. Somos um povo palavroso. Não quero de
jeito nenhum que não se converse sobre direito constitucional no
Brasil, até porque é o menos rebuscado, é o direito do cidadão
comum. A pessoa pode, perfeitamente, nascer, viver 100 anos e não
passar perto do Código Penal. Aliás, até convém que não passe
perto, porque, em geral, não é uma boa passagem. Mas se nascer e
morrer 5 minutos depois, teve de repousar na Constituição, porque
o direito à vida - e até à dignidade da morte - repousa em normas
constitucionais. Não há como passar pela vida sem vivenciar a
Constituição.
A despeito disso, a mudança é feita com tal freqüência que até
nós, que somos da área, acabamos não conhecendo, com
tranqüilidade, todas as normas que prevalecem. Precisamos de
consulta continuada. Imagine a dificuldade do cidadão que
desconhece os seus direitos fundamentais. Pense em um ramo do
direito que não seja um direito muito afeto. Algumas áreas do
direito, como disse antes, têm uma linguagem extremamente
rebuscada. Imagine isso em um povo que discute. Nós nos assentamos
em um bar e discutimos direito constitucional. Não tenho dúvidas.
Canso de ouvir lições de engenheiro que diz que não entendemos
nada, que a Constituição Federal não é nada disso. Ele, talvez,
nunca tenha lido a Constituição, mas é a vida dele, tem de dar
notícia dela. Está certo que discuta. Não nos assentamos num bar
para discutir física quântica. Direito fala da vida de todo o
mundo, então, todo o mundo tem o direito de falar da nova lei
sobre o interesse do outro que foi cuidado no Direito, da
legislação do outro.
Essa multiplicidade de leis, portanto, faz com que cada um tenha
chance de discutir os seus interesses, por isso ninguém acaba
tendo segurança. Todas as pessoas acabam numa situação de
insegurança jurídica, pelo complexo de leis. Conforme o dado que
citei no início, do Ministro Paulo Brossard, mais de 100 mil leis
ordinárias, convenhamos, não é para ninguém imaginar que tenha
notícia de todas. Não é nem saber, é que ninguém nem dá notícia de
todas elas.
Além das leis, quer dizer, as normas que passam por um processo
formal, ainda temos uma multiplicidade de fontes de normas
jurídicas no Brasil. É espantoso considerar que, depois da
vigência do Código de Trânsito Brasileiro, por exemplo, o Conselho
Nacional de Trânsito, antes mesmo de sedimentar todas as questões
postas quanto à constitucionalidade de alguns dos seus
dispositivos, já tinha liberado mais de 100 normas sobre a
legislação de trânsito. E, como o Conselho pode baixar normas
sobre o trânsito, qualquer brasileiro que estivesse conduzindo um
veículo poderia ser parado de uma hora para a outra e questionado
sobre a transgressão de uma norma de que nunca teve notícia. Como
presumir que todos sabem a norma? Estou num local privilegiado no
Brasil, a Assembléia Legislativa de Minas, mas, se eu perguntasse
aos senhores quem é que conhece todos os membros do Conselho
Nacional de Trânsito, tenho certeza de que a grande maioria não
nomearia todos. Nem os Deputados, talvez, nomeassem um número
significativo deles. No entanto, ele baixa normas.
Outro Conselho que baixa normas permanentemente, das quais o
brasileiro sequer tem notícia - só tem notícia do resultado,
porque aparece na sua conta no Banco ou no seu emprego -, é o
Conselho Monetário Nacional, que baixa mais normas do que
determinados órgãos legislativos. No entanto, a grande maioria que
está neste Plenário não saberia nomear quem o compõe, quem faz as
normas. E sabem quantos Conselhos temos? Hoje temos as agências
reguladoras, que têm uma diretoria de regulamentação para baixar
normas. Diz-se norma infralegal. Mas, se nem sei qual é a norma
que, no caso concreto, se aplica, como vou saber, sem conhecer o
princípio, se ela vale ou não, no meu caso?
Então, os princípios constitucionais e os princípios que regem o
Direito passaram a adquirir importância fundamental no Brasil. A
maioria das pessoas, por exemplo, sabe que existem agências
reguladoras, mas as normas que baixam em relação ao serviço de
energia elétrica, ao serviço de telecomunicações a maioria dos
brasileiros não sabe. Elas existem e prevalecem sobre a vida de
cada um de nós, porque o serviço de energia elétrica faz parte da
nossa vida, é serviço essencial. Quando o Conselho Monetário baixa
uma norma, está falando da sua vida financeira, do que prevalece,
mas você só vai verificar quando chega ao Banco e não sabe porque
foi feito determinado desconto. Isso acontece na vida de todo o
mundo.
