Pronunciamentos

ALINE CÂNTIA, Presidente do Instituto Cultural Abrapalavra

Discurso

Apresenta contos da tradição oral, em reunião destinada a comemorar a Campanha da Fraternidade de 2023, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB –, que neste ano tem o tema “Fraternidade e fome” e o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer”.
Reunião 1ª reunião ESPECIAL
Legislatura 20ª legislatura, 1ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 14/03/2023
Página 26, Coluna 1
Assunto ALIMENTAÇÃO. ASSISTÊNCIA SOCIAL. HOMENAGEM. RELIGIÃO.
Observação Procede-se à apresentação artística.
Proposições citadas RQN 247 de 2023

1ª REUNIÃO ESPECIAL DA 1ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 20ª LEGISLATURA, EM 9/3/2023

Palavras da Sra. Aline Cântia

A Sra. Aline Cântia – Boa noite a todos, a todas, a todes. Primeiramente, quero agradecer o convite ao deputado Leleco, Padre João. Quero dizer que, para a gente, é uma alegria imensa estar aqui, nesta Casa, a Casa do povo.

Eu sou Aline Cântia. Sou presidente do Instituto Cultural Abrapalavra, que é um estudo daqui, de Belo Horizonte, mas que atua por essas Minas Gerais todas. Ao meu lado está Fernando Chagas.

É muito importante estar, hoje, nesse lançamento da Campanha da Fraternidade, “Fraternidade e fome”, principalmente neste momento do Brasil, em que milhares de pessoas estão nessa situação. Que a gente possa construir novas histórias. Por isso a gente veio aqui, hoje, contar histórias para vocês. A gente preparou um repertório de alguns contos da tradição oral, especialmente contos contados por outras mulheres que vieram antes de mim. Para começar, para que a gente possa ter um Brasil de paz e sem fome, acho que a gente precisa contar novas histórias para as novas gerações.

Eu queria contar para vocês sobre uma velha. Queria começar falando sobre ela, sobre essa velha que veio muito antes de mim. Era uma velha muito velha; ela era tão velha, mas tão velha que ela quase nem existia mais. Um dia, já no fim da vida, ela chamou as filhas, as netas, sentou-numa cama, colocou todo mundo ao redor e disse bem assim: “Está tudo bem. Vocês já sabem exatamente o lugar da floresta onde eu me reúno todas as vezes em que eu preciso invocar o Sagrado. Vocês já sabem quais histórias contar, vocês conhecem as músicas, vocês sabem como acender o fogo. Sempre que precisarem façam exatamente isso, e o Sagrado virá.

E o tempo passou; veio a primeira geração, após aquela velha. As pessoas, um dia, se sentiram um pouco perdidas, mas, mesmo assim, elas se lembraram daquela velha. Então elas se reuniram, acenderam o fogo, cantaram, contaram suas histórias em voz alta, dançaram. Nessa hora, como o caindo de uma folha verde, o Sagrado veio. E aquela população ficou muito tempo em paz. Mas aí veio a segunda geração. E, quando veio a segunda geração, as pessoas não tinham muita certeza de onde deveriam se encontrar, mas, mesmo assim, elas se juntaram, acenderam fogo, contaram suas histórias, cantaram, dançaram, e o Sagrado veio. E, junto dele, veio a coragem. E aquela população viveu mais um tempo, até que chegou a terceira geração. E, quando veio a terceira geração, aquela floresta imensa, agora, era um bosque. As pessoas já não sabiam muito bem como acender o fogo, mas, mesmo assim, elas se juntaram, contaram suas histórias, acenderam alguns fósforos, cantaram, tocaram seus instrumentos, e o Sagrado veio. E, junto dele, veio a esperança. Até que chegou a quarta geração. E, quando veio a quarta geração, aquele bosque era, agora, uma praça, uma praça assim bem no centro da cidade. As pessoas passavam de um lado para o outro, e ninguém tinha a menor ideia de como acender o fogo, ninguém conhecia mais as músicas. Mas, ali, naquela praça, havia uma velha, não tão velha como a velha do início da história, mas essa velha conhecia ainda as histórias. Ela então se levantou. Nessa hora, quando ela se levantou, tudo parou. Os carros pararam, os ônibus, as pessoas desceram, as crianças que brincavam, as mulheres, os homens. Nessa hora, essa mulher contou uma história em voz alta e o sagrado veio. Dizem que é por isso que, em qualquer lugar que a gente estiver do mundo, a gente pode estar aqui, se alguém tocar um instrumento e cantar uma música, contar uma história em voz alta, ainda assim o sagrado vem.

O Sr. Fernando Chagas – (– Canta.)

