Pronunciamentos

CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, Procuradora-Geral do Estado de Minas Gerais.

Discurso

Discursa sobre o tema: "A Consolidação das Leis em Face dos Princípios Constitucionais e a Consolidação como Objeto da Técnica Legislativa".
Reunião 182ª reunião ESPECIAL
Legislatura 14ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 06/07/2002
Página 36, Coluna 1
Evento Fórum Técnico: A Consolidação das Leis e o Aperfeiçoamento da Democracia.
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
Observação Participantes dos debates: Erlon de Matos, Fainer Ribeiro Santana.

182ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 14ª LEGISLATURA, EM 10/6/2002 Palavras da Sra. Carmen Lúcia Antunes Rocha Sr. Presidente desta sessão, senhores professores, debatedores e participantes deste fórum, inicialmente gostaria de agradecer o convite que me foi formulado pela Assembléia Legislativa, para estar aqui, a fim de discutir um tema que considero da mais alta relevância: o aperfeiçoamento das instituições democráticas e a consolidação das leis como instrumento para o melhoramento das condições democráticas das instituições no Brasil. De pronto quero registrar que considero a Assembléia Legislativa de Minas Gerais uma das instituições que mais se vêm empenhando, no Brasil, por uma melhoria das condições relativas ao processo legislativo e à participação dos cidadãos nesse aperfeiçoamento, que é, na verdade, a própria participação dos cidadãos na democracia. Sinto-me muito honrada em estar aqui. Mesmo que ainda tenhamos de andar muito - e temos -, para que haja uma democracia efetiva e eficaz no Brasil, não tenho dúvida de que iniciativas como esta da Assembléia Legislativa muito contribuem para que possamos, conhecendo e discutindo melhor os temas que são afetos à vida de cada um de nós, brasileiros, chegar a melhores condições de atuação tanto do poder público quanto do cidadão. Para isso, é preciso que dados como esses, relativos ao processo legislativo, e, principalmente, à consolidação das leis dos atos normativos em geral, sejam discutidos de forma aberta como se tem feito na Assembléia Legislativa de Minas. Dentro do tema que me foi oferecido, tentarei fazer uma abordagem pontuando alguns dados sobre o que é, especificamente, a matéria objeto das minhas ponderações, que é a consolidação das leis em face dos princípios constitucionais. Falarei um pouco sobre o que tem sido a tentativa de uma consolidação das leis pelo Estado de Minas Gerais - e que já foi proposto desde a Constituição de 1988 em sede nacional -, a consolidação e os princípios constitucionais, e tecerei algumas considerações específicas sobre três dos princípios que mais são encarecidos pelo constitucionalista contemporâneo e, especificamente, o que diz respeito ao tema da consolidação. São os princípios da segurança jurídica, republicano e da participação dos cidadãos no processo de criação do direito. Quero fazer algumas observações iniciais sobre a consolidação das leis e o direito dos cidadãos a um governo honesto, responsável, mas, principalmente, a uma atuação participativa de todos nós, governantes e governados. Para isso, é preciso que se conheça o direito em vigor, a fim de que tenhamos um Estado de direito vigorando no Estado nacional. É extremamente difícil para o cidadão brasileiro ter ciência dos seus direitos. Primeiro, porque, tradicionalmente, não tivemos oportunidade de saber dos nossos direitos. A crítica que faço não é tanto ao cidadão, é ao processo do poder no Brasil, que nunca quis que o cidadão soubesse dos seus direitos nem qual direito existia. O direito sempre foi um instrumento por meio do qual o poder seria exercido ou, pelo menos, se institucionalizado. Por essa razão, a criação do direito foi retida, especialmente se analisarmos da Idade Média até a formação do Estado moderno, dentro de determinados muros, para que não se extrapolassem os locais em que haveria de se dar ciência àqueles que eram os principais interessados, ou seja, àqueles que cumpririam a lei. Falo isso porque na antigüidade, como havia a democracia direta, por exemplo, na Grécia, existia a discussão pública das normas que iriam prevalecer sobre todos os cidadãos. É bem