Além de tudo, temos aquilo que foi criado para ser uma situação
excepcionalíssima, que são as medidas provisórias, que se tornaram
muitíssimo comuns. Chegamos a um momento, em 1997, em que havia
quase duas medidas provisórias, em média, por dia, mudando a
legislação brasileira, mudando até o que o Congresso Nacional
fazia. E não dávamos conta de acompanhar. Dei o exemplo da
legislação sobre licitação: a cada dia, havia uma mudança nessa
legislação, e tínhamos de ir com lupa, para saber qual a mudança
processada.
Não se consegue isso facilmente, porque o número dela muda, de
acordo com as vezes em que foi reeditada. Portanto, a dificuldade,
até para nossa consulta, é cada vez maior.
Tudo isso acabou formando um arcabouço normativo no Brasil que
dificulta extremamente a segurança com relação a nossos direitos.
Não sabemos o que está prevalecendo, o que pode e o que deve ser
feito. Não temos conhecimento no Brasil nem quanto às restrições
aos nossos direitos de liberdade e propriedade, área em que a
Constituição é taxativa, estabelecendo que ninguém é obrigado a
fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei. Para que
tenhamos a garantia de nossos direitos constitucionais, que não
podem ser mudados sequer por reforma constitucional, no sentido da
restrição, impõe-se, com urgência, a necessidade de uma nova
perspectiva de processo legislativo, a fim de que haja a
consolidação do que existe hoje, no Brasil.
Quero fazer uma referência ao princípio republicano e à
estabilidade jurídica e política. O princípio republicano é o
primeiro a ser enfatizado na Constituição, em seu art. 1º: “A
República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel...”. Nesse artigo, estabelecem-se determinados
princípios, como o da igualdade e o da liberdade, que, em uma
república, são distintos dos princípios exercidos na monarquia.
Depois de cento e poucos anos da proclamação da república, ainda
não conseguimos vê-la consolidada, até porque, neste País, temos
uma república, mas não temos tantos republicanos como deveríamos.
Se a coisa é pública, a legislação a prevalecer deveria dar
garantia de cidadania a todos os republicanos. Se não temos uma
legislação muito bem positivada, no sentido de conhecimento
objetivo por todos, devemos, pelo menos, fazê-la prosperar.
Precisamos enfatizar não apenas a democracia, mas também a
República brasileira. Quando a coisa é pública, a igualdade de
oportunidades, naturalmente, decorre da adoção do princípio, e
esse modelo que ainda não conseguimos consolidar ainda está a
dever, exatamente, aos menos favorecidos do País. Essa
consolidação dar-nos-ia condições de saber se a coisa realmente é
pública no Brasil, se a gestão se faz para todos e se as condições
e oportunidades são iguais, para que tenhamos condições de ver
efetivado o princípio da igualdade.
Chamo, também, a atenção para o princípio da participação
popular. O cidadão só pode participar e participa quando conhece
rigorosamente seus direitos.
Agradeço à Assembléia Legislativa. Lembro-me de uma passagem de
Machado de Assis: “A virtude é uma, e os pecados são muitos”,
querendo ressaltar que ter uma lei é necessário para que saibamos
a opção de uma sociedade sobre o que é justo. Esse trecho está no
livro “Isaú e Jacó”. Ele afirma, ainda, que, para descumprir uma
lei, existem mil portas e formas. Para que isso não aconteça, é
preciso que saibamos, rigorosamente, qual o direito que prevalece
em uma determinada sociedade. Falta isso no Brasil, grande parte
em decorrência de nossa comunidade jurídica, pois os legisladores
atuam melhor do que nós nessa matéria, mas falta também a
democratização no processo de dar conhecimento das leis e das
normas que prevalecem para o cidadão brasileiro.
É preciso que todos nós, cidadãos, conheçamos nossos direitos,
até para ser mais republicanos e cooperar com o interesse do
outro, além do particular, superando o individualismo que ainda
prevalece, quer na forma de vislumbrar o direito, quer na forma de
aplicá-lo e de lutar por ele. Assembléias como esta, que têm
compromisso com o interesse público, teriam a vida muito
facilitada se as pessoas pensassem mais nas outras, em uma visão
de sistema de direito, sem deixar de lutar por seus interesses
individuais. Muito obrigada.
Peço desculpas, pois terei de ausentar-me, devido a um
compromisso com dois Secretários, por determinação do Governador.
Coloco-me à disposição para responder a eventuais perguntas, desde
que tenham “e-mails”, para que possa responder. Muito sucesso a
todos.