A Sra. Aline Cântia – Essa história, Fernando, me lembra uma outra história que aconteceu lá, no México. Essa história é de um homem que morava numa aldeia, o nome dele era Agapito. O Agapito resolveu sair da cidade dele e ir para uma outra vila bem mais longe, para trabalhar, conseguir juntar um pouco de dinheiro e levar para a família. Ele trabalhou três anos. Depois de três anos, trabalhando muito, noite e dia, ele pensou: “Não, agora, eu vou receber um bom dinheiro e vou poder voltar para casa”. Assim ele fez. Foi chegando perto do Natal, deu uma saudade de casa, deu uma saudade da mãe, do pai, da filha da vizinha de quem ele já estava um pouco apaixonado mesmo antes de vir. Só que, no dia em que ele foi receber o ordenado final, ele recebeu apenas três moedas de bronze. O capataz, então, começou a descontar e falou: “Olha, descontando a água do rio onde que você tomou banho durante todos esses anos; descontando o tempo que você morou, que você comeu, tudo que você viveu por aqui; descontando aquele tempo que você estava um pouco adoentado e plantou menos árvores, três moedas de bronze é tudo”. Ele tinha trabalhado noite e dia durante três anos e tinha três moedas de bronze. Ele tentou argumentar, mas vocês conhecem, o capataz não disse nada nem deixou, nem escutou, virou as costas.

Aquele homem, então, resolveu economizar para chegar em casa, e resolveu voltar andando. Ele foi caminhando. Ele passou pela primeira vila, passou pela segunda. Estava um pouco cansado e pensou: “Não, eu acho que eu vou tomar uma água, beber bastante água, enganar o meu estômago e aí amanhã eu continuo”. Ele, então, chegou perto de uma fonte de água onde havia um velho, que estava tentando pegar água com uma cuia e não conseguia. Agapito chegou e ajudou o velho. Quando olhou para ele, viu que aquele velho fraco estava era com fome. Então, ele pegou uma das moedas que tinha, foi ali perto de uma venda e comprou umas tortilhas e entregou para o velho. O velho comeu uma a uma. E, depois que ele já estava satisfeito, entregou de presente para Agapito uma sacola cheia de umas moedas que, na verdade, eram sementes. Quando Agapito olhou bem eram sementes douradas. Ele disse: “Leve e plante um dia. Quem sabe não é a própria felicidade que está aí dentro?”. Agapito, muito cansado, dormiu ali mesmo perto daquela fonte. No dia seguinte, acordou e viu que, em frente à fonte, havia uma espécie de doceria com tantos doces bonitos, torrões de açúcar, e havia um deles que era de uma rosa vermelha. Ele a comprou imediatamente com a outra moeda que tinha e lembrou da filha da vizinha. Era o que ele levaria de presente depois de três anos.

Ele continuou andando. Andou mais um dia, dois. De repente, ele chegou a uma venda que tinha um lugar para dormir. Aí ele pensou: “Olha, eu vou dormir hoje, amanhã eu acordo, como alguma coisa e sigo o caminho”. Ele, então, dormiu. No dia seguinte, quando ele foi tomar o café da manhã, ele escutou um outro homem conversando. O homem chamou a moça que trabalhava e disse: “Chica, vem cá, quero te contar o sonho que eu tive esta noite”. E começou a contar. Ele falou: “Olha, esta noite, tive um sonho tão bonito. Eu sonhei que eu morava numa floresta e que tinha muito ouro naquela floresta. E, no meio dela, dançava uma deusa de cabelos negros feito a noite e o meu povo levava bacias, levava cestos e se alimentava daquele ouro”. Gente, o Agapito achou aquele sonho tão bonito, que ele falou: “Preciso comprar esse sonho, porque se eu compro esse sonho eu tenho o que contar no dia seguinte”. Se eu gastar minha última moeda comendo, daqui a pouco eu vou ter fome de novo. Então, ele foi lá e disse: “Eu quero comprar o seu sonho”. “Comprar o meu sonho? Mas quem é que compra sonho? Ninguém compra sonho, não. Eu posso te dar o meu sonho. Toma, leva o seu sonho”. “Não, eu quero comprar o seu sonho.” E entregou para ele uma moeda de bronze. O homem aceitou. E ele, então, foi embora porque estava na porta. A moça que estava lá chamou por ele e falou: “Agapito, vem cá, vem cá. Olha só, vai ali, na próxima aldeia, e conta esse sonho para a minha mãe, estou com tanta saudade dela, tem tanto tempo que eu não vejo a minha mãe. Conta para ela esse sonho. Mande lembranças. Eu preparei umas tortilhas para você levar”. E assim Agapito fez.

Quando chegou, já estava todo mundo sabendo que estava chegando um moço que ia contar um sonho para a mãe da outra moça. Ele chegou à casa e havia um monte de gente, igual televisão. Todo mundo queria saber que sonho era esse. Ele, então, contou o sonho. Alguém levantou a mão e falou assim: “Agapito, você não vai passar pela cidade tal? Por favor, procura o meu irmão e conta para ele o seu sonho. Ah, procura o meu primo também”. E assim foi, gente. Em cada cidade em que ele passava, alguém pedia para ele contar esse sonho na cidade seguinte. Aí, ele foi ganhando moedas, foi ganhando comida, até ele chegar à cidade dele.