certo que, se olharmos as regras que prevalecem hoje, com o entendimento que há, na Grécia não havia democracia, havia uma aristocracia, porque só os cidadãos participavam, e nem todos podiam ser cidadãos. Mulheres e escravos não eram considerados sequer pessoas. Dentro do entendimento dos gregos, consideravam-se cidadãos apenas aqueles que tinham “status” de cidadão. Apenas esses participavam da arena pública, da “polis”, onde se discutia e se chegava à elaboração das normas e a sua execução. Se examinarmos os Estados medievais, veremos que havia o contrário. Informação é poder. Ainda hoje é assim, porque quem detém a informação detém o poder. A informação sobre qual direito e quais instituições prevalecem, como os governos se estruturam, evidentemente, conferia um poder muito maior àquele que detivesse essas informações. Por isso, as informações eram restritas às bibliotecas, o acesso a elas era parco e muito bem posto diante de determinadas pessoas. Assim, muitos não tinham acesso às informações. Apenas as pessoas que tivessem acesso aos governantes e a todas as formas de poder tinham as informações. Essa situação gerou - e faço um paralelo com o que se tem hoje - uma certa contingência. Nós, da comunidade jurídica - e não falo apenas da comunidade jurídica de advogados, mas de uma forma geral, advogados e membros do Ministério Público, muito mais que os legisladores, que são até mais democráticos que os membros da nossa comunidade, pois falam a linguagem do povo, até porque são representantes do povo -, continuamos a fazer uso de uma terminologia, que, muitas vezes, como assessores, passamos para os elaboradores da lei, uma linguagem extremamente hermética. Isso dificulta o acesso do cidadão - digo isso não tanto com relação ao Direito Constitucional, que é minha especialidade -, porque, em alguns ramos do direito, só quem fez a norma consegue entendê-la. Se é que quem elaborou a minuta a entende. Isso não acontece apenas na hora de elaborar o projeto que vai ser votado. Na interpretação, os especialistas em direito, os advogados, etc., continuam mantendo uma terminologia extremamente fechada. Só nós, do direito, usamos determinados termos. Aliás, graças a Deus, porque são terríveis. Há anos, na Procuradoria-Geral do Estado, um dos advogados-chefe, que se tornou Desembargador, um exímio advogado, brincava com uma certa colega que não gostava muito de trabalhar. Ela dizia que não poderia receber um determinado processo porque estava com uma dor do lado. Então, o Dr. Ney brincava dizendo que devia ser por causa da “enfiteuse” dela. Como “enfiteuse” é um termo que só advogado conhece, ela dizia: “Será que estou com inflamação na “enfiteuse”?”. O Dr. Ney dizia que, se, por acaso, pegasse na sua “anticrese”, com certeza, sofreria problemas gravíssimos e teria de ir de “aluvião” para São Paulo. Ninguém sabia o significado desses termos. Essa terminologia ainda se mantém até hoje. O nosso “juridicês” é terrível e faz com que o cidadão não saiba o que está sendo tratado. Lembro-me de um dos maiores juristas do século XX, no Brasil, o Ministro Seabra Fagundes, que dizia que, quando foi Juiz, no Rio Grande do Norte, depois como Desembargador e como 1º-Juiz Eleitoral do Rio Grande do Norte, após dar a sentença e elaborar o voto, lia o que tinha escrito para saber se ele, como o menino pobre que tinha sido, continuaria entendendo aquele voto. O direito e a lei existem para ser aplicados ao cidadão comum, não ao entendido. O legislador brasileiro andou muito mais do que nós, da comunidade jurídica, que continuamos mantendo uma linguagem extremamente fechada. É preciso transpor isso, porque as leis já são difíceis de serem entendidas e, com a linguagem hermética, torna-se muito mais difícil. O cidadão fica sempre a depender de um intérprete para entender as leis. Essa dificuldade, que veio da Idade Média e chegou ao Estado moderno, fazia com que as leis fossem elaboradas na tentativa de que quem as lesse dependesse do rábula, do especialista, do advogado e do assessor para interpretá-las. Isso é antidemocrático e extremamente contrário ao que o povo quer. Nesse sentido, muitas normas são elaboradas fazendo remissão a outra lei, a outra e a outra, de modo que só quem elaborou aquela minuta saberia sobre o que está sendo tratado. Isso ainda é muito comum no Brasil, em que pese termos uma lei complementar determinando como se dá a elaboração de uma norma em matéria tributária e de administração pública, especialmente nos tais anexos dos anexos, que fazem remissão a mudanças feitas em alíneas de parágrafos que já foram revogados. Ninguém entende o que é isso. Logo após a promulgação da Constituição de 1988, foi feita uma tentativa no Brasil para, pelo menos, saber o que estava em vigor e o que não estava. Foi feito um levantamento do que se chamava, naquela ocasião, de entulho autoritário, na gestão no Ministério da Justiça, do Brossard e depois do Fernando Lira, em que se buscava saber quais eram efetivamente as normas em vigor no Brasil. Pelo levantamento, constatou-se haver mais de 100 mil leis ordinárias em vigor, ou pelo menos que não haviam sido revogadas expressamente. Por essa razão, em seguida, no Governo do então Presidente Itamar Franco, tentou-se consolidar as normas em vigor no Brasil para saber as leis que ainda tinham eficácia, o que tinha sido revogado e o que estava em vigor, mas não era mais dotado de eficácia por uma série de motivos, inclusive pelo advento da Constituição, que não teria recepcionado grande parte dessas normas anteriores. Essa situação de desconhecimento, de uma forma geral, das normas em vigor, agravada pelo uso de formas que pouco esclarecem o cidadão comum sobre o conteúdo das leis, vem gerando enorme dificuldade para que cada um possa fazer prevalecer não apenas o direito do seu patrimônio individual, mas inclusive da sua condição de partícipe do processo político. No meu entendimento, a consolidação das leis é um pressuposto necessário em uma legislação como a nossa, tão vasta e com tantos documentos legais ou normativos a que se pode dar vigência, para que o cidadão venha, afinal, conhecer e saber quais são as normas que efetivamente ainda prevalecem e que podem continuar a prevalecer no Brasil. Acresça-se a isso a circunstância de que temos uma legislação que se acumulou. Ainda hoje temos alguns diplomas que vêm do Império. Há quatro ou cinco anos, um Juiz negou-se a receber uma determinada petição, em Minas Gerais, dizendo que o Governador a teria assinado com caneta preta, e que havia um documento normativo, no Brasil, determinando que só poderia fazê-lo com caneta azul. Ao vasculhar o assunto, verificou-se que havia uma lei do império determinando que a assinatura seria a pena, etc. etc. À época, achamos a situação escandalosa: um Juiz preocupar-se com a cor da caneta. Qual não foi meu espanto ao ver que, em 1999, o STJ conhecia um mandado de segurança, julgando a validade de um ato de uma autoridade federal devido à cor da caneta com que tinha sido assinado. Em uma época em que dispomos de computador, em que se dá assinatura por via da Internet, não sabemos sequer se uma norma como essa encontra-se ainda em vigor. Para que tenhamos estabilidade quanto aos nossos direitos, que se faça efetivamente uma consolidação. É para isso que a própria legislação determina que não haja revogações inexpressas, tácitas ou genéricas. “Revogam-se as disposições em contrário” é hoje uma fórmula vetada pela legislação em vigor, no Brasil, exatamente porque nem mesmo quem está revogando conhece o que está revogando. Os próprios órgãos parlamentares revogam de uma forma genérica, e o cidadão, que não sabe de que documentos se está tratando, terá eventualmente que se submeter. Em Minas Gerais, continuamos vivendo esse tipo de situação. Há poucos dias, por decreto do Governador, tivemos de revogar quase 60 normas que se encontravam em vigor desde a década de 20, em Minas Gerais, sobre o uso de veículos oficiais para os Três Poderes. Elaborar a norma não foi o problema. O problema foi revogar expressamente aquilo de que tratava aquele assunto, o que demandou tempo enorme, porque muitas vezes a referência está num artigo, constante de uma lei ou decreto anterior, que tem apenas aquele artigo tratando do assunto, sendo completamente diferentes os demais temas tratados. Há ma dificuldade enorme para se fazer essa consolidação, mas também uma enorme necessidade de que seja feita. Acho que hoje temos uma diretiva