Depois de três anos, no Natal, exatamente no dia 24, ele chegou à cidade. A primeira pessoa que ele viu foi a filha da vizinha, que estava tão bonita! Ele entregou para ela aquele torrão de arroz que ele tinha guardado a viagem inteira. À noite, ele fez uma fogueira, reuniu com o seu povo e contou aquele sonho. E, junto do sonho, ele contou sobre a sua caminhada, sobre a sua viagem. A moça disse: “Poxa, Agapito, e essas sementes? O que será que são essas sementes? Vamos plantá-las amanhã cedo, logo que o sol nascer?”. Assim, eles fizeram. Passou um tempo, Agapito acordou de manhã, escutou um barulho do lado de fora, abriu a janela e, lá fora, havia uma verdadeira floresta de ouro, com muitas sementes. As pessoas entravam, o seu povo entrava com cestos e pegava aqueles frutos, pegava aquelas sementes. No meio da floresta, havia a própria esposa agora dançando feito uma deusa, com seus cabelos negros, que lembravam a noite. Foi assim que ele conheceu o trigo. Foi assim que ele viu seu povo sair dali, fazendo pão, fazendo massas. Dizem que, desse dia em diante, nunca mais, seu povo passou fome na vida.

O Sr. Fernando Chagas – (– Canta.)

A Sra. Aline Cântia – E agora, para a gente ir voltando para casa com essas histórias e com essas músicas no coração, eu vou contar para vocês que, durante um tempo da minha vida, eu morei numa comunidade quilombola chamada Kalunga, lá em Goiás. Eu morava na casa da D. Lió e lembro que eu dormia numa rede – eu ficava sempre lá na rede. A D. Lió era daquelas mulheres muito sabidas. Um dia, eu estava lá deitada e comecei a escutar umas mulheres cantando do lado de fora. Era por volta de meia-noite, 1 hora. Eu, então, me levantei da rede, cheguei perto da janela, girei a tramela e comecei a ouvir. Era tão bonito aquelas mulheres cantando, e elas cantavam tão longe, mas tão longe. A D. Lió, nessa hora, acendeu a lamparina lá no fundo da casa, e a casa inteira se iluminou – aquele amarelo bonito no meio do sertão. Nessa hora, ela me levou para o lado de fora da casa e me disse que, durante o dia, eu não ia conseguir ouvir esses cantos. Por isso o canto era tão longe, porque muito, muito tempo atrás, a distância entre o chão e o céu era bem menor do que hoje. Diziam até que dava para a gente tocar nas nuvens se a gente esticasse um pouco o nosso corpo ou se a gente subisse num banquinho qualquer. E, nessa época, viviam, em algum lugar da África, duas mulheres, duas mulheres que eram muito amigas. Elas passavam o dia inteirinho juntas, trabalhando com seus pilões. Elas pilavam e cantavam, pilavam e falavam, pilavam e cantavam e pilavam e falavam. O céu ficava ali escutando tudo o que aquelas mulheres faziam. E elas pilavam e cantavam, pilavam e falavam. Às vezes, iam chegando outras mulheres, e elas falavam baixinho, só para trocar segredos. E elas falavam dos seus amores, das suas dores. Até que, um dia, uma dessas mulheres estava contando uma história. Ela foi falando e cantando e pilando e, de repente, ela fez um furo no céu. O céu reclamou, mas não adiantou nada, porque elas continuaram o assunto e o emendaram no outro, e elas iam pilando e falando e pilando e cantando. E foram fazendo vários furos naquele céu. Até que o céu começou a se afastar da terra, e ele foi subindo bem devagarinho, ele foi subindo, subindo. À medida que o céu subia, mais mulheres ele via. Ele via mulheres que lutavam pelos seus povos, mulheres que navegavam, mulheres que cuidavam de seus filhos. E ele foi subindo até chegar ao topo do mundo, que é onde o céu está até hoje. Dizem que, em qualquer lugar do mundo em que a gente estiver, se a gente abrir a janela de qualquer quarto à noite, silenciar todos os ruídos externos e olhar bem para o céu, pode ser que a gente escute essas mulheres, esses homens e todos os povos que vieram depois cantando, porque os buracos nunca mais se fecharam. Eles se transformaram nas estrelas, que iluminam a escuridão da noite.

O Sr. Fernando Chagas – (– Canta.)

A Sra. Aline Cântia – E essas foram as histórias que a gente guardou para vocês, histórias que eu escuto desde muito tempo atrás, desde que o meu avô tirava, debaixo de uma árvore, um pano xadrez e o colocava no chão. A gente sentava um do lado do outro, lá em Viçosa, no interior de Minas. Nessa hora, o tempo parava, nem as folhas das árvores se mexiam mais. E, assim, como aconteceu aqui, agora, todo mundo silenciando os ruídos externos, o Sagrado se fez. Muito obrigada.