concreta de como fazê-la a partir dos princípios constitucionais, que determinarão o que foi e o que não foi recepcionado no novo sistema constitucional, o que também configura uma dificuldade, se considerarmos que, pelo princípio da recepção, todas as normas que vigoram antes do advento de uma norma constitucional, se não estiverem de acordo e, principalmente, se não forem compatíveis com a nova norma constitucional, são consideradas revogadas. Como temos uma Constituição promulgada em 5/10/88, com mais de 40 emendas constitucionais, algumas das quais, tais como as Emendas nºs 19 e 20, modificando subsistemas constitucionais inteiros, como o administrativo, temos que fazer permanente levantamento para consolidar todas as normas após o advento das mudanças das normas constitucionais, para que prevaleça o princípio da recepção. As dificuldades, no Brasil, são enormes, porque as mudanças constitucionais, as reformas constitucionais, são muito freqüentes, não apenas no plano federal, mas também no plano estadual. Nossa Constituição é de 29/9/89 e já recebeu mais de 50 emendas. Imaginem o que seja consolidar todas as normas que vão mudando ou que, pelo menos, podem não ser recepcionadas, à medida que são feitas novas normas constitucionais para direcionar essas normas infraconstitucionais. Tem-se uma dificuldade enorme nessa tarefa, mas há uma necessidade enorme de que não deixe de ser cumprida. Sobre a consolidação das leis e a questão dos princípios constitucionais, que são os vetores, as diretrizes, a partir dos quais teremos a legislação infraconstitucional, chamo a atenção para alguns pontos. Tivemos uma mudança muito significativa no processo constitucional e no constitucionalismo, no final do século XX e no início deste século. Tivemos, basicamente, com a primeira Constituição escrita, a Constituição norte-americana, de 1787, um constitucionalismo de regras. Havia normas que visavam situações concretas, efetivas, diretas, objetivas, como nas constituições que seguiram o modelo da Constituição norte- americana. A diferença da regra para o princípio, entre muitas que poderiam ser apontadas, é basicamente o fato de que a regra aplica- se ou não. Diante de uma situação concreta, avaliaremos se há ou não como aplicar o preceito. A aplicação de uma regra importa em eliminação de outra. Não há como, numa mesma situação, aplicarem- se duas regras jurídicas. Quanto aos princípios, cuja ênfase foi dada a partir da Segunda Guerra Mundial, a partir do constitucionalismo que se firmou então, não há como se aplicar um princípio eliminando-se outro. O constitucionalismo de princípios determina que se sabe quais são os pilares, quais são os determinantes de um certo sistema, de um sistema constitucional. Isso se aplica fazendo uma ponderação entre eles, diante de uma situação concreta, ou verificando-se qual é o que se aplica em determinado caso, sem se eliminar do sistema o outro princípio. Portanto, o constitucionalismo mudou, a partir da segunda metade do século XX. A Constituição açambarcava um número muito maior de situações, sendo imprescindível que os princípios dessem um norte mas não fechassem, como o fazem as regras, situações objetivas concretas, a partir das quais era preciso modificar as constituições. Portanto, o constitucionalismo de princípios, que hoje prevalece, tem algumas ponderações da maior importância. O princípio, sendo genérico, muito mais do que a regra que prevalecia antes, faz com que a legislação infraconstitucional obedeça aos princípios podendo, no entanto, espraiar-se sobre situações concretas muito mais ampliadas. Mas os princípios têm uma obrigatoriedade que, no caso do sistema constitucional brasileiro, faz com que aquele princípio se aplique isoladamente, autonomamente, e, como informa toda a elaboração constitucional, tanto no plano federal quanto no estadual, quando se descumpre uma norma-princípio descumpre-se toda a Constituição. E não prevalece nenhuma regra, nenhuma norma infraconstitucional que contrarie o princípio. Esse constitucionalismo, que veio a ter lugar a partir da segunda metade do século XX, mudou substancialmente a forma de abordar a elaboração das normas, com repercussões diretas sobre o processo de consolidação das leis que prevalecem num determinado Estado. A Constituição é um sistema. Tanto a Constituição Federal quanto a Estadual são sistemas e, como tal, necessitam ser interpretadas de maneira conjugada, harmoniosa, sendo umas normas consentâneas com as outras. Não há como eliminar do sistema um pilar sem que se rompa toda a construção, o que é de fundamental importância porque, nesse constitucionalismo, visto como sistema, tudo o que tem base na Constituição, tudo o que é elaborado em sua base, precisa ter o fundamento, do princípio. É por isso que a Constituição é chamada de lei fundamental. Ela é tida como fundamento, e o fundamento está em seus princípios; a Constituição Federal fala em princípios fundamentais, em seu título I, tendo, ainda, os preceitos fundamentais. E temos caminhos próprios, no direito, para buscar a aplicação plena desses princípios e preceitos fundamentais. Sendo um sistema, portanto, sempre o comparo com o sistema solar: tudo fica em volta dos princípios. Um astro não se choca com outro porque, no sistema solar, há os astros que exercem a atração e em torno dos quais todos os outros se movimentam. Isso também ocorre no sistema jurídico. Temos os princípios constitucionais, e todas as normas que prevalecem, fazem-no considerando esse ritmo, esse movimento permanente, porque o direito está em constante construção, em movimento, porém, em torno dos princípios e levando-os em consideração. Como os princípios são muito genéricos, dão espaço e fundamento a uma multiplicidade de leis. Levo em consideração, também, a circunstância de que, hoje, o que se considera matéria fundamental para um povo é muito mais do que se considerava fundamental há 200 anos. Não é incomum escutarmos determinadas pessoas dizerem: “na verdade, boa é a Constituição norte-americana, que prevalece desde 1787, sem nunca haver mudado”. Quanto a nunca ter mudado, não é verdade, já que sofre mutação permanente por via da interpretação, garantidos apenas os princípios que são, além disso, reconstruídos pela força de interpretação criadora dos tribunais norte- americanos. Também, o que era princípio continua se mantendo na Constituição norte-americana. A diferença é que, hoje, há um complexo muito maior de princípios prevalecendo e que a ênfase maior é sobre eles, que dão um conteúdo de ação presente, especialmente nas instituições governamentais ou estatais, havendo uma perspectiva de programas futuros, traçados a partir dos princípios contidos na Constituição. Esta não é mais uma obra fechada. A Constituição é uma obra aberta, em permanente construção, construção que se faz por um movimento, que não é arrítmico, não é assistemático, exatamente porque repousa em princípios muito bem definidos, muito bem delineados e que têm força obrigatória. Hoje, pela manhã, um colega perguntava-me se poderia prevalecer em determinada circunstância impugnação a certa lei estadual, só com base em princípios constitucionais. Dei-lhe o exemplo de três julgamentos, ocorridos no STF, na quinta-feira, com base exclusivamente no que se considerou atentado a princípios constitucionais. Um deles, ao princípio da moralidade e dois, ao princípio da legalidade. A simples alegação de ruptura de um princípio, de afronta ao princípio, faz com que os próprios tribunais superiores, inclusive o STF, tido na Constituição como seu guardião, deitem abaixo e neguem eficácia a qualquer norma infraconstitucional ou a qualquer regra, até mesmo de constituição estadual, que venha a infringir o princípio considerado vetor- mestre, a viga que sustenta toda a construção. Por essa razão, creio que a consolidação das leis se faz necessária, sempre tomando como ponto de partida e como ponto de chegada o princípio. Para interpretar e saber qual a lei que prevalece, basta situar qual princípio estaria sendo objetivado, concretizado, efetivado. Se esse princípio estiver sendo descumprido, tenha a certeza de que ou a sua interpretação está incorreta, ou aquela norma afronta, de maneira manifesta, a Constituição e, portanto, não prevalece, pois não tem o fundamento da sua validade. Os princípios constitucionais darão o parâmetro do ponto de partida para a ação tanto do legislador, quanto do intérprete da norma, porque, só a partir disso, vamos ter a validade ou não dessa norma. Para que consideremos os princípios fundamentais, inclusive para a consolidação das leis, e para que haja, portanto, o aperfeiçoamento das instituições democráticas, chamaria a atenção para três princípios, que poderiam ser perfeitamente e melhor atendidos por uma consolidação legislativa, que desse ao cidadão conhecimento pleno de quais são os direitos que prevalecem numa determinada sociedade. O primeiro deles é o princípio da segurança jurídica, que hoje, talvez, no mundo, de uma forma geral, é muitas vezes negado. No caso do Brasil, se considerarmos particularmente, é o mais negado. Montesquieu dizia que quanto mais leis tem um povo, mais tendente a ser corrupto é esse povo. Essa frase é forte, extremamente contundente. Quando falava da corrupção, dando o exemplo de Roma, em “O Espírito das Leis”, dizia que quando há um complexo muito grande de leis, ninguém conhece todas elas, e, portanto, não pode cumpri-las e nem exigir o seu cumprimento, o que tende, então, para o que chamava de “possibilidade de ruptura”. Corrupção é isso: romper com o sistema de normas prevalecentes. Ele dizia que, se as pessoas não conhecem as leis, não há como participar e fazer com que sejam cumpridas. Por isso mesmo, quanto mais leis se tem, melhor para quem estiver governando, porque nem ele nem ninguém sabe quais as leis que prevalecem e acaba não prevalecendo nenhuma. A partir disso, teríamos, no Brasil, um campo aberto à corrupção, porque há muitas leis prevalecendo. A Profa. Natália e eu comentávamos no início: são tantas as normas que se revogam, que não sei se estou cumprindo ou descumprindo algumas, podendo-se chegar ao descalabro de qualquer um de nós, hoje, estar sujeito ao descumprimento de uma norma, não porque não seja um cidadão que se comporta de forma coerente com o que se exige dele, mas simplesmente por desconhecimento. No Brasil, temos a máxima, que ainda prevalece, de que a ninguém é dado descumprir uma lei alegando desconhecimento. Presume-se conhecida a lei. É uma presunção fictícia. Não é nem ficção jurídica, que, na verdade, seria facção jurídica. Não é porque o direito assim determina. É impossível alguém conhecer todas as normas em vigor no Brasil hoje. Nem em um campo de especialidade. Nenhum de nós, profissionais do direito, pode se dar ao luxo de dizer que conhece todas as normas. Em matéria de direito administrativo, por exemplo, é impossível. Todos os dias, para alguém dar uma aula de direito administrativo sobre licitação, é preciso preparar a aula até a véspera, se não quiser ser um professor irresponsável. A mudança é de tal ordem e ocorre com tal freqüência, especialmente com relação às medidas provisórias que acabaram tratando desse tema repetidamente, que não temos a segurança de, na hora, estarmos informando o estudante exatamente sobre o que prevalece. O professor de direito civil fala o mesmo, o de direito comercial também; enfim, os de todos os ramos. O Código Civil, que foi promulgado em janeiro deste ano e vai entrar em vigor em janeiro do ano que vem, já tem quase mil propostas de modificação no Congresso Nacional. Portanto, uma lei que ainda não entrou em vigor e já tem esse número de propostas de mudança, mesmo que se altere muito pouco, quando entrar em vigor, vai exigir do professor da matéria, que é um especialista, que esteja atento a cada modificação. Então, não podemos cobrar do cidadão que cumpra essa lei nem exigir que a conheça. O pior é que as normas acontecem com uma freqüência estonteante no Brasil. Não estou reclamando, porque não me incluo entre aquelas pessoas que acham que, no Brasil, deveríamos ter uma legislação mais seca, à maneira finlandesa ou suíça. O direito tem de ter a cara do seu povo. Somos um povo palavroso. Não quero de jeito nenhum que não se converse sobre direito constitucional no Brasil, até porque é o menos rebuscado, é o direito do cidadão comum. A pessoa pode, perfeitamente, nascer, viver 100 anos e não passar perto do Código Penal. Aliás, até convém que não passe perto, porque, em geral, não é uma boa passagem. Mas se nascer e morrer 5 minutos depois, teve de repousar na Constituição, porque o direito à vida - e até à dignidade da morte - repousa em normas constitucionais. Não há como passar pela vida sem vivenciar a Constituição. A despeito disso, a mudança é feita com tal freqüência que até nós, que somos da área, acabamos não conhecendo, com tranqüilidade, todas as normas que prevalecem. Precisamos de consulta continuada. Imagine a dificuldade do cidadão que desconhece os seus direitos fundamentais. Pense em um ramo do direito que não seja um direito muito afeto. Algumas áreas do direito, como disse antes, têm uma linguagem extremamente rebuscada. Imagine isso em um povo que discute. Nós nos assentamos em um bar e discutimos direito constitucional. Não tenho dúvidas. Canso de ouvir lições de engenheiro que diz que não entendemos nada, que a Constituição Federal não é nada disso. Ele, talvez, nunca tenha lido a Constituição, mas é a vida dele, tem de dar notícia dela. Está certo que discuta. Não nos assentamos num bar para discutir física quântica. Direito fala da vida de todo o mundo, então, todo o mundo tem o direito de falar da nova lei sobre o interesse do outro que foi cuidado no Direito, da legislação do outro. Essa multiplicidade de leis, portanto, faz com que cada um tenha chance de discutir os seus interesses, por isso ninguém acaba tendo segurança. Todas as pessoas acabam numa situação de insegurança jurídica, pelo complexo de leis. Conforme o dado que citei no início, do Ministro Paulo Brossard, mais de 100 mil leis ordinárias, convenhamos, não é para ninguém imaginar que tenha notícia de todas. Não é nem saber, é que ninguém nem dá notícia de todas elas. Além das leis, quer dizer, as normas que passam por um processo formal, ainda temos uma multiplicidade de fontes de normas jurídicas no Brasil. É espantoso considerar que, depois da vigência do Código de Trânsito Brasileiro, por exemplo, o Conselho Nacional de Trânsito, antes mesmo de sedimentar todas as questões postas quanto à constitucionalidade de alguns dos seus dispositivos, já tinha liberado mais de 100 normas sobre a legislação de trânsito. E, como o Conselho pode baixar normas sobre o trânsito, qualquer brasileiro que estivesse conduzindo um veículo poderia ser parado de uma hora para a outra e questionado sobre a transgressão de uma norma de que nunca teve notícia. Como presumir que todos sabem a norma? Estou num local privilegiado no Brasil, a Assembléia Legislativa de Minas, mas, se eu perguntasse aos senhores quem é que conhece todos os membros do Conselho Nacional de Trânsito, tenho certeza de que a grande maioria não nomearia todos. Nem os Deputados, talvez, nomeassem um número significativo deles. No entanto, ele baixa normas. Outro Conselho que baixa normas permanentemente, das quais o brasileiro sequer tem notícia - só tem notícia do resultado, porque aparece na sua conta no Banco ou no seu emprego -, é o Conselho Monetário Nacional, que baixa mais normas do que determinados órgãos legislativos. No entanto, a grande maioria que está neste Plenário não saberia nomear quem o compõe, quem faz as normas. E sabem quantos Conselhos temos? Hoje temos as agências reguladoras, que têm uma diretoria de regulamentação para baixar normas. Diz-se norma infralegal. Mas, se nem sei qual é a norma que, no caso concreto, se aplica, como vou saber, sem conhecer o princípio, se ela vale ou não, no meu caso? Então, os princípios constitucionais e os princípios que regem o Direito passaram a adquirir importância fundamental no Brasil. A maioria das pessoas, por exemplo, sabe que existem agências reguladoras, mas as normas que baixam em relação ao serviço de energia elétrica, ao serviço de telecomunicações a maioria dos brasileiros não sabe. Elas existem e prevalecem sobre a vida de cada um de nós, porque o serviço de energia elétrica faz parte da nossa vida, é serviço essencial. Quando o Conselho Monetário baixa uma norma, está falando da sua vida financeira, do que prevalece, mas você só vai verificar quando chega ao Banco e não sabe porque foi feito determinado desconto. Isso acontece na vida de todo o mundo. Além de tudo, temos aquilo que foi criado para ser uma situação excepcionalíssima, que são as medidas provisórias, que se tornaram muitíssimo comuns. Chegamos a um momento, em 1997, em que havia quase duas medidas provisórias, em média, por dia, mudando a legislação brasileira, mudando até o que o Congresso Nacional fazia. E não dávamos conta de acompanhar. Dei o exemplo da legislação sobre licitação: a cada dia, havia uma mudança nessa legislação, e tínhamos de ir com lupa, para saber qual a mudança processada. Não se consegue isso facilmente, porque o número dela muda, de acordo com as vezes em que foi reeditada. Portanto, a dificuldade, até para nossa consulta, é cada vez maior. Tudo isso acabou formando um arcabouço normativo no Brasil que dificulta extremamente a segurança com relação a nossos direitos. Não sabemos o que está prevalecendo, o que pode e o que deve ser feito. Não temos conhecimento no Brasil nem quanto às restrições aos nossos direitos de liberdade e propriedade, área em que a Constituição é taxativa, estabelecendo que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei. Para que tenhamos a garantia de nossos direitos constitucionais, que não podem ser mudados sequer por reforma constitucional, no sentido da restrição, impõe-se, com urgência, a necessidade de uma nova perspectiva de processo legislativo, a fim de que haja a consolidação do que existe hoje, no Brasil. Quero fazer uma referência ao princípio republicano e à estabilidade jurídica e política. O princípio republicano é o primeiro a ser enfatizado na Constituição, em seu art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel...”. Nesse artigo, estabelecem-se determinados princípios, como o da igualdade e o da liberdade, que, em uma república, são distintos dos princípios exercidos na monarquia. Depois de cento e poucos anos da proclamação da república, ainda não conseguimos vê-la consolidada, até porque, neste País, temos uma república, mas não temos tantos republicanos como deveríamos. Se a coisa é pública, a legislação a prevalecer deveria dar garantia de cidadania a todos os republicanos. Se não temos uma legislação muito bem positivada, no sentido de conhecimento objetivo por todos, devemos, pelo menos, fazê-la prosperar. Precisamos enfatizar não apenas a democracia, mas também a República brasileira. Quando a coisa é pública, a igualdade de oportunidades, naturalmente, decorre da adoção do princípio, e esse modelo que ainda não conseguimos consolidar ainda está a dever, exatamente, aos menos favorecidos do País. Essa consolidação dar-nos-ia condições de saber se a coisa realmente é pública no Brasil, se a gestão se faz para todos e se as condições e oportunidades são iguais, para que tenhamos condições de ver efetivado o princípio da igualdade. Chamo, também, a atenção para o princípio da participação popular. O cidadão só pode participar e participa quando conhece rigorosamente seus direitos. Agradeço à Assembléia Legislativa. Lembro-me de uma passagem de Machado de Assis: “A virtude é uma, e os pecados são muitos”, querendo ressaltar que ter uma lei é necessário para que saibamos a opção de uma sociedade sobre o que é justo. Esse trecho está no livro “Isaú e Jacó”. Ele afirma, ainda, que, para descumprir uma lei, existem mil portas e formas. Para que isso não aconteça, é preciso que saibamos, rigorosamente, qual o direito que prevalece em uma determinada sociedade. Falta isso no Brasil, grande parte em decorrência de nossa comunidade jurídica, pois os legisladores atuam melhor do que nós nessa matéria, mas falta também a democratização no processo de dar conhecimento das leis e das normas que prevalecem para o cidadão brasileiro. É preciso que todos nós, cidadãos, conheçamos nossos direitos, até para ser mais republicanos e cooperar com o interesse do outro, além do particular, superando o individualismo que ainda prevalece, quer na forma de vislumbrar o direito, quer na forma de aplicá-lo e de lutar por ele. Assembléias como esta, que têm compromisso com o interesse público, teriam a vida muito facilitada se as pessoas pensassem mais nas outras, em uma visão de sistema de direito, sem deixar de lutar por seus interesses individuais. Muito obrigada. Peço desculpas, pois terei de ausentar-me, devido a um compromisso com dois Secretários, por determinação do Governador. Coloco-me à disposição para responder a eventuais perguntas, desde que tenham “e-mails”, para que possa responder. Muito sucesso a todos.